Receber o convite para voltar à PUC/MG é sempre uma grande alegria. Rever amigos queridos, passear por esses jardins maravilhosos e sentir a nostalgia de estar novamente em casa.
Falar para mestrandos e doutorandos em Direito Privado é ainda mais especial. Tenho muito orgulho de ter sido o primeiro mestre em Direito Privado do Programa do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/MG. E me lembro com muito carinho das conversas com meu orientador, professor César Fiuza, e das aulas com Marcelo Galuppo e Taisa Macena, mestres queridos. Para não falar da convivência com amigos que levarei por toda a vida.
Os mais atentos devem ter percebido que o título da apresentação é uma forma de provocar os colegas de Direito Empresarial. A expressão "Direito Mercantil" é bem antiga e está perdida em algum momento de nossa história. Gosto de utilizá-la só para dizer que é difícil respeitar um campo do Direito que tem problemas tão graves de identidade. Já foi Direito Mercantil e, agora, é Direito Comercial, pra uns, e Direito Empresarial, pra outros. Direito Civil é Direito Civil, desde sempre e para todos. Muito mais simples, não?
Mas ninguém deve levar isso a sério. É só uma brincadeira entre irmãos. Talvez, na verdade, entre o pai e um filho rebelde. De todo modo, uma brincadeira. Direito Civil e Direito Empresarial, apesar de diferenças importantes, têm desafios comuns quando o assunto é ensino de graduação. E é sobre isso que vamos conversar.
No início, pretendo apenas sugerir algumas peculiaridades do Direito Empresarial, que o tornam ligeiramente diferente do Direito Civil. Depois, passaremos à indicação de desafios. Por fim, deixarei algumas sugestões.
I. Peculiaridades do Direito Mercantil
O Direito Mercantil, quer dizer, Comercial, ou melhor, Empresarial tem caracteríscas que o distinguem do Direito Civil. Nesse momento, quero apenas apontá-las. O estudo de cada um desses elementos poderia produzir resultados interessantes.
A) Em relação à história
Enquanto é possível identificar elementos de Direito Civil no direito dos povos sem escrita e, com a máxima clareza, nos vários ordemanentos jurídicos da antiguidade, os primórdios do Direito Mercantil não podem ser localizados antes da idade média.
B) Em relação ao ensino jurídico
Na experiência portuguesa, o ensino do Direito Mercantil somente teve início em 1836. Curiosamente, na experiência do Brasil independente, o ensino do Direito Civil e do Direito Mercantil nasceram ao mesmo tempo. Com a fundação dos cursos jurídicos brasileiros, em 1827, foram criadas duas cadeiras para aquele e uma para este.
C) Em relação à codificação
Na experiência jurídica brasileira, a demora para a aprovação do tão sonhado Código Civil produziu situações inusitadas. Uma das mais interessantes é a existência de um Código Comercial, aprovado em 1850, apto a disciplinar um campo de direito privado especial, antes da aprovação de um Código Civil, que deveria funcionar como principal fonte de direito privado comum.
Por outro lado, em 2002, o nosso segundo Código Civil dedicou um livro ao Direito de Empresa, revogando grande parte do antigo Código Comercial e oferecendo um conjunto significativo de regras para as relações entre empresários.
Também não deve escapar ao observador a existência de um projeto de Código Comercial atualmente em debate no parlamento brasileiro, muito embora não haja sinais públicos de que a tramitação deva chegar a termo.
D) Em relação à autonomia
Mesmo nas edições mais recentes, os manuais de Direito Empresarial gastam algumas páginas para provar a autonomia desse campo de estudo. Como disse o Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa: “Quem muito se evita, se convive”. O simples fato de insistir na autonomia prova que a tese da autonomia não é assim tão segura. Ninguém discute, por exemplo, a autonomia científica do Direito Civil ou do Direito Constitucional.
A tese bastante original de Teixeira de Freitas de reunificação do Direito Privado, apresentada na segunda metade século XIX, merece consideração.
Também seria interessante conhecer a sempre mencionada experiência de unificação promovida pelo Código Civi italiano, em 1942, para não falar do recentíssimo Código Civil e Comercial da República Argentina, de 2015.
II. Desafios gerais da educação jurídica
Dos desafios atuais da educação jurídica, pretendo apenas indicar alguns, com o objetivo de fomentar o debate.
A) A quantidade ilimitada de informação disponível
Se não há limites para a oferta de informações e se elas podem ser facilmente acessadas em qualquer tempo e lugar, como se deve estruturar a educação?
B) A crescente dificuldade de manter o foco em uma única tarefa
Se um número crescente de pessoas acredita na possibilidade de realizar inúmeras tarefas ao mesmo tempo, como manter a relevância dos momentos de sala de aula?
C) A erosão da autoridade do professor
Se o lugar da autoridade sofre questionamento em todos os âmbitos da atividade humana, de que modo o professor pode dirigir o processo de ensino e aprendizagem?
D) O interesses limitados dos estudantes
Se um número significativo de estudantes frequenta o curso de Direito com objetivos bem limitados e específicos, o que fazer para não perder a verdadeira amplitude da experiência universitária?
E) As novas dificuldades das carreiras jurídicas
Se o cenário para o exercício das mais tradicionais carreiras jurídicas fica cada vez menos promissor, o que fazer para manter aceso o interesse dos estudantes?
III. Desafios específicos do ensino do Direito Privado
Para além dos desafios gerais, há outros que atingem mais diretamente o ensino do Direito Privado. Cuidarei apenas de indicar alguns, para contribuir com a discussão.
A) O charme dos estudos de direito público
Não é difícil ficar apaixonado pelo estudo de alguns campos do Direito Público. O Direito Penal rouba muitos corações inocentes. O Direito Constitucional se apresenta como o portador de todas as soluções de que precisamos. O Direito Processual Civil, com a recente aprovação de um novo Código, é a disciplina da moda.
Além disso, os concursos públicos exigem um número muito amplo de assuntos de Direito Público.
B) A aridez dos estudos de direito privado
Não é simples estudar conceitos como personalidade, capacidade, prescrição e abuso de direito. O estudante precisa acreditar na importância de fazer inúmeras distinções e compreender o funcionamento de institutos complexos. Em muitos casos, a simples invocação de princípios, ainda que belos, não poderá dispensar o estudo minucioso de outras categorias jurídicas.
C) A crise da manualística
No que se refere ao Direito Civil, os manuais elaborados nos últimos anos ainda não superaram os que foram compostos na vigência no Código Civil de 1916. Os títulos disponíveis, em sua maioria, foram escritos para o público dos cursos preparatórios para concurso e não são minimamente adequados para o tipo de debate que deve caracterizar o ambiente universitário.
IV. Sugestões
Quando penso no tamanho do nosso desafio, a figura que me vem à mente é a de uma casa, completamente fechada, sem porta e sem janelas, com um monte de gente dentro, sem luz, sem ar e sem alegria.
Minha primeira sugestão é pensada como se fosse uma porta, por onde as pessoas podem entrar e sair da casa, livremente. E todas as demais são janelas, que permitem a entrada de luz e de ar e de onde se pode contemplar o horizonte.
A) Teoria da Educação
Estude Teoria da Educação. Se ainda não tiver começado, leia primeiro uma crônica de Rubem Alves. É um excelente convite à reflexão. Mostra, de forma contundente, o tamanho do desafio de educar. Depois, siga em frente.
Em nossos dias, os desafios da educação universitária são imensos. Não tente enfretá-los só com a intuição.
B) Literatura
Deixe o mundo dos livros entrar na sala de aula. Leve os livros com você. Leia pequenos trechos. Mas, antes, cuide de amar profundamente os livros que predente apresentar.
C) História do Direito
Situe os problemas jurídicos no tempo.
D) Direito comparado
Situe os problemas jurídicos no espaço.
E) Jurisprudência
Indique os problemas que a prática jurídica apresenta. Dialogue com o Direito que é aplicado nos tribunais. Se for o caso, critique os rumos da jurisprudência. Mas, de todo modo, não deixe de dialogar.
V. Conclusão
Pense num professor que o tenha marcado negativamente. Pense em outro que provoca boas lembranças. E agora faça a sua escolha.
* Texto que serviu de base à palestra ministrada para estudantes do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/MG, no âmbito dos “Seminários de Direito Privado”, em 22 de novembro de 2016; quando de sua elaboração, eu não podia imaginar que a professora Taisa Maria Macena de Lima estaria presente, o que me deixou especialmente feliz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário