terça-feira, 29 de maio de 2018

Youtube, Padre Vieira e o desafio de falar em público

O padre Antônio Vieira é comumente apresentado como o maior orador da língua portuguesa. Nascido em Lisboa, em 1608, e falecido na Bahia, em 1697, levou uma vida agitada, repleta de aventuras e polêmicas. Em um de seus sermões mais luminosos, pregado na Capela Real, ofereceu cinco conselhos aos pregadores cristãos, que são úteis, na verdade, para todo tipo de discurso.

O primeiro tem a ver com a pessoa do pregador e sugere que deve haver coerência entre o que ele fala e o que ele pratica. É garantia de fracasso quando a vida faz apologia contra a doutrina e quando as palavras são refutadas pelas obras. 

O segundo refere-se ao estilo, que deve ser “muito fácil e muito natural”. As palavras do pregador devem ser como as estrelas, altas e claras. Tão claras que mesmo os que nada sabem podem entender. E tão altas que mesmo os que muito sabem podem aprender. 

O terceiro está relacionado com a matéria e, para o jesuíta português, “o sermão há-de ter um só assunto e uma só matéria”. O pregador que deseja tratar de muitos assuntos, na verdade, termina  não tratando de nenhum. 

O quarto é sobre a ciência. O pregador deve falar daquilo que aprendeu e construiu com esforço próprio. Não deve colher onde não semeou. Não deve utilizar material preparado por outras pessoas. Como diz o Vieira, “pregar o alheio é pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa”. 

No quinto conselho, que tem a ver com a voz do pregador, admite-se que possa se mostrar tão forte quanto o trovão, de modo que “faça tremer o mundo”, ou tão mansa quanto o orvalho, “que destila brandamente e sem ruído”, tudo conforme a ocasião exigir.

Os Sermões do Padre Antônio Vieira foram publicados e podem ser obtidos com relativa facilidade. Mas não é possível assisti-los no Youtube. Infelizmente, como próprio religioso reconheceu, os antigos sermões, uma vez colocados no papel, “sem a voz que os animara, ainda ressuscitados são cadáveres”.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

O que meus alunos me ensinaram sobre falar em público

Meus alunos foram meus mestres também na tarefa de falar em público. 

Nos primeiros anos de magistério, com alguma frequência, eles me advertiam sobre uma série de fragilidades. Na maioria das vezes, reclamavam da voz, que era muito baixa. Em outros momentos, davam claras demonstrações de que as aulas não eram atraentes.  

Mas foi nos últimos anos que o aprendizado se deu de modo intenso e metódico. A Faculdade de Direito da UFMG, onde trabalho, tem o privilégio de sediar o Senatus, grupo de debates liderado por estudantes. De uns semestres pra cá, nas disciplinas de graduação, tenho reservado uma ou duas aulas para que eles apresentem os princípios mais elementares da oratória. As turmas têm gostado muito. E eu, também.

Do que aprendi com meus mestres, pretendo apresentar, inicialmente, as quatro fases que um orador pode atravessar em seu processo de aprimoramento e, em seguida, os cinco itens básicos para uma boa expressão oral.

A primeira fase na vida de quem deseja adquirir a habilidade de falar em público é a dos vícios inconscientes. Nela, o orador erra e não sabe que erra. A segunda é a dos vícios conscientes. Nela, o orador erra e sabe que erra. A terceira é a das virtudes conscientes. Nela, o orador acerta porque se esforça para acertar. E a quarta fase é a das virtudes inconscientes. Nela, o orador acerta mesmo quando não se esforça para acertar. Trata-se, na verdade, do caminho natural da aquisição de qualquer hábito. O objetivo é ter a qualidade internalizada de tal modo que os comportamentos possam expressá-la com a máxima naturalidade.

A expressão oral pode melhorar de forma significativa se alguns aspectos forem observados.

O primeiro é a base. Para falar em público, é preciso estar confortável. Antes de cumprimentar os ouvintes, portanto, é necessário dispor o corpo de maneira apropriada. Os pés devem estar bem colocados no chão, nem muito juntos, nem muito distantes, com o peso igualmente distribuído entre eles. É bom evitar atitudes como cruzar as pernas, apoiar as mãos na parede ou ficar balançando de um lado para o outro. Uma boa base transmite segurança e ajuda a comunicar as ideias com clareza.

O segundo é a movimentação. Explorar o espaço disponível pode útil. Mas também pode tirar a atenção dos ouvintes. Por isso, o orador deve se movimentar só quando tiver algum propósito em mente. Caso queira sugerir que pretende contar um segredo, por exemplo, pode movimentar-se para frente. Caso deseje enfatizar que um pensamento é perigoso, pode movimentar-se para trás. E se a ideia for sugerir dúvida ou ansiedade, pode andar de um lado para o outro. Em todos esses exemplos, o movimento reforça a fala. Mas não há nada pior que um palestrante nervoso, que se movimenta freneticamente, exigindo que a platéia se comporte como se estivesse numa partida de ping-pong.

O terceiro é a gesticulação. Durante a fala, todo o corpo participa, mas braços e mãos possuem funções de destaque. O ideal é utilizá-los para tornar as ideias ainda mais claras. Ou ao menos evitar que eles atrapalhem a comunicação. Balançar a cabeça verticalmente reforça a ideia de que algo é positivo. Balançar a cabeça horizontalmente faz o mesmo em relação ao que é negativo. Colocar as mãos no queixo e olhar para cima é o bastante para sugerir dúvida. Estalar os dedos mostra o aparecimento de alguma ideia nova. Por outro lado, cruzar os braços revela desinteresse, deixá-los pendentes junto ao corpo passa a ideia de desânimo e estender as mãos com as palmas voltadas para baixo pode soar excessivamente impositivo.

O quarto é a voz. No se refere à intensidade, o orador deve estar seguro de que seja suficiente para alcançar a audiência inteira. Se for muito baixa ou muito alta, provocará a desistência de uns e certamente causará incômodo a todos. No que se refere ao tom, o ideal é modulá-lo criativamente ao longo da fala, de modo a não cansar os ouvintes e enfatizar os conteúdos principais.

O quinto aspecto é o olhar. A ideia principal é distribuí-lo por toda a audiência, indicando, assim, que todos os destinatários são igualmente importantes. E nunca manter os olhos fixos no chão, no teto, numa certa parte do auditório ou, o que é ainda pior, numa única pessoa.

Creio que essas informações ajudam na desafiadora tarefa de comunicar ideias ao público. Mas é evidente que elas não nos desobrigam dos deveres de estudar, observar e meditar. Afinal, ninguém pode oferecer o que não tem.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Vamos falar de dinheiro?

Na hora de tomar decisões sobre carreira, poucas pessoas analisam friamente um tema fundamental: o dinheiro. Para ajudar nesse tipo de exercício, vou trabalhar com uma situação hipotética.

Renata é apaixonada por História. Na infância, uma de suas brincadeiras favoritas era lecionar para os amigos. Ao concluir o ensino médio, pensou que o caminho natural seria ingressar no curso de História e, depois, seguir carreira no magistério. Porém, de tanto ouvir que professores ganham pouco e não têm o valor que merecem, começou a pensar num curso mais charmoso, e em carreiras mais promissoras. Foi assim que lhe ocorreu a ideia de estudar Direito e, em seguida, fazer concurso para ingressar no ministério público ou na magistratura.

Caso escolhesse se tornar professora no ensino médio, trabalhando em dois turnos, Renata não ganharia mais do que 15 valores por mês ou 180 valores por ano; e caso exercesse a função de promotora ou juíza não ganharia menos do que 60 valores por mês ou 720 valores por ano.

Mas de que modo ela poderia olhar para esses números?

Talvez o primeiro cuidado fosse justamente o de não desconsiderá-los. É preciso encarar esse tipo de realidade de frente. Algumas carreiras pagam significativamente menos que outras. E isso não tem nada a ver com a beleza, a complexidade ou a relevância das tarefas que abrangem.

Em seguida, parece que o melhor seria refletir no padrão de vida que se deseja experimentar no futuro.

Vejamos duas situações bem diferentes. Para descrevê-las, com o objetivo de simplificar, considerarei que os gastos mais elevados de uma pessoa ficam distribuídos em apenas três categorias: habitação, transporte e lazer.

Na primeira hipótese, Renata espera desfrutar de um padrão bastante elevado. No que se refere à habitação, uma vez que pretende morar em bairro elegante e em apartamento amplo, deverá gastar em torno de 200 valores anuais. Em relação ao transporte, já que espera ter um carro para cada integrante da família, todos de luxo, gastará em torno de 100 valores anuais. Por fim, quanto ao lazer, uma vez que não abre mão de realizar duas viagens internacionais por ano e comparecer aos principais espetáculos e eventos esportivos de seu entorno, terá um gasto anual de aproximadamente 300 valores. No total, os gastos anuais ficariam em torno de 600 valores.

No segundo cenário, em que Renata se contenta com um padrão mais modesto, seus gastos anuais com habitação ficariam em torno de 80 valores, já que pretende morar em apartamento pequeno, localizado em bairro simples. No que se refere ao transporte, uma vez que espera possuir apenas um automóvel, de categoria popular, e utilizá-lo juntamente com o sistema público, terá despesas anuais de aproximadamente 50 valores. No caso do lazer, priorizando passeios regionais e explorando espaços públicos e gratuitos, terá gastos ao redor de 20 valores por ano. No total, os gastos anuais ficariam em torno de 150 valores.

O padrão mais elevado, descrito na primeira hipótese, é claramente incompatível com a remuneração típica do magistério. Já o padrão mais humilde pode funcionar tanto para uma professora quanto para uma juíza.

Para algumas pessoas, um padrão de vida elevado é algo de que não se pode abrir mão. Para elas, será necessário encontrar uma profissão que permita ganhar bem, ainda que não permita desenvolver o próprio potencial criativo.

Para outras pessoas, fazer coisas relevantes, e nas quais se acredita, é algo de que não se pode abrir mão. Para elas, será necessário definir um estilo de vida mais sóbrio, ainda que isso implique em desistir de certo número de possibilidades. 

sábado, 19 de maio de 2018

Minha lista de 12 livros para ler (ou não)

Uma lista de recomendações literárias é praticamente inútil para leitores maduros, que já descobriram suas preferências de gênero e estilo. E também não é necessária para quem está rodeado de bons leitores e, portanto, pode receber orientação de modo pessoal e afetuoso. É por isso que pensei numa que pudesse servir de guia inicial para os que desejam adquirir ou desenvolver o hábito da leitura, e não sabem com quem discutir o assunto.

Antes de começar, tenho três esclarecimentos sobre como pretendo realizar a tarefa. 

Primeiramente, devo dizer que só escolhi livros que tocaram o meu coração, que me fizeram refletir e que ainda me sinto bem só de pensar neles. Não incluí os de poesia, mas fica logo dito que meus poetas favoritos são Fernando Pessoa, Adélia Prado, Carlos Drummond de Andrade e Manuel de Barros. Em relação a eles, não me parece adequado recomendar um livro específico, pois todos podem ser lidos com prazer. As antologias, organizadas pelos próprios poetas ou por especialistas, podem ser úteis para um primeiro contato. E no que se refere a livros publicados em outros idiomas, sugiro cuidado com as traduções, quando houver mais de uma alternativa. Algumas são feitas em linguagem excessivamente complicada. Para os livros de Shakespeare, por exemplo, recomendo as de Millôr Fernandes, pela leveza com que foram feitas. E para o Dom Quixote, a de Eugênio Amado, pelo mesmo motivo.

Em segundo lugar, esclareço que a ordem de apresentação dos textos não tem a ver com o tanto que gosto deles ou com o valor literário que imagino que possuem, mas com o grau de dificuldade que a leitura sugere. Para que ninguém fique desanimado, vou começar com livros pequenos, escritos em linguagem clara, deixando para o final os que costumam exigir maior esforço dos leitores. Pode parecer estranho, mas algumas das primeiras indicações são facilmente classificadas como literatura infantil. É que nesse caso, como em tantos outros, estou de acordo com C.S. Lewis, para quem “uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim”.

Finalmente, uma vez que não sou crítico literário, fui constrangido a adotar uma forma diferente de apresentar os livros. Não falarei de seus autores e das escolas a que pertencem. Nem mesmo tentarei oferecer algo como um resumo das obras. Vou apenas transcrever as palavras inicias de cada uma ou, no caso das de teatro, um trecho de alguma fala mais interessante. Assim, espero que os próprios autores tenham a chance de conquistar seus novos leitores. 

Agora, pois, ao trabalho!

1. Campo Geral, de Guimarães Rosa:

Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-D`Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos.

2. Hamlet, de William Shakespeare:

HAMLET: Ser ou não ser - eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias -
E, combatendo-o, dar-lhe fim?

3. O Rei Lear, de William Shakespeare:

LEAR: Enquanto isso revelaremos nossas intenções mais reservadas. Dêem-me esse mapa aí. Saibam que dividimos em três o nosso reino. É nossa firme decisão diminuir o peso dos anos, livrando-nos de todos os encargos, negócios e tarefas, confiando-os a forças mais jovens, enquanto nós, liberados do fardo, caminharemos mais leves em direção à morte.

4. O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, de C.S. Lewis:

Era uma vez duas meninas e dois meninos: Susana, Lúcia, Pedro e Edmundo. Esta história nos conta algo que lhes aconteceu durante a guerra, quando tiveram de sair de Londres, por causa dos ataques aéreos. Foram os quatro levados para a cada de um velho professor, em pleno campo, a quinze quilômetros de distância da estrada de ferro e a mais três quilômetros da agência de correios mais próxima.

5. O Hobbit, de J.R.R Tolkien:

Numa toca no chão vivia um hobbit. Não uma toca desagradável, suja e úmida, cheia de restos de minhoca e com cheiro de lodo; tampouco um toca seca, vazia e arenosa, sem nada em que sentar ou o que comer: era a toca de um hobbit, e isso quer dizer conforto.

6. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis:

Algum tempo hesitei se devia abrir essas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.

7. Diário de Um Pároco de Aldeia, de George Bernanos: 

Minha paróquia é uma paróquia como as outras. Todas as paróquias se parecem. As paróquias de hoje, naturalmente. Ontem, eu dizia ao vigário de Norenfontes: o bem e o mal devem equilibrar-se numa paróquia, só que o centro de gravidade é colocado em baixo, muito embaixo. Ou, se se prefere, um e outro se sobrepõem, sem misturarem-se, como dois líquidos de densidade diferente. O padre riu em minha cara.

8. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes:

Num lugar da Mancha, cujo nome não quero lembrar, vivia, não faz muito tempo, um fidalgo, desses de lança guardada em cabide, adarga antiga, rocim fluxo e galgo corredor.

9. O Homem que Era Quinta-Feira, de G.K.Chesterton:

O arrabalde de Saffron Park, rubro e esfarrapado como uma nuvem ao pôr do Sol, ficava a poente de Londres. Todo de tijolo vermelho, construído sem plano, tinha um perfil fantástico. Fora o grande rasgo de um construtor especulativo, besuntado de arte, que atribuía às suas construções, umas vezes, o estilo “isabelino”, outras vezes o do tempo da rainha Ana, parecendo confundir as duas soberanas.

10. Os Maias, de Eça de Queiroz:

A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinha da R. de São Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela Casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da senhora D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um colégio de Jesuítas.

11. Crime e Castigo, de Dostoiewski:

Numa tarde tórrida de princípio de Julho saiu um jovem do quarto mobilado que ocupava num enorme prédio de cinco andares situado na viela S. e dirigiu-se lentamente, e com ar indeciso, para a ponte K.

12. Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa:

- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha em minha mocidade. 

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Dê uma chance ao pobre Machado de Assis

Quem foi obrigado a ler Machado de Assis na escola talvez nunca possa gostar de Machado de Assis. Se for esse o seu caso, deixe-me propor uma experiência. Num dia tranquilo, sem a pressão de compromissos urgentes, tome uma edição de O Alienista, que é uma das histórias mais divertidas que já li. Se não tiver o livro, que é sempre o melhor, utilize a versão disponível no Domínio Público, sítio eletrônico do Governo Federal (www.dominiopublico.gov.br). O livrinho tem menos de 40 páginas e pode ser lido em uma ou duas horas. O ideal é fazê-lo olhando o mar, sentado à sombra, tomando água de coco. Ou na montanha, de frente para a lareira, bebendo uma xícara de café. Mas também costuma funcionar em casa, na biblioteca ou na praça. O importante é ler. Mas faça isso devagar, aprecie, sinta o gosto de cada palavra, tal como se faz com um último pedaço de sobremesa. 

Para uma pequena amostra, veja como o nosso autor começa o texto:

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia. 

— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.

Bom, depois de fazer a experiência, não deixe de me dizer o que achou das aventuras e desventuras do Dr. Bacamarte e, principalmente, de ter lido o Machado sem tê-lo pendente sobre o pescoço.

Para melhorar a expressão em língua portuguesa, não consigo pensar em nada diferente de ler os clássicos. Certamente que têm seu lugar o estudo rigoroso da gramática, o hábito de escrever com frequência, o auxílio de profissionais especializados e mesmo a colaboração de amigos e colegas. Mas nada substitui a leitura de bons autores.

No prólogo de Como e Por Que Ler, Harold Bloom disse o seguinte:

Lemos, intensamente, por várias razões, a maioria das quais conhecidas: porque, na vida real, não temos condições de “conhecer” tantas pessoas, com tanta intimidade; porque precisamos nos conhecer melhor; porque necessitamos de conhecimento, não apenas de terceiros e de nós mesmos, mas das coisas da vida. Contudo, o motivo mais marcante, mais autêntico, que nos leva a ler, com seriedade, o cânone tradicional (hoje em dia tão desrespeitado), é a busca de um sofrido prazer.

Para o crítico literário estadunidense, esse “sofrido prazer”, articula-se de certo modo com o Sublime e encerra uma possibilidade de “transcendência secular”. 

Em Cristianismo Puro e Simples, C.S. Lewis dirá que essa fome de beleza, que pode ser despertada pela arte, na verdade, não pode ser satisfeita por ela, mas tem a possibilidade de nos remeter à fonte de toda a Beleza. 

Assim, pois, podemos ler para conhecer a nós mesmos, aos outros e ao mundo, para experimentar alguma forma de satisfação interior e, também, para despertar a sede por algo que seja maior que a realidade imanente. Agora, no entanto, sugiro apenas que a leitura, sobretudo dos clássicos, é a melhor forma de promover as habilidades de expressão escrita e oral.

Talvez fosse bom oferecer uma lista de sugestões. Mas isso fica para o próximo texto.

Para além de Marvel e DC

Sou incapaz de distinguir heróis da Marvel de heróis da DC. Periodicamente, sou submetido a sessões de tortura quando meu filho me leva para ver os filmes que eles protagonizam. As histórias são interessantes, mas as batalhas parecem não ter fim. Chego a ficar tonto.

De todo modo, reconheço que é bastante atraente a ideia de ter superpoderes. 

A tentação de conquistar faculdades sobre-humanas aparece elegantemente representada nas várias formas de contar a lenda alemã de Fausto, sobretudo na de Goethe, e também no modo como João Guimarães Rosa compôs o Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas.

Mas não é disso que tratarei aqui. Quero fornecer uma lista de habilidades valiosas e, no entanto, plenamente humanas. Para organizá-la, utilizei três critérios.

Em primeiro lugar, pensei nas que fossem acessíveis a um grande número de pessoas. Aprender a patinar no gelo pode ser bom, mas não faz sentido para quem mora num país tropical.

Em segundo lugar, escolhi habilidades atuais, com amplo potencial de colaborar na solução de problemas contemporâneos. Aprender a caçar foi essencial para a sobrevivência da espécie humana, mas já não muda a vida de quem mora perto do supermercado.

Em terceiro, lugar, trabalhei com habilidades abrangentes, que podem ter aplicação em contextos diversos. Aprender a bela língua mirandesa é prova de curiosidade e bom gosto, mas só aproveita a quem se interessa especificamente por uma pequena região do Norte de Portugal.

A lista, que passarei a desenvolver nos próximos textos, tem os seguintes itens: expressar-se adequadamente em língua portuguesa, comunicar-se em língua inglesa, falar em público, agir de modo não violento, trabalhar em equipe, resolver conflitos e utilizar novas tecnologias. 

A composição é provisória e ficaria feliz se pudesse receber sugestões de aprimoramento. O essencial é identificar habilidades que, uma vez obtidas ou quando adequadamente desenvolvidas, permitam que o interessado faça melhor as tarefas atuais ou fique melhor preparado para novas oportunidades.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Você já leu todos esses livros?

Na segunda edição das Poesias Completas, de Machado de Assis, publicada em 1902, no lugar em que o autor tinha escrito “cegara o juízo”, o funcionário da tipografia, involuntariamente, trocou o “e” por um “a”, produzindo um defeito editorial nada agradável.

Numa edição inglesa da Bíblia, feita em 1631, o tipógrafo teve a ideia de brincar com o texto do sétimo mandamento, simplesmente suprimindo a palavra “não”. Como tinha de ser, os exemplares que traziam o comando “Cometerás adultério” foram recolhidos e o profissional foi condenado ao pagamento de elevada quantia em dinheiro.

A impressão de A Arte de Furtar, do Padre Antônio Vieira, feita em 1821, a pedido de Hipólito da Costa, tinha a seguinte dedicatória: “Oferecida ao Ilmo. Sr. S.F.R. Targine, ex-tesoureiro-mor do erário do Rio de Janeiro”. A associação entre o título do livro e o cargo do homenageado já seria suficiente para revelar as verdadeiras intenções do jornalista. Para não deixar dúvidas, no entanto, ele acrescentou a seguinte frase: “Qual pirata iníquo dos trabalhos alheios feito rico”.

Flor de Sangue, romance pouco expressivo de Valentim Moraes, publicado em 1897, trazia uma errata absolutamente singular, que dizia: “à página 285, quarta linha, em vez de “estourar os miolos” leia-se “cortar o pescoço”.

Essas e outras historinhas estão em O Bibliófilo Aprendiz, delicioso guia de Rubens Borba de Moraes, especialmente útil para quem deseja colecionar livros.

Das orientações do autor, algumas podem ser indicadas aqui.

Primeiramente, o interessado escolheria um gênero de livro a que se dedicar. Quem compra tudo o que vê pode construir “uma vasta livraria”, mas nunca terá uma verdadeira coleção. Os dois caminhos mais naturais são a escolha de um assunto ou a escolha de um autor. Assim, pensando nos em próprios meus interesses, seria possível colecionar livros de Direito Civil, publicados no Brasil Imperial, ou livros de Clovis Bevilaqua, importante jurista brasileiro.

Em segundo lugar, conceberia um plano sobre o tipo de coleção que se deseja, sendo necessário estudar o assunto com o máximo cuidado.

Uma terceira sugestão seria restringir a coleção aos meios que possui. A falta de espaço, por exemplo, pode ser um grave problema. E a de dinheiro, também.

De todo modo, o mais importante é lembrar que os estudiosos podem e devem organizar sua própria biblioteca, compatível, é claro, com os recursos disponíveis.

E à medida que o trabalho for avançando, o bibliófilo ouvirá, cada vez com mais frequência, a seguinte pergunta: Você já leu todos esses livros?

Se não puder respondê-la com brandura e educação, explicando que ninguém lê todos os livros de sua biblioteca, é porque ou não leu nada de valioso ou leu mas não chegou a aprender. 

terça-feira, 15 de maio de 2018

Uma historinha para quem não gosta de ler

Sei de pessoas que aprendem melhor ouvindo do que lendo. Frequentam aulas, assistem vídeos e escutam palestras. E são bem-sucedidas nas mais diversas atividades.

Também conheço pessoas que não se lembram de livros nos momentos de descanso e lazer. Gostam de aparelhos eletrônicos, produtores de imagens, sons ou das duas coisas ao mesmo tempo, que podem até exibir textos, mas sempre de modo fragmentado e secundário. E essas pessoas não parecem especialmente tristes.

Não acho que o hábito de ler seja essencial para todo tipo de aprendizado, muito embora o seja para alguns. E também não acredito que seja fundamental para o repouso ou a felicidade.

Então, o que dizer para quem não sente falta dos livros?

Talvez seja melhor simplesmente não dizer nada. Mas se você leu até aqui, pode ser que tenha paciência para uma pequena história, que me foi contada pelo pai de um amigo de infância. É uma historinha simples, despretensiosa, dessas que os sertanejos declamam ao redor da fogueira, em noites de lua cheia.

Um homem de condição humilde, presenteado com um passeio de navio, teve o cuidado de levar consigo boa provisão de água e farinha. No momento das refeições, tão logo escutava a convocação, recolhia-se a um lugar reservado, para somente então comer e beber, na máxima simplicidade. Enquanto isso, nos salões bem decorados, os outros desfrutavam do bom e do melhor. Ele, no entanto, consolava-se ao pensar na fortuna que tudo aquilo devia custar. Consciente de sua situação econômica, nem lhe ocorreu perguntar o preço de uma omelete ou de uma limonada. Foi só depois de concluir a viagem, quando recebia as malas no porto, é que descobriu que a alimentação estava incluída no valor da passagem.

Livros e livros

Vicente Mamede foi professor na Faculdade de Direito de São Paulo, exatamente na virada do Império para a República. Devotava tamanha admiração a um de seus mestres, o Antonio Joaquim Ribas, que tinha o hábito de dizer o seguinte:

Quando eu quero falar no Conselheiro Lafayette, eu digo Conselheiro Lafayette, porque quando eu disser “o Conselheiro”, é o Conselheiro Ribas.

No meu caso, quando pronuncio a palavra “livro”, deve ficar claro que me refiro ao objeto de papel, com letras impressas, em formato retangular. Para indicar textos publicados na internet, lidos por meio de dispositivos eletrônicos, parece-me conveniente utilizar outro nome.

Um livro é algo que se pode contemplar, tocar, manusear, folhear, medir o tamanho, experimentar o peso, sentir o cheiro, abraçar e, eventualmente, beijar. É um objeto com que se pode conversar e que serve de companhia tanto em longas viagens quanto em rápidas visitas ao médico.

Nas páginas de um livro, o leitor pode fazer pequenas anotações, como se falasse a um amigo, desde que a lápis, e com a melhor caligrafia de que for capaz.

Mas há certos fatores que podem dificultar a utilização dos livros. O primeiro é naturalmente o econômico. Em virtude de restrições orçamentárias, o leitor pode ser obrigado a se contentar com cópias virtuais. A raridade de uma obra, o tempo previsto para a entrega ou o espaço necessário para guardar os volumes, entre outras coisas, também justificam soluções improvisadas.

Com algum esforço, posso até imaginar que alguém prefira a tela fria de um aparelho eletrônico ao contato deliciosamente ameno com o papel. Acho pouco provável, no entanto.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

O cão vivo e o leão morto

Uma das cenas mais geniais de Chaplin está no filme O Circo. Ao fugir de um jumento que não lhe era simpático, o vagabundo acaba entrando na jaula do leão que, por sorte, curtia a soneca da tarde. Sua primeira reação é de pânico, principalmente ao perceber que não conseguia abrir a porta. Mas tudo muda quando o bicho abre os olhos, cheira o invasor e, depois, volta a se deitar preguiçosamente. Carlitos, percebendo que era observado pela filha do dono do circo, por quem nutria grande admiração, começa a exibir um comportamento corajoso. Certo de que o leão era inofensivo e não estava faminto, mantém a pose de serenidade e não abandona o local nem mesmo quando a porta é aberta. No entanto, basta o felino abrir a boca para que ele saia correndo em completo desespero. 

Entre outras coisas, a cena mostra que um leão é sempre um leão. Pode ser domesticado, pode parecer sonolento, pode estar bem alimentado, mas ainda é um leão. E um leão deve ser temido, em qualquer lugar, em todo o tempo, a menos que esteja morto.

É mais ou menos esse o assunto de um antigo provérbio judaico:

Para os vivos ainda há esperança, pois mais vale um cão vivo que um leão morto.

Um leão é uma grande fera, mas só enquanto está vivo. Um cão pode não ser lá muita coisa, mas, enquanto vive, é alguma coisa.

Você pode até reclamar do estilo da comparação, que é um tanto rude, mas não deveria perder a oportunidade de celebrar a esperança.

Talvez não haja mais tempo para escrever um tratado sobre a natureza humana, mas dá para escrever uma carta de amor.

Talvez não haja mais tempo para levantar um império empresarial, mas dá para construir uma casa na praia.

Talvez não haja mais tempo para fazer doutorado em teologia, mas dá para ler pausadamente o livro de Salmos.

Os erros cometidos até o dia de hoje limitam, mas não bloqueiam o dia de amanhã. As possibilidades podem diminuir com o passar do tempo, mas não até o ponto da completa extinção.

Por isso, quem deseja aprender sobre planejamento deve ter sempre presente que, enquanto há vida, há esperança. Ou, para usar a figura bíblica, deve saber que mais vale um cão vivo que um leão morto.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

A loucura do Rei e a sabedoria do Bobo da Corte

“O Rei Lear”, uma das mais belas peças de Shakespeare, conta a história de um velho monarca, cansado das tarefas de governo, que decidiu antecipar a própria sucessão e, ao fazê-lo, pediu às filhas que explicassem o tipo de amor que lhe devotavam.

Goneril, a mais velha, disse solenemente:

Senhor, eu o amo mais do mais do que podem exprimir quaisquer discursos; mais que a luz dos meus olhos, do que o espaço e a liberdade, acima de tudo que pode ser avaliado - rico ou sublime; não menos que a vida, com sua graça, beleza, honra e saúde; tanto quanto um filho jamais amou um pai ou um pai jamais se viu amado; um amor que torna a fala inútil e a palavra incapaz. Eu o amo além de todos os valores disso tudo.

Regana, por sua vez, declarou:

Eu sou feita do mesmo metal de minha irmã e julgo ter valor igual ao dela. Do fundo do meu coração acho que exprimiu também o meu amor, ao exprimir o dela; fica distante porém quando me declaro inimiga desses prazeres que o sentido têm como supremos; só me sinto feliz em idolatrar Vossa Amada Alteza.

Cordélia, a caçula, incomodada com a falsidade das irmãs, afirmou o seguinte:

Infeliz de mim que não consigo trazer meu coração até a boca. Amo Vossa Majestade como é meu dever, nem mais nem menos.

O Rei, satisfeito com a confissão das filhas mais velhas, dividiu entre elas o poder soberano e a administração dos bens. Para a mais nova, no entanto, além de dizer palavras duras, não deixou um mísero centavo.

As consequências da decisão não foram agradáveis. Basta dizer que uma das cenas mais tristes da peça é a que mostra o rei completamente abandonado, exposto aos riscos de uma forte tempestade, enquanto as herdeiras permanecem insensíveis ao drama paterno.

Quem lê a história fica convencido de que o Rei cometeu um grande erro. E percebe que tudo poderia ter sido diferente se ele tivesse dado ouvidos ao seguinte conselho de Kent, um corajoso nobre da Corte: 

Que pretendes fazer, velho Rei? Julgas que o dever terá medo de falar quando o poder se curva à adulação? A honra tem de ser sincera quando a majestade se perde na loucura. Conserva o teu comando, considera e reflete, freia esse impulso hediondo. Respondo por minha opinião com minha vida; tua filha mais moça não é a que te ama menos; não está vazio o coração cujo som, por isso mesmo, não ressoa.

Para tomar decisões importantes, é necessário buscar aconselhamento. Confiar apenas nas próprias ideias não é seguro.

Como diz o antigo provérbio judaico:

Quem se isola insurge-se contra a verdadeira sabedoria.

Por isso, para qualquer pessoa, em qualquer contexto, vale o que o Bobo da Corte disse ao Rei Lear:

Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio.