Joaquim Augusto Ribeiro da Luz, estudante da turma de 1870 a 1874, tomou especial ojerisa ao Dr. Justino, por um R, que lhe pusera, aliás merecidamente, pois não passava por estudioso.
[...]
A zanga do Luz desabava, quebrando as vidraças do Dr. Justino. Mal vinha o vidraceiro, a colocar vidros novos, surgiam certeiras as pedradas do estudante, e as janelas se esburacavam, tilintando os estilhaços sobre os lajedos da calçada.
Novos vidros, e, passadas umas poucas horas, à noitinha, ou na manhã seguinte, lá vinham de novo as pedradas, enquanto o Dr. Justino, de dentro, rugia enfezado:
– “Enquanto aquele biltre cá estiver, não ganho para vidros!”
E, afinal, se resignou a deixá-los quebrados, até que o Luz se formasse.
E se formou, por sinal com um plenamente, por empenho do Dr. Furtado. É que o subdelegado de polícia também não o queria ver mais em S. Paulo.
– “Eu preferia, – exclamava o lente de Direito Administrativo, – eu preferia que se acabassem os cadetes, ou que se acabasse o mundo, a ter de suportar mais um ano semelhante demônio!”
Não quis, porém, o endiabrado rapaz, afastar-se de São Paulo, sem pregar uma última peça ao Dr. Justino.
Este se achava, como de costume, a cavaquear, às duas horas da tarde, na loja do Sá Rocha, quando lhe surge, em atitude respeitosa, o terrível inimigo de suas vidraças.
O Dr. Justino voltou a cara para outro lado.
– “Sr. Doutor Justino, venho dar-lhe uma satisfação” – disse o estudante humildemente.
E o Dr. Justino impassível.
– “Senhor doutor, uma satisfação não se recusa: e esta é a última vez que me vê; amanhã, parto para minha Província, e não queria levar este remorso...porque eu me arrependo amargamente das minhas leviandades de rapaz, contra uma pessoa tão respeitável, um mestre tão sábio...porque a verdade é que, como estudante de Direito, sempre o acatei, como a um civilista profundo, uma das glórias da Faculdade”...
A esse tempo o Dr. Justino se ia voltando insensivelmente para o rapaz, e descarregando os sobrolhos, a princípio ferozmente contraídos.
– “Seria para mim grande tristeza, – continuava o estudante, – deixar, no espírito de V. Exª, uma recordação penosa...Venho pedir-lhe perdão de tantas loucuras de rapaz, Sr. Dr. Justino!”
Acreditando na sinceridade do estudante, começou o lente meio enleiado:
– “Está baim, está baim...Este seu proceder o reabilita. Teve os seus desmandos de rapaz...mas, corrige-se, arrepende-se. Está baim! Ora deixe-me dizer-lhe: – o Sr. Luz estudava pouco, mas revelava talento. Hoje, que está formado, aplique-se mais ao Direito, e poderá vir a ser um advogado capaz. E para o que eu lhe puder prestar, aqui estou.”
E estendia-lhe a mão, querendo pôr fim à conversa.
– “Oh! obrigadíssimo, Sr. doutor. Mas, quero merecer-lhe um obséquio: – aceitar este pequeno mimo, que tomo a liberdade de lhe oferecer – e destinado ao seu uso pessoal.”
E apresentava um embrulho quadrado, em papel de seda, atado com fita cor-de-rosa.
O Dr. Justino escusava-se acanhado.
– “É uma pequena lembrança, sem valor, e destinada ao seu uso pessoal, como recordação minha”...
– “Já agora me há de recordar o seu nome, Sr. Luz, sem precisar lembrança: basta a nobreza do seu arrependimento.”
– “Mas, condescenda, Sr. doutor, com esta última criancice. Faça-me o obséquio de aceitar.”
E deixando-lhe o embrulho nas mãos, retirou-se o Luz, não sem haver antes abraçado do Dr. Justino, e foi postar-se numa alfaiataria fronteira, onde estava um grupo de estudantes à espreita.
Logo que o Luz se retirou, começou o lente a abrir o envólucro, sob os olhares curiosos do lojista.
– “Algum objeto de escritório”...dizia o Dr. Justino, ao desfazer o embrulho pesado, e com muito enchimento de papel.
– “É o que deve ser”, concordava o Sá Rocha.
Mas, afinal, o lente recuou, pálido de raiva.
O presente que o Luz lhe trouxera, – para seu uso pessoal, – era uma ferradura!
E o Luz, da casa fronteira, enquanto os outros estudantes se escondiam:
– “Serve? Se não servir, troca-se por outra!”
– “Patife, grandíssimo biltre!” estertorou, num assomo de cólera, o Dr. Justino, enquanto o lojista o segurava pelo braço, e o levava, delicadamente, para o interior da loja.
(VAMPRÉ, Spencer. Memórias Para a História da Academia de São Paulo. Volume II. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 44, 45).
Nenhum comentário:
Postar um comentário