segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A EDUCAÇÃO JURÍDICA FAZ MAL À SAÚDE?

Comunicação apresentada na Faculdade de Direito da UFMG, no dia 30 de agosto de 2010, durante a Semana Acadêmica, organizada pelo Centro Acadêmico Afonso Pena.

Pediram-me para falar sobre ensino e pesquisa. No entanto, ninguém teve o cuidado de me explicar exatamente os tópicos que eu deveria abordar ou o modo como deveria proceder. E eu não seria tonto de perguntar, porque assim é bem melhor. Sinto-me à vontade para falar o que quiser, do jeito que quiser, desde que, uma vez ou outra, mencione as palavras ensino e pesquisa.

E, assim, não vou começar definindo ensino e, depois, pesquisa, para, em seguida, explicar como ambos se relacionam. Também não vou começar citando a Constituição da República ou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

Proponho, ao contrário, iniciar com uma breve reflexão sobre o papel da educação jurídica em nossos dias e só um pouco mais adiante mencionar os dois assuntos indicados.

Então, mãos à obra!

É possível pensar a educação jurídica a partir da influência que exerce nos estudantes e na sociedade como um todo.

Em ambos os casos, pelo menos em tese, a educação jurídica pode ser positiva, neutra ou negativa.

Digo em tese, porque, na prática, é impossível que seja neutra. Para o aluno, não há nenhuma chance de que quatro horas por dia, durante cinco anos, não signifiquem nada. E o mesmo se pode dizer em relação à sociedade, tendo em vista o elevado número de cursos jurídicos em funcionamento e a importância das funções desempenhadas pelos bacharéis em Direito.

Restam-nos, portanto, duas alternativas verdadeiras: a educação jurídica pode produzir efeitos positivos ou pode produzir negativos.

Ou, em outras palavras, ela pode fazer bem ou pode fazer mal à saúde dos estudantes a quem se destina e da sociedade como um todo.

Para a análise das consequências que a educação jurídica pode produzir, é preciso conhecer a base sobre a qual atua. Seria conveniente um diagnóstico profundo e completo, o que não poderemos realizar aqui.

Mas, convenhamos, os estudantes, no Brasil, salvo raríssimas exceções, deixam o ensino médio e ingressam na Universidade como verdadeiros autômatos, incapazes, completamente incapazes, de pensar por si. Surpreendem-se quando se lhes diz pela primeira vez que um problema jurídico pode não ter uma única solução correta. Revoltam-se quando se lhes propõem uma atividade acadêmica que não vise à acumulação de informações úteis, mas, apenas à crítica, à análise, à reflexão.

E, sejamos francos, a sociedade em que vivemos tem problemas gravíssimos. Basta andar de olhos abertos para perceber, por exemplo, que há pessoas dormindo nas calçadas das faculdades onde o Direito é ensinado.

Nesse cenário, parece correto afirmar que a educação jurídica produzirá efeitos positivos quando proporcionar crescimento aos estudantes e quando contribuir para que a sociedade enfrente seus mais importantes desafios e, efeitos negativos, quando permitir que os estudantes concluam o curso do mesmo modo como começaram ou com hábitos e conceitos ainda piores e quando não produzir mudanças relevantes na sociedade em que está inserida ou colaborar para o agravamento de suas mazelas.

Pois bem, havendo vários modos de enfrentar o assunto, tentarei oferecer um critério que possa ter alguma utilidade para analisar tanto o papel da educação jurídica brasileira, como um todo, quanto da educação oferecida em cada instituição de ensino, e, ainda, da educação proporcionada por um professor ou vivenciada por um aluno.

Sugiro que a educação jurídica produzirá efeitos positivos quando dirigir suas atenções para frente e para fora de si e efeitos negativos quando dirigir suas atenções para traz e para dentro de si.

Ou, melhor, sugiro que tanto mais positivos serão os efeitos produzidos pela educação jurídica quanto mais atenta ela estiver às questões que se relacionam com o futuro e às questões que são importantes fora dos muros onde é praticada e tanto mais negativos quanto mais se ocupar do passado e das questões que são importantes apenas para sua economia interna.

A educação jurídica quando olha apenas para o passado, quando se ocupa tão somente do que já foi feito, das leis que já foram aprovadas, das correntes doutrinárias que já foram construídas, ou das tendências jurisprudenciais que já se consolidaram, produz consequências terrivelmente negativas.

Se os estudantes são meros repetidores das ideias que lhe são transmitidas e se a sociedade possui estruturas profundamente injustas, o fato de o curso jurídico contribuir para que nada se altere é um grande mal.

Mas a calamidade não termina aí. A simples acumulação de conhecimentos, mal elaborados e mal digeridos, faz com que os estudantes deixem os bancos acadêmicos incrivelmente mais orgulhosos e cheios de si, olhando seus concidadãos de cima para baixo, como se estes fossem pobres diabos que não possuem a chave do conhecimento do bem e do mal. A tirania do treinamento a que são submetidos, ou a que voluntariamente se submetem, para obter as informações necessárias para aprovação em concursos públicos, não deixa nenhum espaço para o sonho que traziam consigo ou para a ousadia que seria mais compatível com sua juventude.

De igual modo, o curso jurídico quando olha somente para dentro de si, quando se ocupa apenas do que lhe interessa imediatamente, das matérias que devem ser incluídas nos currículos, das bolsas que devem ser distribuídas desse ou daquele modo, dos novos prédios que devem ser construídos, produz efeitos francamente negativos.

Se os estudantes de Direito estão destinados a ocupar lugares importantes na vida do grupo social em que estão inseridos e se a sociedade possui problemas diretamente relacionados à aplicação do Direito, o fato de os cursos jurídicos não se interessarem pelo que acontece ao seu redor é um mal.

Mas o pior é que o desinteresse não é claramente assumido ou sequer problematizado, o que faz com estudantes de Direito tenham a falsa sensação de que tudo o que estudam é socialmente relevante e também faz com que a sociedade pense que a solução de suas mazelas passa pelas instituições administradas pelos detentores do saber jurídico.

Quando olha para traz, o curso jurídico produz efeitos negativos.

Quando olha para dentro, o curso jurídico também produz efeitos negativos.

E não há forma mais segura de fazer uma coisa e outra do que apostar todas as fichas num modelo de educação que privilegie o ensino, aquele ensino de tipo bancário, de que nos falava o Paulo Freire, em que o professor, detentor do saber, deposita parcelas de seu conhecimento na cabeça de seus alunos, meros recipientes, vazios e dóceis.

Para que produza melhores resultados, os cursos jurídicos devem olhar para frente, devem mirar o futuro, devem projetar as transformações de que precisamos.

Para que produza melhores resultados, os cursos jurídicos devem olhar para fora, para os problemas que a sociedade enfrenta, para o que é relevante e urgente.

E, para que olhe para frente, a pesquisa é o caminho.

E, para que olhe para fora, a extensão é o caminho.

Sim, para que olhe para frente e para fora, ao lado do ensino, deve haver pesquisa e extensão.

Ensino sem pesquisa é repetição, é culto ao passado.

Ensino sem extensão é egoísmo, é culto ao próprio ego.

Por meio da pesquisa, os estudantes experimentam o extraordinário poder da dúvida, da insegurança, dos próprios limites do saber construído. E, provam, igualmente, da maravilhosa aventura de construir, de projetar soluções, de sonhar com um mundo novo.

Por meio da pesquisa, a sociedade descobre novos modos de enfrentar seus antigos problemas, um poderoso facho de luz é direcionado para seus recônditos mais obscuros, estruturas viciadas são profundamente abaladas.

Por meio da extensão, os estudantes percebem a poderosa presença do outro, recuperam a humanidade perdida, aprender a ouvir, tornam-se sensíveis à dor alheia.

Por meio da extensão, a sociedade recebe o influxo dos novos saberes, realiza as pequenas e as grandes transformações de que necessita e devolve, generosamente, os saberes escondidos em suas práticas cotidianas.

Assim, é correto afirmar que produzirá efeitos negativos a educação jurídica que insistir apenas no ensino e efeitos positivos a que também valoriza a pesquisa e a extensão.

E, lembrando, o critério se pretende válido para analisar a educação jurídica brasileira, de modo global, mas também a educação oferecida pela instituição onde você leciona ou estuda, e até mesmo a educação que você oferece a seus alunos, caso seja professor, ou experimenta em seu cotidiano, caso seja estudante.

Então, o segredo é ensino, pesquisa e extensão.

Sim, estes três, constitucionalmente indissociáveis, e, na prática, radicalmente dissociados.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

ALÉM DO DIREITO

A principal obrigação do professor é proporcionar situações de aprendizagem relacionadas à sua matéria. Assim é que professores de Direito Civil devem cuidar de discutir Direito Civil e professores de Direito Penal devem cuidar de discutir Direito Penal.

Mas é apenas esse o papel do professor?

Recentemente, uma conversa que tive com o meu cabeleireiro me fez pensar que não. Ele me contou a história de um de seus clientes. O sujeito, geralmente alegre e muito falante, passou a se comportar de um modo estranho. Não contava as piadas de sempre, não sorria, e nem respondia às perguntas que lhe eram feitas. E assim permaneceu por uns quatro meses. Até que um dia, muito discretamente, resolveu explicar que o período de tristeza e silêncio tinha a ver com a ideia de por fim à própria da vida, abandonada depois da ajuda de um amigo. A revelação fez com que o cabeleireiro ficasse pensativo. Depois disso, a possibilidade de que a pessoa sentada na cadeira à sua frente estivesse pensando em algo tão extremo e talvez precisasse de uma palavra de alento passou a lhe parecer terrivelmente perturbadora.

Mas qual o papel do cabeleireiro?

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

NÓS, PROFESSORES, TRANSMITIMOS CONHECIMENTO?

Ao final de cada semestre, os alunos da UFMG avaliam o desempenho de seus professores. A medida é salutar e pode contribuir para o aprimoramento da prática pedagógica dos que lhe dão importância. No entanto, uma das perguntas propostas merece ser rediscutida. Trata-se da que solicita aos alunos que avaliem a capacidade de transmissão de conhecimento de seus mestres.

E eu me pergunto: nós, professores, transmitimos conhecimento?

Em Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire afirma que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (p. 25).

Em Pedagogia do Oprimido, o mesmo educador brasileiro usa a expressão ensino bancário, para se referir à prática pedagógica, por ele abominada, em que o professor, dono do saber, pretende depositar o conhecimento na cabeça de seus alunos, verdadeiras tabulas rasas, assim como qualquer um de nós deposita suas economias no caixa de uma instituição financeira (p. 65-87).

Posso estar enganado, mas penso que nós, professores, não transmitimos conhecimento.

Posso estar enganado. Mas se estiver, estarei em boa companhia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 19. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 47. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.