quinta-feira, 27 de maio de 2010

ENTREVISTA COM GUSTAVO ROMANO


Gustavo Romano cursou a graduação em Direito na PUC/MG. Em seguida, fez mestrado em Direito em Harvard. Fundou o projeto Para Entender Direito (www.paraentenderdireito.org) e é sócio da consultoria Quanta Corporate Citizenship (www.quantacitizenship.com). Em maio de 2010, concedeu-nos, por e-mail, a seguinte entrevista.

1. Como foi a experiência de estudar em Harvard?

É uma experiência incrível. Você tem aula com alguns dos melhores professores do planeta, acesso à segunda maior biblioteca do mundo, e colegas incrivelmente inteligentes de mais de cem nacionalidades diferentes. É também uma experiência de humildade. Me lembro que na primeira semana o diretor da faculdade de Direito nos ofereceu um almoço e, durante seu discurso, disse algo como 'todos vocês estão aqui por terem sidos os melhores de onde quer que vocês tenham vindo, mas não se esqueçam que aqui todos vocês são iguais, e isso muitas vezes pode machucar seus egos'.


2. Quais as principais diferenças entre o ensino jurídico no Brasil e nos Estados Unidos da América?

É mais fácil falar das semelhanças do que das diferenças pois lá quase tudo é diferente. Primeiro, o sistema não é codificado, por isso as aulas se desenvolvem ao redor de 'case studies' (algo como jurisprudência, no Brasil, mas não é exatamente a mesma coisa). O sistema é todo baseado em princípios e respeito à sabedoria do magistrado, enquanto no Brasil ele é baseado em leis e dúvida na capacidade do magistrado julgar (e, por isso, tantos recursos).

Outra diferença gritante é como nossa visão é pequena no Brasil. Estudamos direito italiano, alemão e, quando muito, francês, e achamos que esses países são fontes de direito. Não são. A maior parte dos juristas 'importados' que eu conhecia no Brasil nunca tiveram qualquer imporância lá fora. Na verdade, o único professor que mencionava qualquer daqueles juristas tão famosos no Brasil era justamente um professor brasileiro. E era para criticá-los. Quando estava lá fui procurar um livro de um dos filósofos mais discutidos nas faculdades no Brasil. Achei uma única cópia, e a última vez que ela tinha saído da biblioteca foi em 1983! De repente tive noção como minha visão do mundo era míope.

Outras duas diferenças importantes é que, primeiro, o curso de direito lá é uma pós-graduação. Ele dura apenas 3 anos, mas para chegar lá, você primeiro precisa ser formado em alguma outra coisa. O trajeto normal para se formar em direito é estudar algo (política, economia, biologia etc), formar-se, trabalhar alguns anos (ou servir o exército), e depois voltar para estudar direito. Isso significa que a idade média dos estudantes de lá é bem mais alta do que no Brasil, o que aumenta a maturidade emocional e experiência de vida dos alunos.

Por fim, a segunda diferença é que o ensino é quase auto-aprendizado. Você tem 10 aulas de 3 horas por assunto. E é isso. O resto, você se vira nas bibliotecas estudando por conta própria. Quando estudava no Brasil, eu achava que estudar duas ou três horas por dia era o suficiente. E talvez fosse. Mas lá, estudávamos nas bibliotecas todos os dias, inclusive sábados e domingos, até meia-noite. E chegávamos em casa e estudávamos mais um pouco. Perdi a conta de vezes em que vi o sol se levantar enquanto eu ainda estava em minha escrivaninha.

3. Se você fosse Ministro da Educação, e tivesse amplos poderes de reforma, que modificações faria no sistema brasileiro de ensino jurídico?

Hoje qualquer um no Brasil tem um diploma de direito, mas a OAB aprova menos de 20% dos candidatos. Não porque a prova seja difícil (não é. É uma prova muito fácil, aliás), mas porque estamos formando alunos como se fosse linha de montagem. Iludir o aluno é um crime. Ou começamos a fechar más escolas, demitir maus professores, e reprovar maus alunos, ou vamos continuar fingindo que ensinamos, e eles vão continuar fingindo que aprendem, e cinco anos depois, quando se depararem com as realidades do mercado, vão cair na real e perceberão como traímos sua confiança. É muito melhor sermos rígidos conosco e com os alunos no início do que mantermos uma mentira educacional.

4. Se você estivesse começando o curso jurídico agora, o que faria de diferente?

Tudo. Faria tudo com muito mais atenção, não aceitaria a mediocridade - minha e alheia - de forma tão passiva, estudaria muito mais e com muito mais afinco, seria muito menos tímido e me aproximaria mais dos bons professores que tive (e tive alguns geniais, como a Carmen Lúcia, a Wilba Lúcia, o Carlos Augusto Canêdo, o Leonardo Isaac, o Moacyr Lobato e o Álvaro de Souza Cruz). Eles talvez não tenham a dimensão de como mudaram minha vida, da gratidão que tenho por seus ensinamentos e suas condutas, e como me moldaram no que sou, e no que muitos de nós nos tornamos. E me afastaria completamente daqueles que não eram apaixonados por direito, mas apenas por si próprios. Me aproximaria mais e não perderia o contato com alguns colegas geniais que tive e não soube usufruir como deveria, como você. É incrível como algumas pessoas deixam suas marcas para sempre em nós, e acabamos só percebendo isso depois que já perdemos contato ou estamos a 10 mil quilômetros de distância. Guardo um carinho enorme por essas pessoas que me fizeram um ser humano um pouco melhor, não só do ponto de vista intelectual, mas que me mostraram como é possível viver uma vida ética.

5. Em sua opinião, quais as áreas mais promissoras para o futuro profissional do Direito?

Do ponto de vista mundial, a internet hoje é vista como um todo. Em breve começaremos a ter subdivisões. Internet e produção de conteúdo, confidencialidade, direito internacional na internet, direito criminal pela internet, direito tributário da internet etc. Teremos que reaprender tudo que sabemos. Por exemplo, as pessoas ainda não perceberam que para empresas como Google, Twitter, Facebook etc, não somos clientes: somos os produtos. Clientes são as empresas de mídia. Isso têm uma séria de consequências de como o direito é aplicável.

As biociências e farmacologia são outra área muito promissora. Em 20 anos o mundo da genética, venda, transporte e replicagem de órgãos, bem como de patentes de produtos geneticamente manipulados estará bem mais desenvolvido. Acho que a agricultura, formas alternativas de energia, e tudo relacionado à reciclagem, carbono e sustentabilidade também deve ser algo incrível.

Acho que, no caso do Brasil, direito tributário internacional, fusões e aquisições internacionais e direito laboral internacional ainda vão se desenvolver bastante à medida que a economia do país crescer. Ainda temos muito pouco expatriado vivendo no Brasil. Em breve isso vai mudar drasticamente e o nosso direito vai ter de se adaptar a isso. Com o aumento de famílias com bens e nacionalidades distintas, teremos que ter juristas que entendam de mais de um direito, pois as relações se tornarão muito mais complexas.

Acho que, com o aumento da renda, começaremos a prestar mais atenção em áreas que até hoje não notamos, como saúde e proteção (health & amp; safety), e teremos que ter pessoas para aplicar essas novas normas e para combatê-las, pois elas podem se tornar um empecilho para o desenvolvimento de uma sociedade. Se bem usadas, e com moderação, elas protegem, se extrapoladas, nos torna uma sociedade de covardes.

Por fim, acho que o Brasil ainda é muito imaturo em termos de produtos bancários, especialmente em bancos de investimento. Vamos precisar de gente muito bem preparada para lidar com os novos produtos quando começarmos a desenvolvê-los no Brasil.

6. Como você percebe o mercado de consultoria jurídica?

Ainda é muito pequeno e basicamente composto de pessoas que já possuíam ligações pessoais com seus clientes. Ainda que seja sócio de uma consultoria, tenho medo da palavra consultor. Boas empresas não querem consultores, querem excelentes parceiros que comam o pão junto com elas. Para quem quer entrar nessa área, tenha certeza que você sabe mais de sua área do que 99.9% de seus colegas. É a única forma de sobreviver.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

SOBRE LESMAS, BORBOLETAS E CARACÓIS*

No meu tempo de menino, na bela e pacata cidade de Mantena, no interior de Minas, quando encontrávamos uma lesma se arrastando lentamente pelo chão, invariavelmente, cumpríamos o ritual, um tanto perverso, de colocar um bocado de sal em cima do pobre molusco. Algum tempo depois, quando voltávamos para ver o resultado, no lugar onde estava a lesma, só havia, então, uma pequenina poça d’água.

Certo dia, quando brincava com meus primos, achamos um casulo preso num galho do pé de goiaba. A descoberta nos impressionou muito, especialmente porque o estranho objeto realizava pequenos movimentos. Logo percebemos que a coitadinha da borboleta tentava se libertar, mas não tinha forças suficientes. Então, resolvemos ajudar. Com um estilete, que usávamos para apontar lápis, e com todo o cuidado do mundo, conseguimos tirá-la da prisão. Para nossa tristeza, no entanto, mesmo depois de alguns minutos, suas asinhas não se desenrugavam, e ela não conseguia voar.

Mas, o que essas duas memórias de minha infância querida têm a ver com a gestão contemporânea da educação e com o trabalho professor? Talvez, nada. É o que veremos um pouco mais adiante.

Nos nossos dias, a principal característica da gestão educacional é a deliberada adoção de métodos produzidos pela Ciência da Administração. A gestão da escola se aproxima da gestão da empresa. Isso implica, por exemplo, na elaboração de planejamento estratégico, na imposição de metas de produção, na realização de avaliação de resultados, na implementação de iniciativas de redução de custos.

Nas universidades públicas, a adoção desses métodos tem servido, principalmente, para buscar o aumento dos índices de produção acadêmica, além de permitir, em períodos eleitorais, que os governantes apresentem números positivos no campo educacional.

Nas escolas particulares, a adoção dos mesmos métodos tem servido, basicamente, para buscar a diminuição dos custos e a conseqüente maximização do lucro.

E, por fim, nas escolas particulares, sem finalidade lucrativa, os métodos têm servido principalmente para a busca de obtenção de melhores índices nos vários mecanismos de avaliação de desempenho escolar.

Mas, em todos os casos, privilegia-se o objeto e não o sujeito, a quantidade e não a qualidade.

Nas escolas públicas, o foco está direcionado para fatores como número de publicações, número de orientações de monografias ou teses, número de alunos matriculados, número de alunos concluintes.

Nas escolas particulares, para o lucro que o empreendimento proporciona.

E, nas escolas particulares, sem finalidade lucrativa, para o posicionamento da instituição nos mais variados rankings educacionais.

Em nenhum desses cenários, no entanto, os sujeitos são verdadeiramente importantes. Nem o aluno, nem o professor. O aluno só é importante pelo que pode produzir ou pagar. E o professor pelo que pode fazer para que o aluno produza ou pague. O aprendizado não está em jogo. O livre desenvolvimento da personalidade dos sujeitos envolvidos, muito menos.

Do professor, nas universidades públicas, espera-se que produza e, se possível, dê boas aulas.

Nas escolas particulares, espera-se que dê boas aulas, para que os alunos, melhor dizendo, os consumidores, felizes com a adequada prestação do serviço, remunerem adequadamente o fornecedor.

Nas escolas particulares, sem finalidade lucrativa, espera-se que o professor dê boas aulas, para que os alunos acumulem o máximo de dados, a fim de que possam se comportar bem nas avaliações a que serão submetidos.

Para que entregue esses resultados, o professor é submetido a cobranças de todo tipo.

Se não produz, perde pontos no relatório anual. Se não tem um bom currículo Lattes, não obtém financiamento de pesquisa. Se não realiza pesquisa com financiamento, não tem um bom currículo Lattes. Quando dá aulas muito críticas, os alunos reclamam que não tem didática. Quando dá aulas lineares, dizem que não tem profundidade.

Nada contra as cobranças, normais em qualquer ambiente profissional. O problema é que o conjunto dos elementos colocados à disposição do professor, para que entregue os resultados esperados, não é minimamente satisfatório.

Nas universidades públicas, muito embora os alunos tenham, em regra, boa formação escolar, o que permitiria o desenvolvimento de um bom trabalho educacional, a infra-estrutura é deficiente, a remuneração é pífia, o volume de trabalho é desumano.

Nas escolas particulares, ainda que a infra-estrutura seja, em regra, muito boa, a formação escolar de grande parte dos alunos não é satisfatória e a remuneração passa muito longe de ser adequada.

Resumindo, em qualquer contexto, espera-se muito do professor, mas não lhe são oferecidas condições adequadas de trabalho.

E isso provoca sofrimento.

Provocaria sofrimento em qualquer profissional.

Mas, em relação ao professor, a questão é ainda mais grave, por conta de uma circunstância especial. Comumente, trata-se o magistério como sacerdócio, como vocação pura, como atividade para pessoas idealistas, sonhadoras. E o professor, por acreditar nessa imagem, não apenas se submete às mais adversas condições de trabalho, como tem o seu sofrimento multiplicado quando fracassa no cumprimento de sua tarefa. Sim, porque, além de ficar privado das vantagens que obteria caso fosse bem sucedido, além de experimentar o prejuízo material decorrente de seu fracasso, o professor, em seu íntimo, sente-se abatido por não ter logrado êxito na missão de ensinar.

E não sofre apenas o professor. O aluno ressente-se, igualmente.

E a sociedade, de modo mais amplo, sofre com a qualidade da educação que recebe.

E o drama é que também esperamos muito da educação, apostamos muito na educação, falamos muito em educação, discutimos muito a educação, mas não saímos do lugar quando o assunto é educação.

Tragicamente, nossas reformas educacionais são antes estratégias de manipulação de números que mecanismos de profunda transformação.

E aqui nem vale a pena olhar para traz, em busca de um passado glorioso, que, de resto, não temos.

Quando, independente o país, em 1822, e instalada a nossa primeira Assembléia Constituinte, em 1823, ante a oportunidade de organizar globalmente o ensino público, fizemos uma escolha de trágicas conseqüências (BRASIL, 1977, p. 23-25, 58, 174, 175).

Durante os debates sobre a criação de um curso jurídico, para dotar o país dos quadros administrativos de que tanto necessitava, o deputado Montezuma sugeriu que os trabalhos fossem suspensos, dando lugar à elaboração de um “plano geral de educação”.

Costa Barros concordava com a ideia. Por isso, dirigiu aos colegas a seguinte pergunta:

"Como procuramos já, de presente, estabelecer universidades onde não há mestre de primeiras letras?"

Em 1826, quando a proposta de fundação dos cursos jurídicos foi retomada, o deputado Ferreira França sugeriu que, antes de implantar o ensino superior, os parlamentares deveriam cuidar da "maneira de promover a primária instrução da mocidade, qual é o ler, escrever, contar, medir comumente, etc".

A opinião vencedora, no entanto, foi a de Souza França.

O deputado, depois de defender a urgência na implantação dos cursos jurídicos, para o provimento dos cargos administrativos do Estado, concluiu:

“Temos, ou não temos escolas de primeiras letras? Eu creio que em qualquer parte do Brasil, ou bem ou mal, sabe-se ler e escrever”.

Assim, a 11 de agosto de 1827, os cursos jurídicos foram criados no Brasil, antes, muito antes da organização global do sistema de ensino.

Adotamos, portanto, essa solução original de, querendo construir um edifício, o edifício da educação nacional, começarmos pelo teto e não pela base.

E de lá pra cá não foram poucas as reformas a que o nosso peculiar edifício foi submetido. Nenhuma delas, no entanto, ocupou-se de oferecer melhores condições a que o trabalho docente se desenvolva. As formas de avaliação são alteradas. Os modelos de ingresso nas universidades são modificados. Matérias são incluídas nos currículos. Matérias são retiradas dos currículos. Nada, no entanto, que melhore a situação do professor.

E, entre as muitas medidas que poderiam fazê-lo, como, por exemplo, a redução do número de alunos por turma, a adoção de medidas de qualidade de vida no trabalho, há uma sem a qual nenhuma outra faz sentido.

Trata-se do modo como se remunera professor, em todos os níveis de ensino. O problema é grave e antigo.

Quando o parlamento brasileiro discutia a criação dos cursos jurídicos, surgiu a idéia de se equiparar a remuneração dos professores catedráticos à dos desembargadores das Relações. E a Lei de 11 de agosto de 1827 fez isso. Nada mais que um pedaço de papel, no entanto.

Ao longo de todo o período imperial, os professores dos cursos jurídicos ficaram submetidos a baixas remunerações.

Em 1860, Aprígio Guimarães, professor na Faculdade de Direito do Recife, fez a seguinte reclamação: "Dão-nos as honras e o tratamento de desembargadores, e recusam-nos os ordenados destes [...]" (GUIMARÃES, 1860, p. 19).

Algum tempo depois, o falecimento de dois professores de Direito permitiu revelar o quanto a baixa remuneração, por vezes, conduzia a situações dramáticas, como se pode notar pela leitura do seguinte relatório, de 1870:

"Na idade de 77 anos e depois de 42 de aturado ensino, o nosso colega, de saudosa memória, o Conselheiro Lourenço Trigo de Loureiro, apesar de uma vida retirada e parcimoniosa, achou-se, em seus últimos momentos, em tal penúria, que, a não serem os cuidados de seus amigos, os seus restos mortais ficariam a cargo da gélida caridade oficial.

[...]

A não ser a Munificência Imperial, [...] em favor da desprotegida família de [...] nosso colega Dr. Braz Florentino Henriques de Souza, a esposa e filhos desse ilustre cidadão, que somente viveu para servir às ciências e ao país, achar-se-ia na luta contra as principais necessidades da vida!" (AGUIAR, 1870, P. 2).

Como se percebe, portanto, é muito longa a nossa tradição de remunerar mal os professores.

E sem enfrentar esse ponto, não há mecanismo contemporâneo de gestão que contribua para a melhoria da qualidade do ensino.

O professor, porque mal remunerado, ou se realiza profissionalmente fora do magistério, e acaba relegando-o a segundo plano, ou fica obrigado a trabalhar tanto, e, às vezes, em tantos lugares, que não consegue, ainda que queira muito, imprimir a qualidade desejada na execução de suas tarefas.

Agora, como resumo do foi dito, gostaria de propor as seguintes teses, para subsidiar futuras discussões:

1. A gestão contemporânea da educação se aproxima da gestão empresarial.

2. Em conseqüência, espera-se que o professor produza determinados resultados.

3. As atuais condições de trabalho de que o professor dispõe não permitem, no entanto, que ofereça resultados satisfatórios.

4. O fracasso escolar provoca sofrimento e decepção, principalmente no professor, mas também no aluno, e na sociedade de modo mais amplo.

5. A gestão escolar deveria se preocupar antes com a qualidade que com a quantidade, antes com o livre desenvolvimento dos sujeitos envolvidos que com a produção de estatísticas favoráveis.

6. Nenhum outro fator poderia colaborar com mais intensidade para as mudanças desejadas que a completa revisão do modo de remunerar o professor.

Eram essas as ideias que eu havia preparado para a nossa conversa. Permitam-me apenas, nessa despedida, retomar aquelas duas historinhas do início.

Vocês sabem por que nós, meninos levados, colocávamos sal na lesma? Não sei, mas suspeito que tenha algo a ver com o desprezo que sentíamos por aquele bichinho lento, preguiçoso, quase imóvel.

Vocês sabem por nós, meninos inquietos, ajudamos a borboleta a sair do casulo. Também não sei, mas suspeito que tenha algo a ver com impaciência, incapacidade de esperar, pressa.

Nós não gostamos de lentidão. Nós gostamos de pressa. Os mecanismos contemporâneos de gestão priorizam o número, a quantidade. É preciso, então, andar, correr, voar.

O problema é que com a educação é diferente. Não por outro motivo Rubem Alves deu ao seu último livro sobre o assunto o título de A Pedagogia dos Caracóis. Nele, o autor mineiro defende o valor da vagareza quando o negócio é aprender e ensinar.

O caracol, e não o gavião ou a lebre, é o modelo do bom professor e do bom aluno. E é então, com um pequenino trecho desse livro que me despeço:

“A lentidão é uma virtude a ser aprendida num mundo em que a vida é obrigada a correr ao ritmo das máquinas. Gastar tempo conversando com os alunos. Saber sobre sua vida, seus sonhos. Que importa que o programa fique atrasado? A vida é vagarosa. Os processos vitais são vagarosos. Quando a vida se apressa, é porque algo não vai bem” (ALVES, 2010, p. 79,80).

Referências Bibliográficas

AGUIAR, João José Ferreira de. Memória Histórico-Acadêmica do Ano de 1870. Recife: [s.n.], 1871.

ALVES, Rubem. A Pedagogia dos Caracóis. Campinas: Verus, 2010.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Criação dos Cursos Jurídicos no Brasil. Brasília: Centro de Documentação e Informação, 1977.

GUIMARÃES, Aprígio Justiniano da Silva. Memória Histórica Acadêmica Apresentada na Primeira Sessão do Ano de 1860 à Faculdade de Direito do Recife, na Forma do Artigo 164 dos Estatutos. Recife: [s.n.], 1860.

*Questões apresentadas aos participantes do I Ciclo de Estudos sobre Trabalho e Saúde Mental, organizado pela Escola Judicial do TRT/MG, em 21 de maio de 2010.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

SOBRE O ENSINO JURÍDICO NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA


Contribuição enviada por Ludmila Oliveira e Tarcísio Magalhães,
estudantes do 7º período da Faculdade de Direito da UFMG,
intercambistas na University of Wisconsin-Madison.


Em julho de 2008, recebemos a notícia de que havíamos sido aprovados no Programa de Mobilidade Discente Internacional do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais para cursar o segundo semestre de 2009 na University of Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos da América. Ficamos extremamente felizes, mas, ao mesmo tempo, receosos de como seria estudar em uma universidade em outro país, cujo sistema jurídico é tão diverso do nosso. Por se tratar de um país adepto do Common Law, optamos por cursar disciplinas relacionadas ao Direito Internacional, além de Direito Americano.

O meio acadêmico nos Estados Unidos é extremamente diferente do brasileiro: a faculdade, os professores, os alunos, o estilo das aulas, as formas de ensino e aprendizado, os métodos avaliativos e por aí em diante…

Vejamos:

Primeiramente, vale ressaltar que o curso de Direito é uma pós-graduação (chamada de graduation). Em outras palavras, é necessário ter um diploma de um curso de 4 anos (undergraduation) para ingressar na faculdade de Direito. O curso de Direito dura, em média, 3 anos e, a partir do 2 ano, a grade curricular é montada pelo próprio aluno.

Os professores—que, quase à unanimidade, não desempenham outra atividade que não a do magistério—, sempre enviam, alguns dias antes do início das aulas, e-mails, para todos os alunos matriculados na disciplina, com o cronograma do curso (o syllabus), contendo todas as tarefas e leituras referentes a cada aula do semestre. É obrigatório que todos os alunos leiam todo o material indicado para cada dia de aula; uma leitura bastante extensa, incluindo, muitas vezes, vários capítulos de um livro. O syllabus contem tarefas, inclusive, para o primeiro dia de aula. Por isso, uma semana antes das aulas começarem, a biblioteca fica repleta de alunos cumprindo suas respectivas tarefas agendadas para o primeiro dia.

O material didático é composto de Casebooks, isto é, livros com pouca explicação da matéria e muitos casos. O alunos aprendem sempre com base em casos, pois o ensino jurídico americano é muito voltado para o caso concreto e o Direito na prática.


O ensino nas faculdades de Direito norte-americanas se baseia no método socrático, ou seja, os professores tendem a responder às perguntas dos alunos sempre com outra pergunta, estimulando a discussão e o debate, de modo a construírem, professor e aluno, o conhecimento juntos. Diz-se que, nas salas de aula americanas, o professor e os alunos se encontram em pé de igualdade, ambos buscando aprender. Os alunos são constantemente incentivados a questionarem e a participação é sempre considerada na hora da pontuação. Logo, as aulas de Direito nunca são expositivas, mas sempre discursivas. O professor ministra sua aula dirigindo perguntas aos alunos, as quais devem ser respondidas com base na leitura prévia. Por essa razão, as turmas são, em sua maioria, bem reduzidas (cursamos uma matéria, por exemplo, na qual somente 10 pessoas estavam matriculados).

Outra discrepância com o nosso sistema são os métodos avaliativos. Em primeiro lugar, as notas são dadas quase sempre em curva. Isso significa que a nota de cada aluno é atribuída em comparação com a do colega. Via de regra, somente 10% da classe pode obter conceito A, 25% B, 35% C, 30% D, alguns poucos sendo reprovados. Tal sistema proporciona uma forte competição entre os alunos. Cada um estuda com seus próprios materiais e ninguém empresta anotações, resumos ou similares, vez que, se um aluno ajudar o outro, estará se prejudicando. Por fim, os alunos recebem suas notas contendo a posição na qual eles se encontram perante o restante da turma, ou seja, suas colocações em um ranking de melhores alunos. Isto é de extrema importância para os alunos de Direto, pois os grandes escritórios valorizam boas notas e contratam apenas os mais bem conceituados.


Os professores tem total liberdade para escolher como os pontos do semestre serão distribuídos. Alguns optam pela elaboração de artigos, outros mesclam artigos e provas escritas e ainda tem aqueles que decidem aplicar somente uma prova ao final do semestre. Em função do próprio sistema jurídico norte-americano, os professores não levam em conta, na hora da avaliação, se o aluno decorou cada trecho do livro ou se gravou cada palavra dita em sala de aula. O relevante é que as respostas às questões nas provas e o raciocínio apresentado nos artigos sejam capazes de convencer o professor. O que se busca desenvolver e aperfeiçoar é sempre a persuasão. Os alunos de Direito estadunidenses são treinados a ganharem casos, o que é feito provando ser seu argumento o melhor e destruindo o argumento adversário.

Finalmente, um aspecto que nos marcou é a estrutura fornecida pela universidade, principalmente para pesquisa. Existem 56 bibliotecas no campus, sendo muitas delas 24 horas. As bibliotecas são equipadas com máquinas de xerox e scanners, cafeteria, computadores, máquinas de refrigerante e salgadinhos, sofás... Enfim, tudo o que o aluno possa precisar. Além do vastíssimo banco de dados da própria universidade (para se ter uma idéia, é possível ler a Folha de São Paulo através do site da biblioteca, dentre outros milhares de jornais, revistas e artigos de toda parte do globo), existe ainda um convênio celebrado entre a University of Wisconsin-Madison e diversas outras universidades do mundo (inclusive a USP), por meio do qual o aluno pode encomendar, via internet, um livro que se encontra em outra biblioteca (no Brasil, na Europa, etc.) sem qualquer custo adicional. Ademais, não há limite máximo de livros por aluno e as bibliotecas emprestam, além de livros, é claro, DVDs, jogos de video game e, até mesmo, notebooks e carregadores, tudo com a simples apresentação da carteira da biblioteca. Por último, existem equipes espalhadas pelo campus para auxiliar os alunos na elaboração de artigos e resolução de exercícios, corrigindo e dando dicas.

Esperamos que as informações tenham ajudado àqueles que queiram embarcar nessa aventura do intercâmbio acadêmico internacional. Nos colocamos à disposição para responder eventuais dúvidas sobre moradia, visto, passagem, gastos etc., e, obviamente, sobre o sistema de ensino norte-americano. Basta entrar em contato!

segunda-feira, 10 de maio de 2010

MAGISTÉRIO: ARISTOCRACIA OU SACERDÓCIO?

Colaboração enviada por Gustavo Romano, mestre em direito (Harvard), administração (London Business School) e ciências políticas (UFMG), fundador do projeto Para Entender Direito (www.paraentenderdireito.org), sócio da consultoria Quanta Corporate Citizenship (www.quantacitizenship.com), responsável, desde 2000, pelo treinamento jurídico do jornal Folha de S.Paulo.

Quando eu ainda estava estudando Direito ouvi uma conversa na sala dos professores, na qual um dos interlocutores defendia com grande orgulho que o ‘magistério é a nova aristocracia brasileira’. De acordo com ele, depois do fim das aristocracias de verdade, os pretendentes a aristocratas primeiro se refugiaram no Itamarati, mas depois que o Itamarati começou a ter de se envolver mais com relações comerciais e menos com debates artístico-filosóficos, os pretendentes a aristocratas encontraram no magistério universitário um refúgio seguro. Ele, por isso, era um aristocrata.

Aquela colocação me importunou de imediato, mas confesso que demorei muito tempo para finalmente entender por que ela me importunou tanto.

O estereótipo que nossa cultura republicana tem da aristocracia é de uma classe que vive do trabalho alheio, sentada na riqueza conquistada não por seu esforço próprio, mas pelo esforço das gerações precedentes. Ela possui um poder que não lhe é de direito por mérito próprio, mas por acasos genéticos, tradições obscuras e normas feitas para lhe proteger. E ela usufrui desse poder e de redes quase que invisíveis de relações pessoais, para perpetuar-se, proteger seus escolhidos, tolher o que quer que lhe ameace e expandir o alcance de seus interesses pessoais sempre que possível.

Infelizmente, acho que aquele professor tinha razão. Muito do que vejo no magistério – jurídico ou não – de hoje é muito parecido com aquele estereótipo de aristocracia que temos no mundo de hoje. Basta ver como encaramos os títulos acadêmicos. Uma boa parcela daqueles que procuram mestrados e doutorados o fazem não pela curiosidade intelectual e pelo desejo de inovar, mas como um ritual de passagem, como a compra de um título de grão ducado para serem aceitos no mundo dos novos aristocratas.

Nos esquecemos da origem da aristocracia real: eram pessoas que iam para a frente de batalha defender seu território, seu senhor ou seu rei, e, por atos de valentia e inteligência, se destacavam durante a batalha. Se ganhassem a guerra e voltassem vivas, eram agraciadas com títulos e direitos. Mas que também perdiam tudo se, na próxima batalha, se acovardassem ou perdessem a disputa. Foram seus descendentes, gerações mais tarde, que pararam de ir à guerra e passaram a viver das glórias e fortunas de seus antepassados. Vivem de observar e criticar. Vivem superfluamente.

Se olharmos como obtemos nossos títulos de doutores e mestres hoje, vemos que não enfrentamos qualquer batalha real. A maior parte do trabalho – se não sua totalidade – é copiar, citar e criticar trabalhos alheios. Poucos – mas eles ainda existem – são aqueles que realmente inovam, que dão a cara a tapa, que vão para a frente de batalha e propõe novas idéias, que criam novas formas de fazer ou pensar. Criticar as táticas das batalhas alheias é fácil. Vencer uma batalha exige coragem, criatividade e determinação.

E esse vício continua depois que somos aceitos no mundo acadêmico-aristocrata. Flanamos sem agregar, sem modificar, sem inovar, sem inspirar. Sem a paixão tão essencial em uma frente de batalha. Levamos para as salas de aula a impressão de que o ócio – intelectual e das ações – é algo aceitável. Não é. Magistério é a arte de cativar, de inovar, de inspirar, de doar-se. Como os aristocratas iniciais, que perdiam sua honra, seus títulos e seus direitos quando se acomodavam ou acovardavam, aquele meu professor se esqueceu que ele também perdia a única coisa que realmente deveria importar: a capacidade de transformar seus alunos em algo melhor do que ele mesmo.

Há muitos anos, quando o Giordano me convidou para ministrar uma palestra inaugural na PUC/MG, eu a terminei dizendo que magistério não é profissão, é sacerdócio. Passada uma década desde que dei aquela palestra, provavelmente tudo em mim mudou e todos os meus pontos de vista foram revistos, exceto minha crença de que magistério deveria ser encarado como um sacerdócio e não uma profissão.