quarta-feira, 30 de novembro de 2016

E pra que serve a monitoria, afinal?

“Dar monitoria” é uma expressão muito comum na Faculdade de Direito da UFMG e significa a atividade em que o monitor, geralmente na véspera de uma prova difícil, explica os principais tópicos da matéria.

Se eu não estiver enganado, alunos e monitores adoram a iniciativa. Uns porque podem receber ajuda, sempre bem-vinda, nos momentos que antecedem a avaliação. Outros porque experimentam o raro prazer de se sentirem importantes.

Saindo da superfície, no entanto, o que a prática revela?

Em primeiro lugar, a centralidade do processo de avaliação na estrutura da educação superior, que a tudo sobrepuja e a tudo contamina. Os alunos, em geral, não solicitam “monitoria” porque desejam se aprofundar em determinado tema ou obter orientação sobre como conduzir uma investigação, mas simplesmente porque esperam encontrar o caminho das pedras.

Em segundo lugar, a crônica dependência das aulas expositivas. Para recuperar as informações que o professor ofereceu, por meio de aulas expositivas, agora, os estudantes escutam o que os monitores têm dizer, também por meio de aulas expositivas.

Numa estrutura em que o professor sabe tudo e os estudantes nada sabem, o monitor é o sujeito que “quase sabe” ou que já sabe um pouco e, portanto, está apto a "passar" adiante o conhecimento.

E a monitoria, praticada desse modo, contribui para a reprodução de um sistema profundamente viciado, em que o estudante foge da responsabilidade de dirigir a própria formação, com economia de esforços e sofrimento, é verdade, mas à custa de sua eterna menoridade intelectual. 

sábado, 26 de novembro de 2016

Sinceramente, não sei o que fazer

Acabei de ler o que os alunos escreveram sobre o andamento do semestre. Entre outras coisas, pedi que indicassem pontos positivos, pontos negativos e sugestões. Mas não sei como interpretar os dados. E o pior é que, sinceramente, não sei o que fazer.

Entre os pontos positivos, muitos estudantes mencionaram a utilização de novos métodos de avaliação, o caráter mais aberto e reflexivo das aulas e a maior liberdade para a construção das trajetórias acadêmicas.

No entanto, encontrei, entre outras, as seguintes frases:

“A liberdade de escolha em excesso pode ser mais prejudicial do que benéfica”.

“Apesar de considerar a prova uma coisa negativa, penso que é muito importante, pois força o aluno a estudar”.

“Em alguns momentos, faltou engajamento da turma, pois estamos acostumados com provas e damos menos importância para as demais atividades”.

“Sugiro a realização de ao menos uma prova com o conteúdo estudado”.

“Eu gostaria de realizar mais provas no método tradicional”.

“Sugiro aumentar o número de aulas expositivas”.

“A quantidade de aulas expositivas ficou aquém do necessário”.

“Sugiro mais aulas e atividades focadas na matéria em si”.

“Sugiro trabalhar mais os conceitos presentes no Código”.

“Senti muita falta do professor passar a matéria no quadro”.

“O professor deveria ter passado mais conhecimento para os alunos”.

“Senti falta do ensino dogmático tradicional”.

“O número de aulas alternativas foi muito frequente”.

“Senti falta do conteúdo de Direito Privado propriamente dito”.

“Faltou objetividade nas aulas teóricas”.

“Considero que, no caso do curso jurídico, ministrar o conteúdo de forma direta funciona melhor que do que ensinar por meio de dinâmicas”.

“Poucas aulas teóricas, falta de interesse do professor”.

“Faça chamada, professor!”.

Agora, estou aqui, sentado, de frente para o computador, pensando. 

Se o papel do professor é ensinar, meu desempenho deve ter sido um fracasso. Ensinei muito pouco.

Mas não estou seguro se esse é o papel do professor.

Guardo comigo a estranha mania de não desconectar meios de fins. Os fins, quando bons, devem ser obtidos por meios igualmente bons. Não consigo, por exemplo, achar que passar horas e horas estudando é uma coisa boa se, na base, está apenas o medo de ser reprovado. Não consigo ver a graça de ter a sala repleta de alunos simplesmente aguardando o momento de dizer que estão presentes.

Se estudo e participação resultam de escolhas verdadeiras, penso que são coisas boas. Mas não sei o que dizer quando nascem de outras fontes.

De todo modo, ao planejar o próximo semestre letivo, preciso meditar no papel do professor.

Sinceramente, não sei o que fazer.

Mas não estou triste. Nem preocupado. Só não sei o que fazer.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O Valor Pedagógico da “Cola”

A “cola” é uma instituição nacional. Em todos os níveis de ensino, alunos tentam realizar e professores tentam evitar a fraude nos processos de avaliação. Uns e outros desenvolveram, ao longo do tempo, as mais variadas técnicas para a obtenção dos fins desejados. Inovações tecnológicas, no entanto, produziram seus impactos também nesta dimensão do cotidiano, facilitando a vida de uns e dificultando o trabalho de outros.

Na minha vida de estudante, a “cola” nunca foi uma estratégia de relevo. Os colegas não me pediam, pois sabiam que eu não tinha muita habilidade para fazer a coisa com discrição. Eu mesmo não pedia, primeiro porque sempre achei desonesto e depois porque, em geral, confiava mais em mim do que nos outros. Também nunca me dei ao trabalho de preparar, com antecedência, aqueles arquivos secretos para consultar no momento da avaliação. Na verdade, mesmo sendo um aluno bastante faltoso e muito relapso em certas atividades escolares, nunca deixei de estudar o suficiente para evitar um vexame nas provas. Mas preciso confessar dois pecados, os únicos de que me lembro agora, ao pensar no tema. No ensino médio, precisando desesperadamente de uns pontinhos em Química, aceitei a colaboração de uma colega na avaliação final. E creio que isso foi decisivo para a obtenção do resultado positivo. Na graduação em Direito, tendo me ausentado num dia de prova, fiquei sabendo que uma colega havia obtido uma folha extra e feito uma prova com o meu nome. E não fiz nada para evitar a confirmação da fraude.

Na minha experiência como professor universitário, passei por algumas fases em relação ao tema. 

A primeira, própria de minha imaturidade, foi a de vigiar, com a máxima atenção, e punir, com o máximo rigor. Nesse tempo, eu tomava as tentativas de “cola” como ofensas pessoais. Algumas vezes, não conseguia conter a irritação. Em todas as abordagens, recolhia a prova e avisava, em público, que o infrator receberia nota “zero”. Estou seguro de que a neurose me levou a ser injusto com muitos alunos.

Na segunda fase, consciente da complexidade do tema e dos limites da posição inicial, passei a adotar condutas profiláticas, como, por exemplo, pedir para que os alunos mais agitados mudassem de lugar na sala de aula. Nas abordagens, aos invés de sentenciar solenemente a nota “zero”, comecei a dizer, em tom mais ameno, que o estudante deveria realizar outra prova, uma vez que o primeiro método de avaliação não estava funcionando bem.

Antes de falar um pouco da fase atual, preciso dizer que as duas anteriores possuem características comuns. Nelas, eu sempre pressupunha que a “cola” era um ato de pura desonestidade intelectual. Em todas as avaliações, o que estava em jogo era a necessidade de verificar se os alunos haviam absorvido uma parte substancial do conteúdo estudado. E finalmente, eu compreendia que o meu papel, enquanto professor, era exatamente o de medir a quantidade de conteúdo apreendido pelos estudantes.

Hoje, muito embora continue achando que a "cola" sempre contém certa dose de desonestidade, faço a mim mesmo as duas perguntas que, agora, gostaria de compartilhar com estudantes e professores.

Em que medida a "cola", principalmente no ambiente universitário, não é um indicador seguro da ausência de autonomia dos estudantes na construção de sua trajetória acadêmica?

Em que medida a "cola", procedimento seguramente equivocado, não é também uma forma de protestar contra certos modos também equivocados de conduzir o processo de avaliação?

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Desafios do Ensino do Direito Civil (e do Direito Mercantil também)*

Receber o convite para voltar à PUC/MG é sempre uma grande alegria. Rever amigos queridos, passear por esses jardins maravilhosos e sentir a nostalgia de estar novamente em casa. 

Falar para mestrandos e doutorandos em Direito Privado é ainda mais especial. Tenho muito orgulho de ter sido o primeiro mestre em Direito Privado do Programa do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/MG. E me lembro com muito carinho das conversas com meu orientador, professor César Fiuza, e das aulas com Marcelo Galuppo e Taisa Macena, mestres queridos. Para não falar da convivência com amigos que levarei por toda a vida.

Os mais atentos devem ter percebido que o título da apresentação é uma forma de provocar os colegas de Direito Empresarial. A expressão "Direito Mercantil" é bem antiga e está perdida em algum momento de nossa história. Gosto de utilizá-la só para dizer que é difícil respeitar um campo do Direito que tem problemas tão graves de identidade. Já foi Direito Mercantil e, agora, é Direito Comercial, pra uns, e Direito Empresarial, pra outros. Direito Civil é Direito Civil, desde sempre e para todos. Muito mais simples, não?

Mas ninguém deve levar isso a sério. É só uma brincadeira entre irmãos. Talvez, na verdade, entre o pai e um filho rebelde. De todo modo, uma brincadeira. Direito Civil e Direito Empresarial, apesar de diferenças importantes, têm desafios comuns quando o assunto é ensino de graduação. E é sobre isso que vamos conversar.

No início, pretendo apenas sugerir algumas peculiaridades do Direito Empresarial, que o tornam ligeiramente diferente do Direito Civil. Depois, passaremos à indicação de desafios. Por fim, deixarei algumas sugestões.

I. Peculiaridades do Direito Mercantil

O Direito Mercantil, quer dizer, Comercial, ou melhor, Empresarial tem caracteríscas que o distinguem do Direito Civil. Nesse momento, quero apenas apontá-las. O estudo de cada um desses elementos poderia produzir resultados interessantes.

A) Em relação à história

Enquanto é possível identificar elementos de Direito Civil no direito dos povos sem escrita e, com a máxima clareza, nos vários ordemanentos jurídicos da antiguidade, os primórdios do Direito Mercantil não podem ser localizados antes da idade média.

B) Em relação ao ensino jurídico

Na experiência portuguesa, o ensino do Direito Mercantil somente teve início em 1836. Curiosamente, na experiência do Brasil independente, o ensino do Direito Civil e do Direito Mercantil nasceram ao mesmo tempo. Com a fundação dos cursos jurídicos brasileiros, em 1827, foram criadas duas cadeiras para aquele e uma para este.

C) Em relação à codificação

Na experiência jurídica brasileira, a demora para a aprovação do tão sonhado Código Civil produziu situações inusitadas. Uma das mais interessantes é a existência de um Código Comercial, aprovado em 1850, apto a disciplinar um campo de direito privado especial, antes da aprovação de um Código Civil, que deveria funcionar como principal fonte de direito privado comum. 

Por outro lado, em 2002, o nosso segundo Código Civil dedicou um livro ao Direito de Empresa, revogando grande parte do antigo Código Comercial e oferecendo um conjunto significativo de regras para as relações entre empresários.

Também não deve escapar ao observador a existência de um projeto de Código Comercial atualmente em debate no parlamento brasileiro, muito embora não haja sinais públicos de que a tramitação deva chegar a termo.

D) Em relação à autonomia

Mesmo nas edições mais recentes, os manuais de Direito Empresarial gastam algumas páginas para provar a autonomia desse campo de estudo. Como disse o Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa: “Quem muito se evita, se convive”. O simples fato de insistir na autonomia prova que a tese da autonomia não é assim tão segura. Ninguém discute, por exemplo, a autonomia científica do Direito Civil ou do Direito Constitucional.

A tese bastante original de Teixeira de Freitas de reunificação do Direito Privado, apresentada na segunda metade século XIX, merece consideração.

Também seria interessante conhecer a sempre mencionada experiência de unificação promovida pelo Código Civi italiano, em 1942, para não falar do recentíssimo Código Civil e Comercial da República Argentina, de 2015.

II. Desafios gerais da educação jurídica

Dos desafios atuais da educação jurídica, pretendo apenas indicar alguns, com o objetivo de fomentar o debate.

A) A quantidade ilimitada de informação disponível

Se não há limites para a oferta de informações e se elas podem ser facilmente acessadas em qualquer tempo e lugar, como se deve estruturar a educação?

B) A crescente dificuldade de manter o foco em uma única tarefa

Se um número crescente de pessoas acredita na possibilidade de realizar inúmeras tarefas ao mesmo tempo, como manter a relevância dos momentos de sala de aula?

C) A erosão da autoridade do professor

Se o lugar da autoridade sofre questionamento em todos os âmbitos da atividade humana, de que modo o professor pode dirigir o processo de ensino e aprendizagem?

D) O interesses limitados dos estudantes

Se um número significativo de estudantes frequenta o curso de Direito com objetivos bem limitados e específicos, o que fazer para não perder a verdadeira amplitude da experiência universitária?

E) As novas dificuldades das carreiras jurídicas

Se o cenário para o exercício das mais tradicionais carreiras jurídicas fica cada vez menos promissor, o que fazer para manter aceso o interesse dos estudantes?

III. Desafios específicos do ensino do Direito Privado

Para além dos desafios gerais, há outros que atingem mais diretamente o ensino do Direito Privado. Cuidarei apenas de indicar alguns, para contribuir com a discussão.

A) O charme dos estudos de direito público

Não é difícil ficar apaixonado pelo estudo de alguns campos do Direito Público. O Direito Penal rouba muitos corações inocentes. O Direito Constitucional se apresenta como o portador de todas as soluções de que precisamos. O Direito Processual Civil, com a recente aprovação de um novo Código, é a disciplina da moda.

Além disso, os concursos públicos exigem um número muito amplo de assuntos de Direito Público.

B) A aridez dos estudos de direito privado

Não é simples estudar conceitos como personalidade, capacidade, prescrição e abuso de direito. O estudante precisa acreditar na importância de fazer inúmeras distinções e compreender o funcionamento de institutos complexos. Em muitos casos, a simples invocação de princípios, ainda que belos, não poderá dispensar o estudo minucioso de outras categorias jurídicas.

C) A crise da manualística

No que se refere ao Direito Civil, os manuais elaborados nos últimos anos ainda não superaram os que foram compostos na vigência no Código Civil de 1916. Os títulos disponíveis, em sua maioria, foram escritos para o público dos cursos preparatórios para concurso e não são minimamente adequados para o tipo de debate que deve caracterizar o ambiente universitário.

IV. Sugestões

Quando penso no tamanho do nosso desafio, a figura que me vem à mente é a de uma casa, completamente fechada, sem porta e sem janelas, com um monte de gente dentro, sem luz, sem ar e sem alegria.

Minha primeira sugestão é pensada como se fosse uma porta, por onde as pessoas podem entrar e sair da casa, livremente. E todas as demais são janelas, que permitem a entrada de luz e de ar e de onde se pode contemplar o horizonte.

A) Teoria da Educação

Estude Teoria da Educação. Se ainda não tiver começado, leia primeiro uma crônica de Rubem Alves. É um excelente convite à reflexão. Mostra, de forma contundente, o tamanho do desafio de educar. Depois, siga em frente.

Em nossos dias, os desafios da educação universitária são imensos. Não tente enfretá-los só com a intuição.

B) Literatura

Deixe o mundo dos livros entrar na sala de aula. Leve os livros com você. Leia pequenos trechos. Mas, antes, cuide de amar profundamente os livros que predente apresentar.

C) História do Direito

Situe os problemas jurídicos no tempo. 

D) Direito comparado

Situe os problemas jurídicos no espaço.

E) Jurisprudência

Indique os problemas que a prática jurídica apresenta. Dialogue com o Direito que é aplicado nos tribunais. Se for o caso, critique os rumos da jurisprudência. Mas, de todo modo, não deixe de dialogar.

V. Conclusão

Pense num professor que o tenha marcado negativamente. Pense em outro que provoca boas lembranças. E agora faça a sua escolha.

* Texto que serviu de base à palestra ministrada para estudantes do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/MG, no âmbito dos “Seminários de Direito Privado”, em 22 de novembro de 2016; quando de sua elaboração, eu não podia imaginar que a professora Taisa Maria Macena de Lima estaria presente, o que me deixou especialmente feliz.