Colaboração enviada por Gustavo Romano, mestre em direito (Harvard), administração (London Business School) e ciências políticas (UFMG), fundador do projeto Para Entender Direito (www.paraentenderdireito.org), sócio da consultoria Quanta Corporate Citizenship (www.quantacitizenship.com), responsável, desde 2000, pelo treinamento jurídico do jornal Folha de S.Paulo.
Quando eu ainda estava estudando Direito ouvi uma conversa na sala dos professores, na qual um dos interlocutores defendia com grande orgulho que o ‘magistério é a nova aristocracia brasileira’. De acordo com ele, depois do fim das aristocracias de verdade, os pretendentes a aristocratas primeiro se refugiaram no Itamarati, mas depois que o Itamarati começou a ter de se envolver mais com relações comerciais e menos com debates artístico-filosóficos, os pretendentes a aristocratas encontraram no magistério universitário um refúgio seguro. Ele, por isso, era um aristocrata.
Aquela colocação me importunou de imediato, mas confesso que demorei muito tempo para finalmente entender por que ela me importunou tanto.
O estereótipo que nossa cultura republicana tem da aristocracia é de uma classe que vive do trabalho alheio, sentada na riqueza conquistada não por seu esforço próprio, mas pelo esforço das gerações precedentes. Ela possui um poder que não lhe é de direito por mérito próprio, mas por acasos genéticos, tradições obscuras e normas feitas para lhe proteger. E ela usufrui desse poder e de redes quase que invisíveis de relações pessoais, para perpetuar-se, proteger seus escolhidos, tolher o que quer que lhe ameace e expandir o alcance de seus interesses pessoais sempre que possível.
Infelizmente, acho que aquele professor tinha razão. Muito do que vejo no magistério – jurídico ou não – de hoje é muito parecido com aquele estereótipo de aristocracia que temos no mundo de hoje. Basta ver como encaramos os títulos acadêmicos. Uma boa parcela daqueles que procuram mestrados e doutorados o fazem não pela curiosidade intelectual e pelo desejo de inovar, mas como um ritual de passagem, como a compra de um título de grão ducado para serem aceitos no mundo dos novos aristocratas.
Nos esquecemos da origem da aristocracia real: eram pessoas que iam para a frente de batalha defender seu território, seu senhor ou seu rei, e, por atos de valentia e inteligência, se destacavam durante a batalha. Se ganhassem a guerra e voltassem vivas, eram agraciadas com títulos e direitos. Mas que também perdiam tudo se, na próxima batalha, se acovardassem ou perdessem a disputa. Foram seus descendentes, gerações mais tarde, que pararam de ir à guerra e passaram a viver das glórias e fortunas de seus antepassados. Vivem de observar e criticar. Vivem superfluamente.
Se olharmos como obtemos nossos títulos de doutores e mestres hoje, vemos que não enfrentamos qualquer batalha real. A maior parte do trabalho – se não sua totalidade – é copiar, citar e criticar trabalhos alheios. Poucos – mas eles ainda existem – são aqueles que realmente inovam, que dão a cara a tapa, que vão para a frente de batalha e propõe novas idéias, que criam novas formas de fazer ou pensar. Criticar as táticas das batalhas alheias é fácil. Vencer uma batalha exige coragem, criatividade e determinação.
E esse vício continua depois que somos aceitos no mundo acadêmico-aristocrata. Flanamos sem agregar, sem modificar, sem inovar, sem inspirar. Sem a paixão tão essencial em uma frente de batalha. Levamos para as salas de aula a impressão de que o ócio – intelectual e das ações – é algo aceitável. Não é. Magistério é a arte de cativar, de inovar, de inspirar, de doar-se. Como os aristocratas iniciais, que perdiam sua honra, seus títulos e seus direitos quando se acomodavam ou acovardavam, aquele meu professor se esqueceu que ele também perdia a única coisa que realmente deveria importar: a capacidade de transformar seus alunos em algo melhor do que ele mesmo.
Há muitos anos, quando o Giordano me convidou para ministrar uma palestra inaugural na PUC/MG, eu a terminei dizendo que magistério não é profissão, é sacerdócio. Passada uma década desde que dei aquela palestra, provavelmente tudo em mim mudou e todos os meus pontos de vista foram revistos, exceto minha crença de que magistério deveria ser encarado como um sacerdócio e não uma profissão.
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