quinta-feira, 5 de abril de 2018

Sobre a incrível arte de dizer “não”

Com carinho e alguma insistência, pediram-me para falar sobre a difícil arte de dizer “não”. Eu bem que tentei recusar, mas não consegui. Por isso, nas próximas linhas, falo sobre a difícil arte de dizer “não” e, desde logo, peço desculpas se a abordagem parecer excessivamente teórica. É que não tenho experiência no assunto.

Começo com dois exemplos dramáticos. Em cada um deles, há uma pessoa que não soube dizer “não” e experimentou consequências desastrosas. No primeiro, o convite não foi feito por uma pessoa específica, em um momento específico, mas por um grupo de pessoas, numa sequência de pequenos eventos. No segundo, nem sequer houve convite, mas apenas sugestão interna. De todo modo, em ambos os casos, alguém não teve forças para dizer “não”.

Fantine, personagem de Victor Hugo em “Os Miseráveis”, é uma jovem garota, órfã, pobre, que ganhava a vida em Paris como costureira. Zéphine, Dahlia e Favourite também são costureiras, um pouco mais velhas e mais experientes. Tholomyès, Listolier, Fameuil e Blachevelle são estudantes de Direito, filhos de famílias abastadas, vindos do interior, que, além de eventualmente frequentar as aulas, aproveitam as coisas boas da vida. 

Cada um dos quatro rapazes escolheu namorar uma das quatro moças. Fantine foi a escolhida de Tholomyès, mas, enquanto, para ele, “tudo não passava de um namorico como outro qualquer; ela, porém, amava-o apaixonadamente”.

Depois de um longo passeio de domingo, em que os pares fizeram “todas as loucuras campestres possíveis”, os quatro rapazes, para executar um plano previamente combinado, abandonaram as quatro garotas e, no bilhete de despedida, entre outras coisas, disseram o seguinte:

Amantes queridas! 
Como vocês sabem, temos nossos pais; e isso de pais é algo que vocês não compreendem suficientemente. O código civil, honesto e pueril, chama-os de pai e mãe. Ora, nossos pais choram de saudade e, já idosos, nos chamam; bons velhinhos e bondosas senhoras que são, têm-nos como filhos pródigos, desejam a nossa volta e prometem banquetear-nos com um vitelo gordo. Nós, como somos virtuosos, obedecemos. Quando vocês estiverem lendo esta carta, cinco fogosos cavalos nos estarão levando a nossas mamãs e papás. Levantamos acampamento, como diz Bossuet. Fomos embora, partimos. 

(…) 

É do interesse da pátria que sejamos como todo mundo, prefeitos, pais de família, guardas campestres e conselheiros do Estado. Respeitem-nos, porque nos sacrificamos. Chorem-nos um pouco e substituam-nos depressa. Se esta carta as magoar, restituam-na. Durante quase dois anos, fizemo-las felizes. Não guardem rancor para conosco.

As outras meninas consideram tudo uma grande brincadeira, mas Fantine sentiu o golpe, pois “era o seu primeiro amor; entregou-se a Tholomyès como a um marido, e, coitada, tinha uma filhinha”.

E o pior é que, acreditando nas promessas do namorado, fora levada a “desprezar o humilde ofício que constituía o seu ganha-pão, negligenciara-o e não o pudera recomeçar” e, agora, abandonada pelo amante e pelas amigas, via-se obrigada a fugir da miséria, acompanhada de sua filha.

Nos capítulos seguintes, Victor Hugo descreve as desventuras da pobre Fantine e da pequena Cosette.

Raskolnikov, personagem de Dostoiewski em “Crime e Castigo”, é um estudante de Direito, pobre, solitário, com vários meses de aluguel em atraso, que, de repente, começa a cultivar uma ideia maluca e, ainda sem saber se teria coragem de executá-la, diz a si mesmo:

- Meu Deus, como tudo isso é abominável! Será possível, será verdadeiramente possível que eu… Não, é uma tolice, um absurdo! Como pode me ocorrer ideia tão espantosa? De que infâmias serei capaz? Isso é odioso, ignóbil, repugnante!

O modo como Raskolnikov acaba executando o plano e as consequências que fica obrigado a suportar são os assuntos que Dostoiewski desenvolve no restante da obra.

Eu disse que os exemplos iniciais eram dramáticos. Fantine, envolvida por sugestões das amigas e do namorado, embarcou numa aventura romântica, deixando de lado os compromissos com o trabalho. Raskolnikov, atropelado pelos próprios pensamentos, colocou em prática um plano macabro. Ambos não souberam dizer “não”. E ambos sofreram consequências desagradáveis.

Mas talvez o leitor esperasse um pouco menos de drama. De fato, em algumas ocasiões, dizer “sim” ou “não” pode abrir caminho para as melhores coisas da vida ou para grandes dificuldades. Na maioria das vezes, contudo, os resultados são limitados. Por exemplo, quando dizemos “sim” a uma reunião, perdemos, no máximo, uma ou duas horas de trabalho. Ou quando dizemos “sim” a uma tarefa, aceitamos a criação de um vínculo que consome tempo e energia, mas que cedo ou tarde termina.

Crispin Soares, personagem de Machado de Assis em “O Alienista, é um boticário, morador da vila de Itaguaí, que acabou se tornando confidente do Dr. Simão Bacamarte, famoso médico que se ocupava do tratamento da loucura. Quando o alienista decidiu que a esposa viajaria ao Rio de Janeiro, lembrou-se de pedir ao amigo que também enviasse a mulher, de modo que as duas pudessem fazer companhia uma à outra. Talvez para não estragar a amizade, Crispin Soares aceitou. O objetivo de Simão Bacamarte, na verdade, era se livrar temporariamente de Dona Evarista e, assim, ter mais liberdade para se dedicar aos trabalhos da Casa Verde. Crispin Soares, no entanto, que nunca tinha ficado longe de sua amada Cesária, arrependido, cheio de saudades, disse a si mesmo as seguintes palavras:

- Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes “amém” a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!

Agora, sim, temos um caso menos dramático e, portanto, mais próximo das situações cotidianas, de incapacidade de dizer “não”. Muitas vezes, surpreendidos por um pedido ou um convite, acabamos dizendo “sim”, e só depois percebemos a completa falta de sentido do compromisso firmado. Para evitar esse tipo de situação, sugiro que o interessado pense em três perguntas e observe um cuidado adicional. Essas ideias me parecem muito bonitas e, talvez, funcionem na prática. De todo modo, é preciso tentar.

A primeira pergunta é: por que dizer “não”? E a resposta é simples: porque o dia tem 24 horas. Isso mesmo. Como o tempo não permite fazer tudo, é preciso escolher algumas coisas para fazer e outras coisas para não fazer.

A segunda pergunta é: quando dizer “não”? De modo simples, deveríamos dizer “não” aos compromissos que não estivessem relacionados com a nossa missão, com as nossas metas, com os papéis que escolhemos desempenhar. A razão para aceitar uma tarefa pode ser o desejo de não desagradar, a vontade de provar alguma coisa ou o medo de perder uma chance. Mas não deveria ser assim. Quem não tem coragem de definir uma agenda, acaba seguindo a agenda alheia. 

A terceira pergunta é: como dizer “não”? Nada melhor do que falar de forma direta, sem rodeios e sem maiores explicações. Se o destinatário do “não” ficar magoado, é muito provável que ele estivesse mais interessado na tarefa do que em você.

Um cuidado adicional pode ser bloquear horários ou dias na agenda, de modo a não assumir neles qualquer compromisso novo. Isso pode ser especialmente interessante para pessoas que têm dificuldade de pronunciar a palavrinha “não”.