terça-feira, 30 de abril de 2019

Desafios da Advocacia: as dicas do velho Rui


Seria um assombro ver o velho Rui Barbosa caminhando nos corredores do Fórum ou fazendo sustentação oral no Supremo. Imagine o quanto destoaria do comum a presença do homenzinho de pequena estatura, de fartos bigodes e voz tonitruante. Imagine ouvi-lo dizer aquelas frases rebuscadas e aquelas palavras difíceis. Imagine, ainda, o conteúdo do que nos diria caso oferecesse conselhos sobre Direito, Advocacia e Magistratura. 

Em Oração aos Moços, discurso escrito em 1921, Rui Barbosa deu exatamente esse tipo de orientação aos formandos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Mas, ao fazê-lo, tinha em mente os desafios daquele momento. Mesmo havendo entre o orador e os estudantes uma distância de 50 anos, eles habitavam o mesmo mundo, liam as mesmas notícias, frequentavam os mesmos ambientes. 

Mas o que o Rui nos poderia dizer hoje? Que conselhos nos daria alguém que não usou nem telefone, nem internet, nem processo eletrônico? Que sugestões ouviríamos de quem não andou nem de carro, nem de avião, nem de metrô. O que nos ensinaria uma pessoa que não viu nem Auschwitz, nem Woodstock, nem o 11 de Setembro?

De todos os tópicos que abordou no famoso discurso, imagino que alguns ainda poderiam nos dizer algo, justamente porque falam sobre a natureza humana. Da leitura que fiz, identifiquei oito sugestões que os advogados de hoje fariam bem em observar.

A primeira é: veja com os olhos do coração. A realidade que aparece nos escritórios de advocacia nem sempre é agradável. Todas as misérias humanas passeiam por ali. E o advogado fará bem se souber enxergar além da aparência. Pensando nisso, e ao falar especificamente sobre o coração, Rui Barbosa disse as seguintes palavras:
“Há, nele, mais que um assombro fisiológico: um prodígio moral. É o órgão da fé, o órgão da esperança, o órgão do ideal. Vê, por isso, com os olhos da alma, o que não vêem os do corpo. Vê ao longe, vê em ausência, vê no invisível, e até no infinito vê” (BARBOSA, p. 39).
A segunda é: não colecione mágoas. Os embates são naturais na advocacia. E não raro provocam situações de tensão e conflito. Se o advogado levar consigo todos os pequenos dissabores que se lhe sobrevierem, em pouco tempo, terá um fardo impossível de carregar. Para tratar do tema, Rui acabou falando um pouco de si:
“Nesta alma, tantas vezes ferida e traspassada tantas vezes, nem de agressões, nem de inflamações, nem de preterições, nem de ingratidões, nem de perseguições, nem de traições, nem de expatriações perdura o menor rasto, a menor ideia de revindita. Deus me é testemunha de que tudo tenho perdoado” (BARBOSA, p. 49).
A terceira é: aprenda com as derrotas. Fosse feita apenas de conquista, a advocacia não seria exatamente o que é. Do advogado espera-se que esteja ao lado do cliente, nas vitórias e nas derrotas. Serão especialmente amargas as que decorrem de erro ou malícia. Mas nenhuma será boa de engolir. Daí o valor de aprender com cada uma delas, como sugere o autor:
“Por mais desagrestes que sejam os contratempos da sorte e as maldades dos homens, raro nos causam mal tamanho, que nos não façam ainda maior bem. Ai de nós, se esta purificação gradual, que nos deparam as vicissitudes cruéis da existência, não encontrasse a colaboração providencial da fortuna adversa e dos nossos desafetos” (BARBOSA, p. 50). 
A quarta é: meça a própria força. Pode parecer que não, mas o dia continua tendo apenas 24 horas. Multiplicam-se ao infinito as leis, as teorias e as tendências dos tribunais. Além de estudar e elaborar teses, ao advogado incumbe, entre outras coisas, liderar pessoas, gerenciar processos e organizar as finanças do escritório. Não é pouca coisa. Por isso, sobreleva a importância de ouvir a voz da experiência:
“Ninguém, senhores meus, que empreenda uma jornada extraordinária, primeiro que meta o pé na estrada, se esquecerá de entrar em conta com as próprias forças, por saber se a levarão ao cabo” (BARBOSA, p. 52, 53).
A quinta é: trabalhe com perseverança. Na busca de sucesso, é comum que as pessoas cuidem de fazer tudo, menos o essencial, que é trabalhar. E o trabalho do advogado envolve fundamentalmente o estudo sério e paciente do campo em que pretende servir. Que tenha bom relacionamento com os pares, que apareça nas colunas sociais, que ocupe posições de destaque nos órgãos de classe, tudo isso pode ser bom. Mas se não souber compreender bem as questões e construir argumentações consequentes, o advogado não será útil aos que precisam dele. E vai nesse sentido o incentivo do nosso patrono:
“Ninguém desanime, pois, de que o berço lhe não fosse generoso, ninguém se creia malfadado, por lhe minguarem de nascença haveres e qualidades. Em tudo isso não há surpresas, que se não possam esperar da tenacidade e santidade no trabalho” (BARBOSA, p. 56).
A sexta é: não deixe de pensar por si. O grande advogado não é o que frequentou os melhores cursos, comprou os livros mais caros ou mesmo leu a maior quantidade de textos. O grande advogado é o sujeito que, com base no que leu e observou, teve a capacidade de organizar um modo próprio de olhar as questões que se lhe apresentam. Nas palavras de Rui:
“Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas ideias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é um armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas” (BARBOSA, p. 63).
A sétima é: não se deixe vencer pelo medo. O profissional do Direito pode ser pressionado por um bandido, uma autoridade ou até mesmo pelo cliente. E não é raro que isso aconteça. Se não puder resistir, é bom que pense em trabalhar em outra área. Ceder a uma pressão desonesta pode ser o primeiro passo para deixar de ser advogado e se tornar cúmplice. A esse respeito, o nosso conselheiro vai direito ao ponto:
“Se cada um de vós meter bem a mão na consciência, certo que tremerá da perspectiva. O tremer próprio é dos que se defrontam com grandes vocações, e são talhados para as desempenhar. O tremer, mas não o descorçoar. O tremer, mas não o renunciar. O tremer, com o ousar. O tremer, com o empreender. O tremer, com o confiar. Confiai, senhores. Ousai. Reagi. E haveis de ser bem-sucedidos” (BARBOSA, p. 71).
A oitava é: não se desvie da justiça. Seria bom se o advogado refletisse sobre o sentido de sua profissão e estremecesse ante a possibilidade de contribuir com alguma injustiça. Dele se espera que apresente os interesses de seu cliente sob a melhor luz. O engano, a fraude e a mentira, no entanto, não são ferramentas do exercício da advocacia. São antes a manifestação visível do adoecimento interno do advogado e da comunidade em que está inserido. Aqui, e para encerrar essas breves considerações, cito mais uma vez o Rui Barbosa, numa passagem que mereceria ficar gravada na entrada dos escritórios de todos os advogados:
“Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se encerra para ele a síntese de todos os mandamentos. Não desertar a justiça, nem cortejá-la. Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. Não transfugir da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia. Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra aqueles. Não servir sem independência à justiça, nem quebrar da verdade ante o poder. Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas. Onde for apurável um grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial. Não proceder nas consultas, senão com a imparcialidade real do juiz nas sentenças. Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigente com caridade. Amar a pátria, estremecer o próximo, guarda a fé em Deus, na verdade e no bem” (BARBOSA, p. 83, 84).
Referência

BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. (s.l.): Ediouro, (s.d.).