sábado, 18 de julho de 2009

O QUE VOCÊ FAZ NAS FÉRIAS?

Professores e estudantes têm dois períodos de férias por ano. Em julho, na verdade, apenas uns poucos dias de recesso.

O que deveríamos fazer nesse tempo?

Certamente que os estudantes não deveriam rever tópicos de matérias anteriores, nem elaborar projetos de monografia, nem estudar para os malditos concursos.

Certamente que os professores não deveriam colocar o currículo Lattes em dia, nem terminar de escrever livros e artigos, nem preparar umas aulinhas para o próximo semestre, e nem mesmo ficar atualizando sites e blogs.

Ao contrário, uns e outros fariam muito bem se usassem o tempo para ler bons livros, ouvir boa música, ver bons filmes, ficar com a família e os amigos, e viajar, se possível.

Por recomendação de um aluno, o Gabriel Lazarotti, estou lendo A Cabana e, por enquanto, vou gostando. Tenho ouvido bastante as músicas de um CD que se intitula Mergulhado, presente de outro aluno, o Rafael Niepce, autor de algumas das letras, belíssimas, por sinal. Antes de ontem, assisti A Dúvida. Ontem, Modigliani. E, hoje, não sei se vejo Capote, O Jardineiro Fiel ou Alexandre. Na próxima semana, devo viajar com a família para a terra natal, a belíssima e pacata cidade de Mantena, no interior das Minas Gerais.

Espero não trabalhar nos próximos dias.

Espero, inclusive, não postar mais nenhum texto no blog até o início de agosto.

Não sei se vou conseguir.

E, você, o que vai fazer nessas férias?

quinta-feira, 16 de julho de 2009

O MÉTODO PADRÃO

Contribuição enviada por Jorge Cunha Conrado,
bacharel em Direito pela UFMG,
integrante da turma que se formou no 2º semestre de 2008



"Dizem também que [foi] mau estudante, ou por outra, estudante displicente, mas isso só serve para aumentá-lo na minha estima. A nossa Escola de Direito não é melhor nem pior do que o comum das escolas, de Direito ou ou não, que não dão gosto nenhum de serem freqüentadas".

-- Carlos Drummond de Andrade, em crônica sobre o poeta Ascânio Lopes, publicada em 1931.

Durante os meus cinco anos da Faculdade de Direito presenciei a repetição de uma conduta que só pode ser descrita com sinceridade como maçante. Existem vários tipos de professor e várias maneiras de ministrar aulas, mas há um método, um modus operandi mais utilizado do que outros, que, de tão escolhido pelos docentes, pode ser chamado de método padrão.

Esse método parte de dois pressupostos básicos, primeiro, o de que a única forma possível do aluno aprender a matéria ensinada é pelo contato direto com o professor, e, segundo, o de que a única forma do professor transmitir suas lições é por meio da aula expositiva.

Heidegger disse muita coisa que me parece simplesmente incomprensível ou inaceitável, mas em algo concordamos, o filósofo alemão dizia que a aula é apenas uma provocação. No método padrão a aula é tudo.

Para facilitar a explicação é interessante tratar primeiro da conduta do docente e depois da maneira como se comportam os discentes.

O professor prepara todas as suas aulas com antecedência, o que é natural e positivo, entretanto, ao organizar o curso, vale-se exclusivamente de um só manual. Isso faz com que ele se exima do trabalho hercúleo de lidar com as questões difíceis que a matéria sucita: no manual escolhido se encontram as respostas definitivas para tudo. Se o professor for o autor de um livro, garantidamente, escolherá a obra de sua lavra como aquela a ser seguida durante o semestre. As vezes, com alguma sorte, o professor escolhe um bom manual, mas o usual é a adoção de autor com maior capacidade para simplificar a matéria (o que não é coisa boa, já que o Direito nunca é simples).

A doutrina escolhida é então diluída e permeada por opiniões do mestre, para ser posteriormente apresentada em sala de aula de maneira superficial. O porque das coisas permanece um mistério, raciocínio jurídico é algo raríssimo e verdadeiras discussões são prontamente findadas com respostas evasivas ou absurdas (o professor ignora o questionamento do aluno, responde a uma pergunta que não foi formulada e continua com a aula). A isso se soma a leitura em voz alta de dispositivos da lei estudada, seguida de hermenêutica pedestre. O professor parece nunca ter cogitado a possibilidade do aluno ele mesmo ler o manual e a legislação fora do horário do curso, sendo a aula reservada para as lições e discussões sobre os pontos mais difíceis da ementa, fora as questões da ordem do dia. O método padrão passa longe disso, pressupõe serem os alunos uns pusilâmines perdidos entre as questões do Direito, incapazes de saber o que diz, exempli gratia, Caio Mário por meio da leitura de Caio Mário.

E se alguém aprendeu alguma coisa ou não é um mistério. Os procedimentos de avaliação são meros expedientes burocráticos destinados a aprovar ou reprovar alunos (alguns partidários do método padrão nunca reprovam ninguém, outros são carrascos sádicos, não há regra quanto a isso). Os trabalhos raramente são lidos, o esperado é que ninguém preste atenção no que se diz nos seminários e as provas, bem, as provas são especialmente sintomáticas. É por meio delas que fica claro que os professores que optaram pelo método padrão se enxergam como "a luz, a verdade e o caminho”. É por meio delas que se constata o inelutável império do magister dixit: quem recebe as maiores notas são aqueles com a maior capacidade de repetir o que disse o professor, incluindo todas idiossincrasias e platitudes do mestre. O sujeito que se debruça sobre várias obras diferentes, procura saber o que diz a jurisprudência do Tribunal de Justiça, do STF e do STJ é um coitado, nota bem melhor obtém aquele que estudou apenas pela cópia do caderno do aluno com maiores propensões a taquígrafo.

E fato é que a maioria dos alunos não se opõe ao método padrão, na verdade, não seria exagerado dizer que muitos o aprovam com veemência. Como certa vez disse a Professora Juliana Cordeiro acertadamente, é celebrado um pacto de mediocridade. Isso se dá porque o método garante aos discentes que o validam duas coisas essenciais, a ilusão de que estão aprendendo algo (e estão, em algum nível, só que muito aquém do possível), e, a garantia de que obterão boas notas no final do semestre, já que para garantir o A basta anotar furiosamente tudo o que o professor disser durante a aula e repetir ipsis litteris na prova, quando palavras-chave acionarão a memória do caderno decorado. É quase como um reflexo condicionado, é quase pavloviano.

E, sem se darem conta disso, com o caminhar do curso, os alunos são moldados pelo método padrão: sabem exclusivamente o que foi exposto em sala de aula, da maneira como foi exposto em sala de aula, quando se põem diante de algum ponto desconhecido de uma matéria que já cursaram culpam imediatamente o professor - "Ah, mas Fulano não ensinou isso!"- se irritam com os mestres propensos a polêmicas e digressões, ficam aborrecidos com qualquer ponderação histórica ou filosófica, começam a condenar a falta de preparo dada pela faculdade ao se depararem no estágio com as dificuldades da prática, et caetera.

E assim passa o grosso do curso de Direito, com a mesma maturidade, seriedade e profundidade intelectual do Ensino Médio. Exceções à regra existem? Naturalmente, mas são exceções à regra. Um professor por semestre? No muito, no muito.

Dizem que a coisa de verdade acontece no mestrado. Eu não sei.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

ENTREVISTA COM MARCELO GALUPPO - 2ª PARTE



“Eu acho que o ensino jurídico brasileiro é ótimo. Eu sou a favor de abrir um curso de Direito em cada esquina”.

“Acho que não existe gênio. Toda vez que alguém se apresenta para mim como sendo gênio, eu sei que estou diante de um “picareta”. É mais um homem que fala javanês”.


7. Como você percebe a qualidade do ensino jurídico?

Eu acho que o ensino jurídico brasileiro é ótimo. Eu sou a favor de abrir um curso de Direito em cada esquina. Eu acho abusivo o controle que a OAB faz nos cursos de Direito. Acho que tem que haver controle pelo Ministério da Educação, mas isso não é assunto da OAB. Acho que é um equívoco histórico. Isso tem que ser revisto em algum momento.

Por que eu acho que tem que ter um curso de Direito em cada esquina? Deixa eu te contar um caso, que um amigo me contou, o Claudio Michelon. Claudio Michelon, hoje, é professor em Edimburgo, era assistente do MacCormick. E ele é professor, também, na Federal do Rio Grande do Sul. E, antes de ser professor da Federal do Rio Grande do Sul, era professor de uma Faculdade do interior, dessas populares, em uma cidade lá perto. Num dia, já professor da Federal, ele voltou a essa cidade, foi a um bar comprar uma água e um rapaz virou para ele e falou: – “Professor, o senhor aqui?”. O rapaz era o faxineiro, estava limpando o bar. ¬Ele falou: – “É, você é quem?”. – “Eu fui seu aluno há não sei quantos anos atrás, tô aqui nesse bar”. Aí o Cláudio falou assim: – “Então, não adiantou nada, você fez um curso de Direito e é faxineiro”. – “Não, adiantou sim! Porque agora eu sou doutor também. Agora eu não bato mais na minha mulher”. A história, ela parece cômica, mas é verdade. Qualquer educação amplia as perspectivas e transforma as pessoas. Não acho que há trabalho para esse tanto de pessoas que se formam em Direito, mas eu acho que a educação superior não serve só para arrumar trabalho para as pessoas. Então, a primeira coisa é essa: eu sou a favor de uma ampliação do número de vagas.

A segunda coisa é o seguinte: eu acho que o ensino jurídico tem alguns problemas. O primeiro problema do ensino jurídico é que nós não formamos pessoas qualificadas para atuar no Direito. O curso de Direito não faz isso. Conversando com o Juventino [Gomes de Miranda Filho], professor da PUC, outro dia, eu falei assim: a advocacia é uma atividade tão complexa, tão complexa, que, às vezes, envolve até Direito. O quê que a faculdade não ensina? Não ensina, por exemplo, a negociar. Não ensina a trabalhar em conjunto. Não ensina a administrar financeiramente um escritório. Há coisas que são fundamentais para a advocacia, para magistratura, para o Ministério Público que não são ensinadas. E aí a gente fica criando profissionais que têm como modelo de atuação a litigiosidade. Isso não tem mais lugar no mundo contemporâneo. O mundo contemporâneo é um mundo de sinergia. As pessoas não são contra, elas são com umas com as outras. Eu fico pensando se a gente não tem uma deformação do caráter dos estudantes, que acaba tornando eles muito litigiosos. Isso é um problema do ensino jurídico. Outro problema do ensino jurídico é um problema de conflito de geração. Os professores se formaram em uma geração muito diferente dos alunos. E, volta e meia, eu ouço um discurso assim: os alunos de hoje são preguiçosos, os alunos de hoje não querem estudar, os alunos de hoje não lêem mais. Na verdade, o que aconteceu foi uma mudança muito radical, a sociedade da informação, a internet. Eu li, há pouco tempo, um artigo, no Valor Econômico, de um professor do Rio de Janeiro. Ele falava o seguinte: quando ele era aluno – isso aconteceu comigo – quando a gente fazia uma petição, a gente tinha que procurar na doutrina, porque era impossível encontrar jurisprudência. Você tinha que pegar volume por volume da revista, olhar uma por uma, e procurar. Enquanto, na verdade, na doutrina, pelo caráter sistematizador, você encontrava a informação muito mais facilmente. Só que, hoje, com a internet, isso se inverteu. É só você ver as petições. As petições são pautadas hoje por jurisprudência. Mas por quê? Porque hoje é possível encontrar facilmente jurisprudência. Então, um problema do ensino jurídico é esse: mudou o mundo e os professores ainda vivem no mundo antigo. Há pouco tempo foi lançado no Brasil um livro do Win Veen, sobrenome de um dos autores, um holandês, chama-se “Homo Zapiens – Educando na Era Digital”. Eu fui, há algum tempo atrás, a uma exposição do Darwin. Estava em um Congresso em Lisboa, tinha um tempo livre, aquela exposição que estava em São Paulo estava lá, e eu fui. Eu olhei os textos na parede e falei assim: “Olha, nem eu não agüento ler esses textos”. Havia um monte de textos escritos na parede. E fiquei me perguntando assim: será que as pessoas mais jovens, com a metade da minha idade, vinte anos, será que vão ler? Não vão ler. Eles querem informações precisas, e uma característica da informação precisa é que ela é curta. Algo mudou no mundo e o ensino jurídico ainda não percebeu isso.

Uma terceira coisa no ensino jurídico é que a experiência mais frutífera que já houve no Direito é a adoção da monografia de graduação. Os alunos eram completamente diferentes antes disso. O processo de formação deles ficou muito mais aprimorado, em termos de capacidade de pesquisar algo para fazer uma petição, por exemplo. Então, eu acho que esses três elementos, eles têm que ser levados em conta. Primeiro, é preciso aumentar o número de cursos de Direito, porque curso de Direito não serve só para formar advogado. Ele tem uma natureza civilizatória, como qualquer curso tem. Segundo, os professores precisam ter em vista que o mundo não é mais o mundo em que eles se formaram. Terceiro, nada é mais importante no curso de Direito do que aquilo que o aluno ensina a si mesmo. Isso é importante porque eu fico pensando, por exemplo, em uma questão muito séria. Eu estou convencido de que a tópica está correta, na concepção dela. E, portanto, acho que é estranha a tentativa dos professores de ensinar Direito Civil, Direito Penal, Direito Comercial de modo sistemático. Algo que precisa ser repensado é o ensino a partir de casos, mas entendendo o que está por trás disso. Está por trás disso a ideia de que é impossível o conhecimento sistemático, abarcante de todo o Direito. Mas, no entanto, quando os professores ensinam, é o velho modelo. Teoria Geral, Obrigações, aí os Contratos, Teoria Geral dos Contratos, depois os Contratos em Espécie, dentro dos Contratos em Espécie, os típicos e os atípicos, depois.... A vida não funciona assim. Esse é o problema.

Especificamente sobre esse ponto...

Ah, tem também a questão do que nós não ensinamos aos nossos alunos. Aquilo que eu estava falando de habilidades que compõe as profissões jurídicas para além do Direito. O Direito é uma parte importante. Eu fiz aquela brincadeira, mas o Direito é uma parte realmente importante. Mas não é tudo. Não é tudo.

Especificamente sobre esse ponto da velocidade, da dificuldade de se deter em textos longos, os manuais chegaram ao fim?

Eu tenho pensado, Giordano, em escrever um livro de Introdução [ao Estudo do Direito] inteiro na internet. O aluno, no início do semestre, compra uma chave, que dura seis meses. Ele compra a chave por dez reais, de forma que seja desestimulado a copiar o livro de outra pessoa. Tenho pensado nisso. Não sei até que ponto eu conseguiria fazer isso, porque, talvez, a minha mentalidade esteja muito no velho modelo. Não sei.

Efetivamente, uma coisa que você pode perceber é que os livros têm diminuído de tamanho. Os livros são cada vez menores, a não ser em Portugal. Mas aqui no Brasil os livros são cada vez menores, não é? Cada vez são menores. Deixa eu dar um exemplo: César Fiuza. César Fiuza é uma pessoa que percebeu isso antes da hora. Não há mais espaço para o Tratado de Direito Privado. Não é mais possível um aluno estudar, um aluno de graduação, estudar Direito Privado através do Tratado de Direito Privado. Agora, ao mesmo tempo, quando eu quero aprofundar em uma questão, uma questão pontual, não vou ter que ler os sessenta volumes do Tratado para descobrir que, na verdade, o que caracteriza a hipoteca é a não transferência do domínio. Eu leio um pedacinho só. Não há mais lugar para esses grandes livros. Por exemplo, quando eu estudei Direito, no início da história da Constituição de 1988, o Celso Bastos e o Ives Gandra, os dois fizeram Comentários à Constituição em vários volumes. Não existem mais comentários à Constituição em vários volumes. Sobre o Código de Processo Civil, há uma obra clássica, que é o comentário da Forense. Hoje, os comentários, Nelson Nery, por exemplo, são em um volume só. Isso é uma marca do tempo. E se você comparar o comentário da Forense com o do Nelson Nery, por exemplo, você vai ver que o do Nelson Nery está estruturado em jurisprudência, enquanto o da Forense é doutrina. O modelo mudou e nós não nos demos conta. Os professores não se deram conta disso. Isso é um problema.

8. O que você pensa do sistema utilizado no último vestibular da UFMG, segundo o qual os egressos da escola pública tiveram bônus de dez por cento e, entre esses, aqueles que se autodeclararam pretos ou pardos tiveram bônus de quinze por cento?

Eu sou a favor das cotas. A PUC, ela não tem uma experiência com cotas, mas ela tem uma outra experiência, com o ProUni. Quando o ProUni foi criado, o medo que havia era o de que o nível dos alunos caísse muito. O que aconteceu, na prática? O que aconteceu na prática é que os pontos necessários, no ProUni, para que o aluno entrasse na PUC são tão altos que só os alunos bons do ensino público foram para a PUC. O desempenho dos alunos do ProUni tem sido maior do que o dos aprovados no vestibular. No caso das cotas, é a mesma coisa. Eu acho que o que vai acontecer é que os alunos que vão entrar pelas cotas são alunos que, por várias injunções, provavelmente nem tentariam fazer o vestibular, apesar de terem condições. Eu acho que a gente vai ter que esperar para ver se vai funcionar ou não. Eu acho que a discussão talvez mais séria é sobre o futuro do vestibular. Isso é uma questão séria.

E o quê você pensa sobre isso?

Não tenho...

Substituir por um sorteio?

O Rubem Alves fala isso. Que seria muito mais justo e muito mais humano sortear. O Rubem Alves não fala em sorteio, não, o Rubem Alves fala assim: pega todos os vestibulandos e solta lá no meio da floresta amazônica. Quem chegar com vida aqui tem vaga. É uma ideia, porque o vestibular é desumano. No caso do Direito, não. No Direito, passar é um pouquinho difícil. Depois que passou, você se forma tranquilamente. Se estudar pouco, pouco eu não digo, mas se estudar o que uma pessoa deve estudar, passa. No caso da Medicina, em que você tem que praticamente fechar uma prova de vestibular, em física, geografia – não estou dizendo que física e geografia não sejam importante – mas fechar uma prova de vestibular para entrar em um curso de Medicina? É uma exigência muito desumana. E que, por definição, exclui pessoas que vieram do ensino público, que tiveram condições de vida mais adversas.

9. O magistério para você é fonte de angústia ou de alegria?

De alegria.

Não te angustia, não?

Não. Por quê? Por que me angustiaria? Qual angústia?

Eu percebo inúmeras angústias envolvidas na tarefa de ensinar. Mas isso, na sua experiência, não é muito relevante?

Mas que tipo de angústia?

Uma angústia é a de lidar, em um espaço tão curto de tempo, com tantas pessoas e tão diferentes...

Eu perdi, como se diz, eu perdi a fantasia, por exemplo, de que seria capaz de memorizar o rosto e o nome dos meus alunos. Já não tenho mais essa ilusão. Alguns eu vou memorizar. Não são necessariamente os melhores. Às vezes, por várias injunções, uma pessoa chama atenção no meio da turma. Não é possível mais isso. O número de alunos ficou muito grande para a gente memorizar tudo. Mas isso não me angustia mais. Isso não me angustia.

Eu sempre tive muita facilidade, por exemplo, eu nunca tive angústia em dar uma aula. Não tenho esse medo: como será que eles vão achar que a minha aula é? Não é o que passa pela minha cabeça. É difícil. Não me angustia. Para mim, o magistério é uma fonte de prazer.

10. Qual é o pior defeito que um professor pode ter?

Ah, eu vou ter que pensar... Não sei, Giordano... eu tenho que pensar um pouco. Essa eu teria que pensar.

11. E se tivesse que começar de novo, o magistério seria a sua escolha?

Seria. Seria. Mas cada vez mais eu acho... Há algum tempo atrás, eu voltei a advogar. Eu parei de advogar depois do meu doutorado e acho que foi ruim. Porque, ao voltar a advogar – claro que depois de eu ter amadurecido, quando eu advogava antes do meu doutorado eu não percebia isso – eu comecei a perceber algumas coisas importantes que estão fora do meio acadêmico. Eu acho, então, que em um saber tipicamente profissional, aplicado, como o nosso, a prática é tão importante quanto a teoria. E acho que é importante que os alunos façam estágio. Acho que as coisas estão ficando um pouco exageradas. Os estágios estão começando no quarto período. Mas eu acho que, mesmo para um aluno que tem pretensões acadêmicas, a experiência prática é enriquecedora.

No caso do novo bacharel, você acha que é possível começar duas carreiras ao mesmo tempo, o magistério e a advocacia, por exemplo?

Eu acho que sim. Acho que sim. Eu acho que, na verdade, é preciso compreender melhor os limites e as especificidades de cada uma delas. Mas a gente só compreende esses limites quando a gente vive as duas. Porque, por exemplo, a tendência dos professores acadêmicos é academicizar tudo, e a dos advogados é praticizar tudo. E acho que falta um meio termo, um equilíbrio, que é importante.

Marcelo, eu agradeço muitíssimo a...

Eu estou aqui pensando qual seria o maior defeito que o professor pode ter. Eu sei qual é o maior defeito. O maior defeito que um professor pode ter é achar que não tem defeitos. O problema é que eu sei de tantos defeitos que eu tenho, e acho que eles são tão graves, que eu não sei qual seria o pior. Eu costumo dizer para os meus alunos o seguinte: Eu tenho a impressão de que a vida acadêmica é mais ou menos como "O Homem que Falava Javanês", do Lima Barreto. Ou, então, pra ficar mais professoral, tem a aula do Roland Barthes. Roland Barthes fala que, quando a gente começa a vida intelectual, a gente ensina mais do que sabe. A gente não entende as coisas direito, mas ensina assim mesmo. E, com o passar do tempo, nós passamos a ensinar o que sabemos e, depois, quando a gente realmente começa a saber as coisas, menos do que a gente sabe. Mas que o objetivo do intelectual é esquecer o que sabe. O bom professor é aquele que esqueceu tudo o que sabia.

Tudo isso tem a ver com a mesma ideia. Eu tenho muito medo, Giordano, de pessoas que se acham gênios. Eu não acredito que existam gênios. Eu não acredito em inteligências brilhantes. Ao contrário, eu percebo inteligências multifuncionais. Acho que gênios, que escrevem milhões de livros, que conhecem todo o Direito, mas que têm uma vida emocional falida...Não sei, acho que o equilíbrio é importante. Acho que não existe gênio. Toda vez que alguém se apresenta para mim como sendo gênio, eu sei que estou diante de um picareta. É mais um homem que fala javanês.

Marcelo, muito obrigado pelo carinho, pela atenção e por tudo que o privilégio de ter sido seu aluno me proporcionou ao longo do tempo.

A maior felicidade de um professor é ver que seus alunos conseguem trilhar um caminho próprio. Fazer o seu próprio caminho. Fazer a sua própria luz brilhar. Acho que é o maior prazer que um professor tem.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

ENTREVISTA COM MARCELO GALUPPO



Marcelo Campos Galuppo é doutor em Direito pela UFMG, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/MG, presidente da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito e também do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. No dia 24 de junho de 2009, ele muito gentilmente nos concedeu a seguinte entrevista. Nenhuma das etapas, da seleção das perguntas à edição final do texto, teria sido possível sem a eficiente colaboração de Santiago Pinto.

PRIMEIRA PARTE

“Eu acho que é muito importante pensar nos mestres não como aquelas pessoas que foram nossos professores, necessariamente. Mas como pessoas que, de alguma forma, fizeram isso: ajudaram a gente a ser diferente do que a gente era antes”.

1. O quê significa ser professor?

Acho que é transformar vidas. Acho que isso é que é educação. Acho que ser professor é isso.

2. E quais foram seus grandes mestres?

Ah, difícil. Eu tive grandes mestres. E cada um deles por uma razão muito distinta. Eu acho que é muito importante pensar nos mestres não como aquelas pessoas que foram nossos professores, necessariamente. Mas como pessoas que, de alguma forma, fizeram isso: ajudaram a gente a ser diferente do que a gente era antes.

Por exemplo, apesar de eu nunca ter sido aluno do [João Baptista] Villela, eu sempre conversei muito com ele. E eu tenho me perguntado muito como é possível que um homem – eu tenho perguntado isso para todo mundo, sabe Giordano – como é possível que um homem, trinta anos atrás, com a Constituição anterior, com o Código Civil anterior, tenha se antecipado a toda doutrina do Direito de Família, por exemplo, na questão da desbiologização da paternidade?

Um outro exemplo é o [José Alfredo de Oliveira] Baracho. O Baracho me marcou muito porque ele me ensinou uma coisa muito importante sobre professores universitários: é que a coisa mais importante que o professor universitário pode fazer é abrir oportunidades para os seus alunos. Isso é uma coisa muito importante para os professores fazerem e eles nem sempre se dão conta de como isso é importante para a vida das pessoas.

Interessante, dos professores que eu tive na PUC, talvez os que mais me tenham marcado, no curso de Direito, não foram propriamente professores de Direito. Foi um professor de EPB (Estudos de Problemas Brasileiros), que é o Alisson – porque eu sou da época do EPB ainda. Você não pegou EPB?

Não.

Um professor de Cultura Religiosa, que é o Paulo Agostinho, não sei se foi seu professor?

Também não.

Mas você pegou Cultura?

Sim, mas com outro professor.

E uma professora de Filosofia, foi minha primeira aula na Universidade, que é a Sílvia, que foi coordenadora da Filosofia. São professores que marcaram muito na graduação.

Menelick [de Carvalho Netto] me marcou muito, porque aprendi muitas coisas sobre a docência com ele.

E um professor, em especial, que me marcou muito também, foi um professor da Filosofia, aqui da FAFICH (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas), que é o José Henrique dos Santos. Me marcou muito porque o José Henrique é um hegeliano, mas é a pessoa mais aberta que eu conheço a orientar pessoas com outras orientações. Eu aprendi muito com o José Henrique nesse ponto.

Mas é difícil falar de um professor marcante. Eu acho que o professor mais marcante que eu tive, na verdade, foi o movimento estudantil. Talvez tenha sido o lugar em que eu tenha aprendido mais na Universidade.

Tive professores marcantes, também, no ensino básico. No ensino médio, para ser exato. Tive uma professora muito marcante de português. Ela, por exemplo, desenvolveu em mim uma vontade muito grande de conhecer línguas. E é interessante, porque eu sou do interior, e quando eu mudei para Belo Horizonte, assim que eu me matriculei na Faculdade, eu me matriculei também na Cultura Inglesa, na Aliança Francesa, depois no Göethe, depois Cultura Alemã, e isso foi decisivo para a minha carreira. Conhecer línguas é algo decisivo em qualquer carreira jurídica, seja como advogado, seja, sobretudo, como professor. É fundamental. Então, é uma pessoa que me marcou muito.

Eu tive um professor de Civil, também, que foi muito marcante. Foi o [Antônio Ribeiro] Romanelli. De todos os professores de Direito que eu tive na graduação, quem mais me marcou foi o Romanelli. Eu aprendi muito com o Romanelli, que foi meu professor de Teoria Geral do Direito Civil. Isso me permitiu ter uma base muito boa, muito sólida em Teoria Geral do Direito Civil, em Direito Civil em geral. Outra pessoa que me marcou muito foi o Patrus [Ananias de Souza]. Fui aluno dele de Introdução. Foi ele quem me apresentou ao Grande Sertão: Veredas. A [Ministra] Carmem Lúcia, também, exerceu uma influência muito grande sobre mim.

3. Marcelo, em suas aulas, você faz constantes referências à literatura, ao cinema, à gastronomia, à teologia, essa prática deve ser atribuída a uma manifestação espontânea da sua personalidade ou ela é uma estratégia pedagógica deliberada?

Ela é uma estratégia pedagógica deliberada e, ao mesmo tempo, uma manifestação da minha personalidade.

Eu me preocupo muito com uma coisa, Giordano, que é a fragmentação do saber. Eu acho que o Direito não existe em um vácuo independente dos outros saberes. E eu acho que aumenta a compreensão dos alunos nós lançarmos mão desses outros saberes para eles poderem aprender o conteúdo do Direito, em geral. No meu caso, que é a Filosofia do Direito, isso fica mais evidente ainda. O diálogo ainda é mais evidente com os outros conhecimentos. Com a arte, com a literatura.

4. Em seu site (marcelogaluppo.sites.uol.com.br), você disponibiliza uma lista dos livros que ninguém deve deixar de ler.

Meu site, coitado, está muito desatualizado. Ontem, um aluno meu me falou que estava me seguindo no Twitter, mas que ele morreu de tédio, porque há dez dias eu estou preparando uma aula. (Risos)

Mas agora eu tenho um blog novo [www.marcelogaluppo.com]. E estou tentando twittar com mais freqüência [marcelogaluppo].

Bom, mas os cem livros estão lá, dispostos em uma ordem cronológica. E se você tivesse que fazer sugestão semelhante a quem, por algum motivo, só tem possibilidade de ler três, quais você escolheria?

Independente do tamanho dos livros?

Sim, ele tem tempo para ler três.

Tempo para ler três. Então, eu acho que a Bíblia. Acho que Grande Sertão: Veredas. E acho que Dom Casmurro.

5. Há outra coisa de que me lembro, com muita atualidade, de suas aulas. É a menção de que, em suas viagens, você gosta de visitar os cemitérios das cidades por onde passa. A visita a um túmulo específico causou alguma experiência significativa?

Eu acho que o túmulo que mais me impressionou foi o de Camões, em Lisboa. Ele está no Mosteiro dos Jerónimos. Eu fiquei muito emocionado quando estive lá. É interessante porque são quatro túmulos, no Mosteiro dos Jerónimos. Um é de alguém ligado à história portuguesa. Não me impressionou muito. Os outros três são Vasco da Gama, Fernando Pessoa e Camões. E eu acho que gosto mais de Fernando Pessoa do que de Camões, mas eu fiquei emocionado foi no túmulo de Camões.

Esse tipo de visita tem alguma coisa a ver com a possibilidade de provocar alguma reflexão sobre a morte e o sentido da vida?

Eu acho que tem muito com a minha percepção de Deus. Eu acho que a morte faz parte da vida. Ela não é uma interrupção. É muito interessante, várias pessoas falam: “Olha, a vida é muito curta, então você tem que aproveitá-la da melhor forma possível”. Eu costumo responder para essas pessoas é que o problema é se eles estiverem errados, e a vida for eterna. Esse é o problema. É tudo uma questão de perspectiva. E é muito interessante que eu sinto uma presença. Um lugar onde eu me sinto diante de Deus é em cemitérios. Eu sinto a presença de Deus.

Por exemplo, uma vez eu fui a um cemitério, o mais impressionante que eu já vi na minha vida. É um cemitério judeu lá em Praga. Ele é impressionante, é realmente impressionante. É um cemitério que, há muito tempo, dois ou três séculos, não é usado mais, mas que foi usado por seiscentos, oitocentos anos. Então, por causa disso, à medida que lotava o cemitério, eles iam acumulando mais camadas de terra por cima. Pegavam a lápide que estava embaixo e colocavam em cima, e uma outra na frente. Então, tem milhares de lápides em poucos metros quadrados. E é muito interessante, porque a forma como os judeus convivem com os seus mortos é muito diferente do que nós fazemos. Não sei se você já presenciou um sepultamento judaico. É muito interessante, primeiro porque o corpo é considerado imundo. Então, ao contrário do que os cristãos fazem, por exemplo, não há um velório dos mortos. Eles ficam separados, porque os vivos não podem ter contato direto com o corpo. Mas, na hora do sepultamento, o rabino, no caminho de onde fica o corpo até a sepultura, ele para três vezes. E, como, geralmente, nesses sepultamentos, há muitos que não são judeus, ele explica porque eles fazem isso: porque a família se recusa a entregar o corpo para a morte. Mas é muito bonito, porque, passado algum tempo, eles fazem uma cerimônia, que é a descoberta da Matseiva. E sempre que você vai a um cemitério judaico, ao invés de flores, porque não se usa flores nos funerais judaicos – é um cemitério sem flores – eles usam pedras. Vocês devem ter visto isso naquele filme, A Lista de Schindler. No final, os judeus que sobreviveram ao holocausto e que estavam vivos, iam ao túmulo do Schindler e colocavam pedras. Isso é muito bonito em um cemitério, porque a pedra, antes de mais nada, simboliza algo que dura eternamente. É muito diferente da flor. A flor é efêmera. Mas a pedra dura constantemente. Então, eles vão colocando as pedras, porque a memória deles é para sempre.

6. Em seu livro de metodologia da pesquisa...

Deixa eu te contar uma coisa sobre esse livro de metodologia.

Conte.

Uma colega minha me perguntou: – “Marcelo, como é que se faz isso?”. Eu respondi: – “Eu não sei!”. – “Mas você não escreveu um livro de metodologia?”. Eu falei: – “Escrevi”. – “Por que você escreveu?”. – “Porque eu odeio metodologia!”. – “Então, porque você escreveu o livro?”. – “É exatamente porque eu odeio! Eu não preciso ficar com essas coisas na cabeça! Então, eu escrevi para ficar livre”. (Risos)

E eu uso o seu manual para a mesma finalidade. Eu entrego aos meus orientandos e digo: “Leia, que eu não me ocupo disso”.

As pessoas me perguntam como se eu adorasse metodologia.

Mas a pergunta não tem muito a ver com a própria metodologia. É sobre uma frase que você diz lá: “Há muitas teses de doutoramento que são, na verdade, dissertações de mestrado.” Isso tem acontecido muito?

Eu acho até que tem mudado um pouco. Eu acho que tem melhorado. Engraçado, eu acho que você vai poder confirmar isso que eu vou dizer, a partir da sua experiência na UFMG. Hoje, eu tive uma conversa com os alunos do mestrado e do doutorado, porque tem um fenômeno que está acontecendo e que tem me preocupado muito, e eu acho que na UFMG deve acontecer a mesma coisa. Eu tenho percebido que os alunos do mestrado têm um compromisso maior com a Pós-Graduação do que os alunos do doutorado. Não sei como é que você percebe isso na UFMG.

Não sei. Acho que eu ainda não consigo fazer essa leitura.

Produzem mais, são mais produtivos, publicam mais. Não sei, eu acho que tem alguma coisa errada com o doutoramento em Direito no Brasil. Não saberia dizer exatamente o porquê, mas, via de regra, eu acho que os alunos do doutorado tendem a ser menos compromissados. Talvez, porque eles têm um prazo maior, quatro anos, enquanto os alunos do mestrado têm dois anos. Então eles têm que correr, porque têm que fazer em dois anos e dois anos passam-se muito rapidamente. Talvez seja isso. Mas o fato é que tem muitos trabalhos de doutorado que têm uma qualidade ruim, como trabalhos de doutorado.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

ALUNA E PROFESSORA DEBATEM QUESTÕES IMPORTANTES PARA A UNIVERSIDADE



Um dos textos que disponibilizamos logo na estréia do blog foi o que contém a entrevista com a professora Miracy Gustin.

No dia em que ela foi realizada, logo após a última pergunta, uma das pessoas presentes, a mestranda Nara Pereira Carvalho, pediu a palavra.

Em seguida, dirigiu-se à Miracy, referindo-se a um concurso para Professor Titular de Filosofia do Direito, recentemente realizado na Faculdade de Direito da UFMG.

O conteúdo da conversa, que passamos a transcrever, me fez chegar a uma conclusão definitiva.

Miracy não é titular.

De direito, Miracy não é titular.

Nara - Professora, posso lhe fazer uma pergunta? É uma questão que me aflige há muito tempo. Eu já sei mais ou menos a sua resposta. Mas é que isso tem me causado angústia. É uma pergunta até um pouco atrevida: Por que a senhora não fez o concurso para titular?

Miracy - Ninguém acredita na minha resposta. Mas é a resposta que eu solicitei à Diretoria que encaminhasse à Banca Examinadora e que continuo a dar. Eu entrei para o concurso de titular, fiz a tese – que estou querendo publicar –, reuni todos os meus documentos, meu currículo, etc. E entrei sabe por quê? Porque fui muito pressionada por alunos, alunos a quem quero muito, certo? Diversos grupos de alunos me procuraram e pediram para eu entrar. Mas duas coisas, depois, me fizeram desistir. Uma principal, que foi o motivo ético. Eu não me senti bem quando vi que iria prestar um concurso para titular e daí a um mês e meio eu estaria aposentada pela compulsória. É que esse concurso era para ter sido feito há mais tempo. Acho que, se entre a posse como titular e minha aposentadoria tivesse ocorrido um intervalo de, pelo menos, um semestre letivo, eu me sentiria mais à vontade. Talvez me sentisse ainda mal, mas um pouco menos. Mas, com aquela proximidade da aposentadoria senti grande mal-estar. É como se eu estivesse rompendo com toda a minha ética de professora. Ou seja, vou fazer um concurso de titular só para ganhar melhor. Porque era só para isso. Não teria outra razão na minha vida. Eu não me incomodo com título. Eu nunca me incomodei. O título era de muito pouca importância para mim. A única importância era a mudança de salário, e àquela época, por situações diversas, eu precisava muito desse aumento salarial! (Risos). Mas, justamente isto me causou um problema muito sério: a questão pouco ética de eu estar me dispondo a realizar um concurso só para uma mudança salarial. Isso seria um absurdo em minha vida de professora. E também quando fiquei sabendo que estava correndo na internet algo pejorativo em relação aos demais candidatos. Isso me causou grande mal-estar. Havia grupos internos à Faculdade abrindo uma verdadeira guerra, muito pouco ética no sentido das relações de cordialidade acadêmica. Quando soube disso, fortaleceu muito aquela primeira motivação, e a maior, que era a ética em um sentido de respeito às regras institucionais. Isso fortaleceu muito a minha postura.

Nara – Então tem um quê político na sua decisão?

Miracy – Acho que sim. Também...

Nara – Professora, à época em que soube disso, mesmo com o meu atrevimento, eu me contive o máximo para não a procurar, primeiro porque eu ainda não a conhecia, e depois porque eu não me achava na condição de convencer uma pessoa tão bem informada do contrário. Mas, de qualquer forma, a senhora já é titular, de fato, aqui na Faculdade. Titular não é por conta do salário. É por conta de posicionamentos, por conta do conjunto de ideias, por conta de modificar e de atuar na vida das pessoas. O problema é que, quando a senhora desistiu do concurso, isso acabou trazendo algumas limitações para a Instituição. E isso, na época, me afligia demais: será que alguém mais próximo não falou nisso, não ponderou isso com ela? E eu fiquei imensamente triste, até hoje me sinto mal por não ter ido atrás, ao menos tentado expor o que pensava à senhora.

Miracy - Eu discuti isso muito com os grupos que me procuraram aqui dentro da Faculdade e também com a minha família. Quando se abre um edital público, de conhecimento em todo Brasil, espera-se pelo comparecerimento de grande número de candidatos. Mas isso não aconteceu. Eu mesma, inclusive, me afastei. O que é uma pena, pois, as seleções devem mobilizar maior número de candidatos. Isto é salutar e instigante, atribui sempre grande legitimidade para aqueles que saem vitoriosos. Ultimamente, as seleções para a docência universitária não têm mobilizado um número maior de candidatos. Aqui em nossa Faculdade ou em outras tantas. Agora, essa questão de ser titular, o que significa isso? Olha, o antigo catedrático significava alguma coisa, porque o antigo catedrático orientava seus assistentes, orientava sua cadeira, apesar de eu ser absolutamente contrária às antigas cátedras, aquele instituto vitalício. Bem ou mal, o catedrático tinha, pelo menos, essa função de orientar. Hoje, a mudança entre as escalas da carreira de professor, dentro das universidades, não tem qualquer significado! Eu passei de professora adjunta para associada. O que é que eu faço a mais como professora associada? Nada. Esse título não me atribui qualquer função diferenciada. Ou seja, é uma escala apenas de mudança salarial. Não tem novos compromissos. Deveria ter. O professor assistente, supostamente, passou por níveis maiores de aprofundamento, ele necessita ser, no mínimo, mestre. Então, o professor assistente, o professor adjunto, dentre outros níveis na hierarquia acadêmica, deveriam se incumbir de conversas com professores substitutos, por exemplo. Conversas sobre magistério, sobre o conteúdo das disciplinas, sobre orientações para atuação em sala de aula. Mas nós não temos essa função de orientação. Você orienta outras pessoas sem precisar ser titular. Por isso é que eu pensei: por que vou ser titular? Tudo bem, o único motivo, o que vai me impulsionar, é ter um salário maior. Mas se for só por isso eu não quero. Já estou à beira de uma aposentadoria, isto não seria uma postura de um educador ético.

Nara – Tudo bem, do modo como a carreira está organizada, seria apenas mais um título, de certa forma mais vinculada a poder, a “status”...

Miracy – Se tivesse uma função, eu teria pensado na Instituição. Se tivesse essa função.

Nara – Querendo ou não, um título traz mais responsabilidades e a senhora estava plenamente apta a exercer isso...

Miracy – Infelizmente não. Eu gostaria que fosse assim. Que tivéssemos maiores responsabilidades.

Nara – O que é politicamente justificável...

Miracy – Pois é. Mas isso é incorreto. A boa remuneração não deveria estar ligada ao fato de ser ou não titular. O professor, em qualquer caso, precisa ser bem pago. Às vezes, as pessoas ficam dando aulas em inúmeros locais, ou fazendo projetos que não querem fazer, porque precisam de um acréscimo salarial. Isso é muito indigno para o professor. Ele ter que fazer isso. E, com isto, nega-se aquilo que eu falei no início [da entrevista concedida ao blog]: o que é ser professor e o que deveria ser uma Faculdade de Direito. O Direito, meus amigos, é algo muito bonito. Não há conteúdo mais universal do que o do Direito. O Direito está no nosso cotidiano, está em todas as horas da nossa vida. Então, formar profissionais no campo do Direito é de uma beleza infinda. Só que a gente acaba transformando isso em um grande comércio. E isso eu não vou fazer! Não me permitirei tal distorção.

sábado, 4 de julho de 2009

ALUNO: ALÉM DE ETIMOLOGIA, LUZES E ALIMENTOS

Contribuição enviada por João Vítor Rodrigues Loureiro,
aluno, ou melhor, estudante do 9º período
da Faculdade de Direito da UFMG


Desde os meus quinze anos me incomodo com a palavra “aluno”. Desde então, me faz coçar as pestanas, me bate um sentimento de estar encurralado por livros empoeirados e um homenzinho arrogante à minha frente, de unhas carcomidas e óculos na ponta do nariz, a apontar seu dedo envelhecido a fórmulas mirabolantes e frases avulsas, com uma expressão obscura e inquisidora.

Deve ter sido culpa de meu professor de Português da oitava série. Ele parece ter puxado minha cadeira de quatro pés, ao anunciar numa aula que não éramos alunos. ALUNO, aquela palavrinha tão insignificante que nunca havia me incomodado, que era parte do meu dia a dia, eu aluno, ele, professor. Professor professava qualquer coisa, era uma espécie de profissão de gente que acreditava, se não fosse no futuro daquelas cabeças avoadas de quatorze, quinze anos, acreditava pelo menos que algum dia receberia um aumento salarial.

Mas aluno...O que fazia o aluno? “Alunava”, avoava, lá pela Lua, talvez.

Aí veio a lição etimológica: “aluno vem do latim, meus caros, de a - (partícula de negação, ausência) e lumnus (luz)”. Caí em mim: eu era um reles aluno, criaturinha perdida na sala escura, sem qualquer luz. A luz estaria com o professor velho do dedo carcomido e sua peruca de filósofo iluminista. Não! (não que o professor que me esclareceu o conceito tivesse medonhos traços).

Acreditei nisso até hoje. Alguns vieram tentar me esclarecer (mais uma palavra que indica essa relação entre luz e trevas no jogo do conhecimento) que “aluno” na verdade teria origem em “alere” (nutrir, alimentar, amamentar) numa relação quase maternal entre discente e docente, e teria sido consagrado antes de lições escolásticas e modelos medievais de ensino universitário. Não sei, não encontrei fontes seguras de que a etimologia que havia aprendido estava errada.

Palavras escondem contextos culturais; como um conceito pode chegar vivo até os dias de hoje?

Independente de etimologia, espero não deparar com seres iluminados. Eles ofuscam a vista dos estudantes com sua vaidade, sem chamar atenção ao que importa. Conhecimento.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

SILVIO ROMERO, QUASE DOUTOR


Na história das Academias Jurídicas brasileiras, poucos episódios terão sido tão extraordinários como a defesa de teses de Silvio Romero. Em 1875, quando o grande polemista, autor de História da Literatura Brasileira, tentava obter o grau de doutor em Direito, junto à Faculdade do Recife, algo inesperado aconteceu. Para deleite dos mais curiosos, da ata de tão memorável sessão, elaborada por Paula Baptista, e reproduzida por Clovis Bevilaqua, transcrevo o seguinte trecho:

"Em seguida, [o Dr. Coelho Rodrigues] passou à segunda tese de direito romano, concebida nos seguintes termos: “O 'ius in re' compreende também a posse”. E, depois de uma discussão mais moderada que as duas precedentes, pergunta aquele doutor: – qual a ação, que garante esse Direito real, no seu entender? – Isto não é argumento, responde o doutorando – Por quê? pergunta aquele. – Porque, responde-lhe este, não se pode conhecer a causa pelo efeito. – Pois admira-me, torna o primeiro, que, tendo-se mostrado o senhor tão contrário ao método metafísico, na epígrafe das suas teses (a qual repetiu, traduzindo o inglês, em que estava escrita), recuse agora um argumento 'a posteriori'. – Nisto não há metafísica, Sr. Doutor, diz o segundo, há lógica. – A lógica, replica o argüente, não exclui a metafísica. – A metafísica, treplica o doutorando, não existe mais, Sr. Doutor; se não sabia, saiba. – Não sabia, retruca este. – Pois vá estudar e aprender para saber que a metafísica está morta. – Foi o senhor que a matou? Pergunta-lhe então o Dr. Coelho Rodrigues. – Foi o progresso, foi a civilização, responde-lhe o bacharel Sílvio Romero, que, ato contínuo, se ergue, toma dos livros, que estavam sobre a mesa, e diz: – Não estou para aturar esta corja de ignorantes, que não sabem nada. E retira-se, vociferando por esta sala afora, donde não pudemos mais ouvi-lo".

(BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2.ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 144).