segunda-feira, 14 de setembro de 2009

AO MESTRE, COM CARINHO

Sabe aquela cena clássica do estudante da educação infantil que entrega uma maça ao professor? Pois bem. Às vezes, os professores ganham presentes de seus alunos. Nas próximas linhas, transcrevo trechos de uma história, narrada por Spencer Vampré, que fala justamente disso.


Joaquim Augusto Ribeiro da Luz, estudante da turma de 1870 a 1874, tomou especial ojerisa ao Dr. Justino, por um R, que lhe pusera, aliás merecidamente, pois não passava por estudioso.

[...]

A zanga do Luz desabava, quebrando as vidraças do Dr. Justino. Mal vinha o vidraceiro, a colocar vidros novos, surgiam certeiras as pedradas do estudante, e as janelas se esburacavam, tilintando os estilhaços sobre os lajedos da calçada.

Novos vidros, e, passadas umas poucas horas, à noitinha, ou na manhã seguinte, lá vinham de novo as pedradas, enquanto o Dr. Justino, de dentro, rugia enfezado:

– “Enquanto aquele biltre cá estiver, não ganho para vidros!”

E, afinal, se resignou a deixá-los quebrados, até que o Luz se formasse.

E se formou, por sinal com um plenamente, por empenho do Dr. Furtado. É que o subdelegado de polícia também não o queria ver mais em S. Paulo.

– “Eu preferia, – exclamava o lente de Direito Administrativo, – eu preferia que se acabassem os cadetes, ou que se acabasse o mundo, a ter de suportar mais um ano semelhante demônio!”

Não quis, porém, o endiabrado rapaz, afastar-se de São Paulo, sem pregar uma última peça ao Dr. Justino.

Este se achava, como de costume, a cavaquear, às duas horas da tarde, na loja do Sá Rocha, quando lhe surge, em atitude respeitosa, o terrível inimigo de suas vidraças.

O Dr. Justino voltou a cara para outro lado.

– “Sr. Doutor Justino, venho dar-lhe uma satisfação” – disse o estudante humildemente.

E o Dr. Justino impassível.

– “Senhor doutor, uma satisfação não se recusa: e esta é a última vez que me vê; amanhã, parto para minha Província, e não queria levar este remorso...porque eu me arrependo amargamente das minhas leviandades de rapaz, contra uma pessoa tão respeitável, um mestre tão sábio...porque a verdade é que, como estudante de Direito, sempre o acatei, como a um civilista profundo, uma das glórias da Faculdade”...

A esse tempo o Dr. Justino se ia voltando insensivelmente para o rapaz, e descarregando os sobrolhos, a princípio ferozmente contraídos.

– “Seria para mim grande tristeza, – continuava o estudante, – deixar, no espírito de V. Exª, uma recordação penosa...Venho pedir-lhe perdão de tantas loucuras de rapaz, Sr. Dr. Justino!”

Acreditando na sinceridade do estudante, começou o lente meio enleiado:

– “Está baim, está baim...Este seu proceder o reabilita. Teve os seus desmandos de rapaz...mas, corrige-se, arrepende-se. Está baim! Ora deixe-me dizer-lhe: – o Sr. Luz estudava pouco, mas revelava talento. Hoje, que está formado, aplique-se mais ao Direito, e poderá vir a ser um advogado capaz. E para o que eu lhe puder prestar, aqui estou.”

E estendia-lhe a mão, querendo pôr fim à conversa.

– “Oh! obrigadíssimo, Sr. doutor. Mas, quero merecer-lhe um obséquio: – aceitar este pequeno mimo, que tomo a liberdade de lhe oferecer – e destinado ao seu uso pessoal.”

E apresentava um embrulho quadrado, em papel de seda, atado com fita cor-de-rosa.

O Dr. Justino escusava-se acanhado.

– “É uma pequena lembrança, sem valor, e destinada ao seu uso pessoal, como recordação minha”...

– “Já agora me há de recordar o seu nome, Sr. Luz, sem precisar lembrança: basta a nobreza do seu arrependimento.”

– “Mas, condescenda, Sr. doutor, com esta última criancice. Faça-me o obséquio de aceitar.”

E deixando-lhe o embrulho nas mãos, retirou-se o Luz, não sem haver antes abraçado do Dr. Justino, e foi postar-se numa alfaiataria fronteira, onde estava um grupo de estudantes à espreita.

Logo que o Luz se retirou, começou o lente a abrir o envólucro, sob os olhares curiosos do lojista.

– “Algum objeto de escritório”...dizia o Dr. Justino, ao desfazer o embrulho pesado, e com muito enchimento de papel.

– “É o que deve ser”, concordava o Sá Rocha.

Mas, afinal, o lente recuou, pálido de raiva.

O presente que o Luz lhe trouxera, – para seu uso pessoal, – era uma ferradura!

E o Luz, da casa fronteira, enquanto os outros estudantes se escondiam:

– “Serve? Se não servir, troca-se por outra!”

– “Patife, grandíssimo biltre!” estertorou, num assomo de cólera, o Dr. Justino, enquanto o lojista o segurava pelo braço, e o levava, delicadamente, para o interior da loja.

(VAMPRÉ, Spencer. Memórias Para a História da Academia de São Paulo. Volume II. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 44, 45).

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