domingo, 31 de maio de 2009

ENTREVISTA COM JOÃO BAPTISTA VILLELA


Durante duas décadas, João Baptista Villela foi professor titular de Direito Civil na Faculdade de Direito da UFMG, instituição da qual se tornou, em seguida, professor emérito e onde continua a dirigir o Centro de Estudos em Direito Privado. Para a seguinte entrevista, realizada no dia 26 de fevereiro de 2009, ele nos recebeu em seu gabinete, na Faculdade de Direito. A edição final do texto contou com a preciosa colaboração de Aline Rose Barbosa Pereira.

PRIMEIRA PARTE

“O professor é alguém que põe não apenas o seu saber, o seu preparo,
mas também a sua vida a serviço do próximo”.

“Uma das habilidades fundamentais no magistério é o amor pelo ensino.
O professor tem que se sentir movido pelo desejo de transmitir o que ele sabe”.


1. O que significa ser professor?

Eu vou começar com algo nada original, porque é freqüente a associação do magistério com o sacerdócio. Isso é um lugar comum, mas não perde em verdade por ser um lugar comum. Eu penso que ser professor é, em larga medida, participar do projeto de serviço ao próximo. O professor é alguém que põe não apenas o seu saber, o seu preparo, mas também a sua vida a serviço do próximo. O próximo, no caso da sua atividade, é, por excelência, o aluno.

2. Como o senhor se decidiu pela carreira docente?

Bem, isso é um pouco curioso. Aí já entra na minha área de recordações. Eu me lembro que na minha juventude e no meu período entre adolescência e idade adulta eu era muito seduzido pelo uso público da palavra. Foi um tempo em que eu especulei também com a possibilidade de atender a um chamado para a vida religiosa e gostava muito também do debate político. Então, me lembro de ter dito a um amigo meu, um colega de ginásio, que eu estava em procurar uma definição que envolvesse o uso de uma tribuna pública. E já a esse tempo eu indicava para ele: ou eu vou ser um pregador, ou eu vou ser um tribuno, ou eu vou ser um professor. Com o tempo, as minhas outras possibilidades foram se recuando e a minha vocação se firmou no exercício dessa tribuna que é falar para os meus alunos.

3. O senhor poderia indicar três professores que marcaram sua trajetória?

Na universidade?

Não necessariamente na universidade.

Sim, eu me recordo aqui de uma professora que eu tive no ginásio, chamada Irmã Conceição. Eu não saberia agora dizer o sobrenome dela, mas ela era uma freira da Congregação das Scalabrinianas e que me impressionava muito porque, a um tempo em que as religiosas, principalmente, eram confinadas a uma vida de oração e de pequenos serviços domésticos, essa era uma senhora que tinha, presumivelmente, uma intensa vida religiosa, mas era também uma senhora muito culta, muito preparada, comunicava com excelente eficiência e era muito devotada a seus alunos. Enfim, me cativou muito. Então, essa é uma pessoa de que, assim, de supetão, eu me recordo.

Depois, no período do colégio, eu recordaria um professor, que creio que ainda é vivo, chamado José dos Prazeres. Ele foi professor no Colégio Santo Antônio, era professor de desenho. Era um homem encantador pela didática e pelo extraordinário senso de humor. Gostava muito...

Na universidade, fica difícil eu optar entre alguns nomes. Se eu posso ultrapassar a sua lista, eu indicaria três grandes professores que atuaram muito sobre a minha formação e que deixaram em mim uma marca inconfundível. São eles: Edgar de Godoy da Mata Machado, que foi pai do José Carlos, que é uma figura muito viva na memória da Faculdade; João Eunápio Borges, um grande autor do Direito Comercial, e José do Valle Ferreira, que também hoje dá nome a uma fundação que opera aqui, tem um posto aqui. Não quero dizer que não houvesse outros grandes professores, mas esses me marcaram de modo especial.

4. Professor, eu queria que o senhor desse pelo menos três conselhos para alguém que se prepara para dar a sua primeira aula.

Bem, se eu entendi a sua pergunta, se ele está se preparando para dar a sua primeira aula, suponho que já esteja dentro da matéria, porque senão eu diria: conhecer bem o assunto.

Conhecendo bem o assunto, adequá-lo ou dimensioná-lo ao nível de quem vai receber a informação – uma aula não pode ser apenas erudita, não pode ser apenas brilhante, ela nem precisa ser uma coisa ou outra. Ela tem que ser instrumentalizada segundo a necessidade de quem vai receber a mensagem.

Procurar que haja uma certa inteireza na sua mensagem, isso que se diz, freqüentemente, que seja una, que tenha um começo, tenha um meio e tenha um fim.

E, não esquecer (acho que tenho direito a mais uma característica) de estimular a dúvida. Eu costumo dizer aos meus alunos que me dou por muito enriquecido quando saio das minhas aulas deixando mais dúvidas do que havia quando eu entrei, porque a dúvida é criadora, a dúvida estimula a busca do conhecimento.

5. Quais são as três principais habilidades que um professor deve possuir ou deve desenvolver?

É, tudo isso que você está me perguntando corre o risco de muitas falhas, porque três é sempre uma seleção rigorosa. Eu não saberia dizer se, na verdade, estou nomeando os três ou as três mais importantes. Mas, nesse caso, eu diria que uma das habilidades fundamentais no magistério é o amor pelo ensino. O professor tem que se sentir movido pelo desejo de transmitir o que ele sabe. Outra habilidade que ele tem que ter, naturalmente, é a de comunicar. Comunicar é algo que exige empatia, que exige respeito ao próximo, que exige capacidade de ouvir também e, geralmente, acessibilidade. O professor não pode ser um muro, que emite e que não recebe. Ele tem que ser permeável, tem que ser “friável”, de uma certa maneira. Ele tem que falar, mas tem que saber ouvir também.

Uma palavra que o senhor usou há pouco foi friável?

É, friável, como o solo. Esse é um adjetivo muito usado para qualificar o solo, particularmente os minerais e as rochas. O professor, tal como o solo friável, tem que ser poroso, deixar-se penetrar.

6. E a pior falha que um professor pode cometer?

Arrogância.

sábado, 30 de maio de 2009

SER PROFESSOR É PERIGOSO?*

Quanto aos perigos ligados à escolha da carreira docente, tenho percebido a presença de dois.

O primeiro é o da subvalorização do magistério. Dar à docência valor menor que o devido é um perigo sempre presente no horizonte do professor. As causas variam desde o simples desânimo, passando pela completa falta de vocação, até chegar à pura irresponsabilidade. Muito freqüentemente, é a dedicação a outras carreiras jurídicas, como a advocacia e a magistratura, que acaba empurrando o magistério para o segundo plano. Não que seja impossível conciliar a docência com o exercício de qualquer outra função. Mas fazer isso, exercendo uma e outra atividade com zelo e cuidado, não deve ser uma tarefa fácil. Parece-me que o ideal, para quem pretende tentar a conciliação, seja dedicar-se inicialmente a apenas uma carreira e, somente depois de adquirir experiência e maturidade, lançar-se a um novo desafio.

O segundo risco ligado ao exercício do magistério, tão perigoso quanto o primeiro, é o da sua supervalorização. O magistério, apesar de especialmente encantador, é apenas uma profissão. Imaginar que seja mais do que isso, supor que ele pode encher toda a vida de significado e beleza, não me parece saudável. O professor jamais deve se esquecer de que o exercício da docência é apenas um meio para atingir certas finalidades e que essas finalidades estão sempre ligadas às pessoas. Quando a carreira se torna um fim, logo tudo o mais será visto somente como um meio para se chegar ao topo. Os colegas serão rivais. Os outros servidores, meros executores de ordens. Os alunos, bem, os alunos, como não podem ser simplesmente eliminados, serão apenas tolerados.

Uma escola não deveria ser lugar para rivalidades mesquinhas. E, de fato, não seria, se o magistério não fosse mais valorizado do que as pessoas em função das quais ele existe.

* Este trecho é parte integrante do artigo intitulado de Considerações Sobre o Magistério Jurídico, publicado na Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Para consultá-lo na íntegra, acesse www.gbsr.com.br .

sexta-feira, 29 de maio de 2009

MIGUEL REALE E OS CALOUROS

Em 2002, quando fazia mestrado na PUC/MG, fui encarregado de levar ao aeroporto um professor que viera participar de um Congresso de Filosofia do Direito. Àquele tempo, era comum que os alunos bolsistas recebessem esse tipo de obrigação. Sinceramente, nem me lembro do nome do professor. Dias antes do evento, no entanto, uma colega me telefonou e pediu para que trocássemos as nossas tarefas. Ela levaria o tal professor sem nome e eu levaria um outro. A mudança não me causaria nenhum transtorno. Disse imediatamente que estava tudo bem. Em seguida, ela me disse o nome do professor que agora seria meu passageiro: Miguel Reale. Assim, no dia marcado, compareci à recepção do Hotel e, minutos depois, encontrei um senhor de pequena estatura, passos lentos, mas seguros, e um sorriso fácil e encantador. No trajeto, entre outras coisas, perguntei a ele qual teria sido a maior alegria que experimentara no exercício do magistério. E, para minha surpresa, a resposta não foi o fato de ter elaborado uma teoria internacionalmente reconhecida, nem algum dos muitos prêmios recebidos, ou a passagem por cargos importantes, e nem ainda a recente aprovação do Código Civil, cujo projeto coordenara. Para ele, não havia nada mais gratificante, no exercício de sua profissão, do que encontrar, em todos os cantos do Brasil, pessoas que haviam lido suas Lições Preliminares de Direito e que gostavam de compartilhar com ele suas experiências de leitura. Sim, para Miguel Reale, o sentimento que o seu belíssimo texto causava nos calouros dos cursos jurídicos tinha o mais elevado valor. E eu, que havia tido o primeiro contato com as idéias jurídicas justamente com o livro do meu interlocutor, não duvidei da sinceridade da resposta. E, além disso, nunca a pude esquecer.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

QUER SER PROFESSOR? TEM CERTEZA? *

Antes de se decidir pela carreira docente, todo candidato deveria fazer a si mesmo algumas perguntas. Sugiro, inicialmente, as seguintes:

1. Estou disposto a continuar estudando para sempre?

Muito embora a necessidade de contínuo aperfeiçoamento também seja verdadeira em todas as outras profissões, no magistério ela assume contornos dramáticos. Todos já ouviram casos de professores que utilizam, ano após ano, as mesmas formas de abordagem, os mesmos exemplos, os mesmos casos e até as mesmas fichas velhas e amareladas. Eu mesmo tive um que passou uma aula inteira explicando lei já revogada e só se deu conta do equívoco quando advertido por um aluno.

2. Estou disposto a confessar minha própria ignorância?

Por melhor que seja a formação do professor e por mais amplo que tenha sido o seu preparo para ministrar a aula, há sempre a possibilidade de um aluno levantar uma questão para a qual ele não tem a resposta. Nessas ocasiões, tanto mais freqüentes quanto mais críticos forem os alunos, o melhor é não tentar uma solução aproximada, mas dizer francamente que não dispõe de dados suficientes para enfrentá-la.

3. Estou disposto a progredir mais lentamente que outros profissionais?

Na carreira docente não há saltos. É péssimo sinal se o jovem professor não estiver disposto a progredir mais lentamente que alguns de seus colegas que optaram por outras carreiras, como a advocacia, por exemplo. Não será igualmente feliz se ficar comparando seus rendimentos com os de um magistrado mesmo em início de carreira. Ao contrário, deve estar disposto a seguir em frente, passo a passo, semestre após semestre, na expectativa de que seus esforços e sua dedicação serão reconhecidos no futuro.

4. Estou disposto a aceitar as responsabilidades inerentes ao exercício do magistério?

Não há a menor possibilidade de um professor deixar de exercer algum tipo de influência sobre seus alunos. Se ele falta freqüentemente às aulas, se ele se apresenta para elas sem o mínimo preparo, se ele se aborrece com as perguntas dos alunos, se ele privilegia uns em detrimento de outros, se ele se omite em relação aos problemas da Escola, se ele faz tudo bem diferente do que prega, em todos esses casos, não há como evitar as repercussões naturais de seu comportamento. Em alguns alunos, provocará desânimo, em outros, revolta, em outros, apatia, em outros, indiferença. Ao contrário, se ele se esforça por dar o melhor de si, se ele se interessa sinceramente pelas dúvidas dos alunos, se o seu discurso é coerente com sua prática, em todos esses casos, haverá repercussões de outra natureza. Esperança, alento, vontade de seguir em frente.

5. Estou disposto a ser muitas vezes mal compreendido?

Tendo que atender a tantos e tão diversos interesses, o professor não deve ter a expectativa de agradar a todos. Os preguiçosos não ficarão muito felizes se ele realizar avaliações rigorosas. Os que não querem saber de nada que não possa cair num concurso público certamente acharão que ele perde muito tempo com bobagens, como, por exemplo, o estudo da história, ou a leitura desinteressada de um texto literário. Os relapsos não terão dúvida de classificá-lo como excessivamente formalista de tanto que ele insiste em observar as normas da Escola. Às vezes, explicar não vai resolver. O caso, então, é acreditar no que se está fazendo e seguir em frente.

6. Estou disposto a não conhecer os mais importantes resultados de meu trabalho?

Grande parte do que faz o professor não vem à luz imediatamente. Se a sentença de um juiz é confirmada no Tribunal, se o voto de um ministro é acolhido pelos colegas, se a tese de um advogado prevalece num julgamento, em todos esses casos, o resultado é logo perceptível. Mas, como verificar as conseqüências de um conselho dado em sala de aula, de uma sugestão oferecida a um orientando, de um texto escrito e publicado? A porção mais significativa dos resultados de suas ações, justamente porque diz respeito a aspectos muito profundos da existência humana, não será conhecida pelo professor.

7. Estou disposto a contrariar muitos interesses?

Se o professor quiser se manter fiel aos seus princípios, deve estar preparado para enfrentar corajosamente tanto alunos que não têm compromisso com o aprendizado quanto instâncias da administração escolar que não estejam cumprindo adequadamente as normas acadêmicas.

8. Estou disposto a me acostumar com a solidão?

Somente uma pequena parte do trabalho do professor acontece sob os olhos do público. Mesmo nesses momentos, em sala de aula ou numa conferência, por exemplo, lá está o professor sozinho, isolado em seu posto e em sua função, vigiado atentamente por uma pequena multidão de observadores. A maior parte do tempo, no entanto, ele passa realmente sozinho, estudando, lendo, tomando notas, preparando aulas, elaborando provas, corrigindo provas, colocando em dia sua correspondência eletrônica, preenchendo relatórios, etc.

9. Estou disposto a trabalhar em equipe?

Muito embora deva saber trabalhar sozinho, o professor não será completo se tiver dificuldade de trabalhar em equipe. Nessas ocasiões, deve estar pronto para ouvir as opiniões dos colegas, assumir a perspectiva do outro, transigir quando possível, insistir num ponto quando for importante. Também não deve se omitir de participar da administração escolar, quando solicitado, bem como jamais imaginar que poderá construir sua carreira sem se interessar pelo destino da instituição em que está inserido.

Resultado.

Muito bem. Responder positivamente a essas questões pode ser um bom sinal para quem deseja se aventurar na carreira docente. Não ficar à vontade em relação a algumas, no entanto, pode não significar o fim da linha. Nesse caso, com algum esforço, com tempo e com paciência, podem surgir novas formas de ver o mundo, e novas habilidades podem ser desenvolvidas.

*Essas questões foram apresentadas aos participantes do Ciclo de Iniciação Jurídica, realizado na Faculdade de Direito da UFMG, em 18 de março de 2009.