A primeira começa com a tentativa de revelar o nosso projeto pedagógico vigente, não o que enviamos vez ou outra ao Ministério da Educação, mas o que habita silenciosamente as nossas práticas cotidianas. Que objetivos estamos efetivamente buscando? O que esperamos dos nossos alunos ao concluírem a graduação? Estamos apostando em que metodologias de ensino e aprendizagem? De que modo as estratégias de avaliação estão articuladas com o processo educativo? Em seguida, identificado o projeto real, passaríamos a discuti-lo, procurando encontrar suas virtudes e fraquezas. A última etapa seria a construção de um novo projeto.
Uma outra abordagem poderia começar com a indicação dos objetivos que a educação superior deveria buscar.
Teríamos um bom ponto de partida na discussão dos quatro pilares da educação sugeridos pela UNESCO e amplamente conhecidos: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser (DELORS, 2010, p. 31, 32). Ou na discussão dos objetivos que o Brasil deve buscar, em conformidade com o artigo 3º da Constituição da República: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988). Ou na discussão das finalidades da educação e dos princípios que a mesma deve observar, uns e outros indicados pelo artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. As finalidades são: o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. E os princípios são: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância; coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; valorização do profissional da educação escolar; gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; garantia de padrão de qualidade; valorização da experiência extra-escolar; vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais; consideração com a diversidade étnico-racial (BRASIL, 1996).
Ao longo das discussões, a pergunta que não poderá ser contornada é a do papel do estudante na construção do saber. Se for para esse papel continuar pequeno ou nulo, a educação que estamos dispostos a promover será tudo menos verdadeira.
Assim, a primeira ideia que ofereço ao debate é a seguinte: “A reformulação da educação jurídica deve começar com a elaboração de um projeto pedagógico”.
2. Não precisamos de um pedaço de papel
O projeto pedagógico de um curso deve ser a versão escrita, meditada e articulada das formas de pensar e sentir dos integrantes da respectiva comunidade acadêmica. Antes um projeto mediano e amplamente compartilhado do que um projeto revolucionário e aceito pelos dois ou três gênios que o redigiram.
O maior desafio, portanto, não é o de colocar no papel as melhores ideias sobre educação jurídica, mas o de fazer com que elas emerjam nos espaços públicos de discussão. Caso contrário, corremos o risco de ter um lindo projeto, apto a impressionar os estudiosos da matéria, mas sem qualquer potencial de provocar mudanças verdadeiras.
O projeto pedagógico não pode ficar arquivado no computador da secretaria do colegiado de graduação. O projeto pedagógico precisa andar pelos corredores e espaços de convivência, entrar nas salas de aula, ajudar a elaborar os mecanismos de avaliação e ter o hábito de frequentar as reuniões dos órgãos colegiados.
A construção do projeto pedagógico deve ser obra de toda a comunidade acadêmica: servidores técnico-administrativos, estudantes e professores. As discussões devem ser livres e abertas. E se for preciso parar tudo a fim de chamar a atenção para o debate, as instâncias administrativas não devem hesitar em fazê-lo.
A segunda ideia para o debate é: “O projeto pedagógico deve ser amplamente compartilhado pela comunidade acadêmica”.
3. Devemos cuidar do ambiente de trabalho
Tanto a elaboração quanto a execução de um projeto pedagógico dependem de um bom ambiente de trabalho. Num cenário de conflito, ainda é possível desenvolver grandes projetos individuais. Mas os projetos verdadeiramente coletivos só podem vingar num contexto de aceitação e colaboração.
É preciso acabar com a lógica perversa da inimizade. É preciso permitir que as diferenças floresçam efetivamente. É preciso desistir da ideia de eliminar e silenciar. É preciso convidar as pessoas a expressar suas opiniões no espaço público. É preciso sobretudo ouvir. É preciso garantir que cada membro da comunidade acadêmica desenvolva plenamente o seu potencial. É preciso criar mecanismos para solucionar os conflitos. É preciso ampliar os espaços e os momentos de convivência. É preciso transformar os episódios traumáticos em grandes momentos de aprendizagem.
A terceira ideia para o debate é: “O sucesso de um projeto pedagógico depende da construção de um bom ambiente de trabalho”.
4. É preciso articular as coisas boas
Quem observa o curso de Direito da UFMG não pode deixar de notar a grande quantidade de práticas de sucesso. O Programa de Pós-Graduação em Direito é referência nacional e está muito bem avaliado pela CAPES. Há grandes e tradicionais programas de extensão, com profundos impactos em suas respectivas áreas de atuação. A pesquisa também não fica atrás, com muitos projetos e grupos produtivos e inovadores. Mas o observador também não terá dificuldade de perceber que tudo isso tem poucos reflexos imediatos no curso de graduação em Direito.
Interação com pós-graduação, extensão e pesquisa não podem ser atividades a que estudantes se dedicam quando não estão efetivamente “estudando”. É preciso tirar essas atividades das margens do processo de ensino e aprendizagem. É preciso extrair de cada uma delas tudo o que for possível.
A mesma ideia também vale para o estágio. Não é justo que os nossos estudantes tenham acesso aos melhores estágios profissionais, sem que isso, no entanto, contribua de modo intencional e articulado com os objetivos do curso de graduação.
A quarta ideia para o debate é: “O projeto pedagógico deve articular as nossas melhores práticas de estágio, pesquisa, extensão e pós-graduação”.
5. Temos a obrigação de fazer diferente
Livre dos constrangimentos do “mercado” da educação, a universidade pública tem o dever de propor novos caminhos. Se não for para oferecer uma alternativa inteligente, crítica e contextualizada de educação superior, a universidade pública simplesmente não é digna dos recursos que recebe.
No caso específico da educação jurídica, não faz sentido que uma universidade pública continue tranquilamente fazendo mais do mesmo. É preciso dar uma resposta aos nossos mais urgentes desafios. É preciso deixar que temas como pobreza, desigualdade, discriminação, corrupção e violência desafiem constantemente as nossas práticas pedagógicas. É preciso articular novas formas de pensar e vivenciar o Direito. É preciso contribuir com a reforma das nossas instituições democráticas.
Uma universidade pública do porte da UFMG tem a real possibilidade de oferecer um novo modelo de educação jurídica, com o potencial de constestar o modelo vigente e inspirar outras experiências transformadoras.
A quinta e última ideia que ofereço ao debate é: “O projeto pedagógico deve ter as marcas da ousadia e da inovação”.
CONCLUSÃO
Assim, para contribuir com a reformulação da educação jurídica da Univesidade Federal de Minas Gerais, ofereço as seguintes ideias ao debate:
1. A reformulação da educação jurídica deve começar com a elaboração de um projeto pedagógico.
2. O projeto pedagógico deve ser amplamente compartilhado pela comunidade acadêmica.
3. O sucesso de um projeto pedagógico depende da construção de um bom ambiente de trabalho.
4. O projeto pedagógico deve articular as nossas melhores práticas de estágio, pesquisa, extensão e pós-graduação.
5. O projeto pedagógico deve ter as marcas da ousadia e da inovação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
DELORS, Jacques et al. Educação: um tesouro a descobrir; relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI (destaques). Brasília: Setor de Educação da Representação da UNESCO no Brasil, 2010. [Título original: Learning: the treasure within; report to UNESCO of the International Commission on Education for the Twentyfirst Century (highlights)].