quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O Valor Pedagógico da “Cola”

A “cola” é uma instituição nacional. Em todos os níveis de ensino, alunos tentam realizar e professores tentam evitar a fraude nos processos de avaliação. Uns e outros desenvolveram, ao longo do tempo, as mais variadas técnicas para a obtenção dos fins desejados. Inovações tecnológicas, no entanto, produziram seus impactos também nesta dimensão do cotidiano, facilitando a vida de uns e dificultando o trabalho de outros.

Na minha vida de estudante, a “cola” nunca foi uma estratégia de relevo. Os colegas não me pediam, pois sabiam que eu não tinha muita habilidade para fazer a coisa com discrição. Eu mesmo não pedia, primeiro porque sempre achei desonesto e depois porque, em geral, confiava mais em mim do que nos outros. Também nunca me dei ao trabalho de preparar, com antecedência, aqueles arquivos secretos para consultar no momento da avaliação. Na verdade, mesmo sendo um aluno bastante faltoso e muito relapso em certas atividades escolares, nunca deixei de estudar o suficiente para evitar um vexame nas provas. Mas preciso confessar dois pecados, os únicos de que me lembro agora, ao pensar no tema. No ensino médio, precisando desesperadamente de uns pontinhos em Química, aceitei a colaboração de uma colega na avaliação final. E creio que isso foi decisivo para a obtenção do resultado positivo. Na graduação em Direito, tendo me ausentado num dia de prova, fiquei sabendo que uma colega havia obtido uma folha extra e feito uma prova com o meu nome. E não fiz nada para evitar a confirmação da fraude.

Na minha experiência como professor universitário, passei por algumas fases em relação ao tema. 

A primeira, própria de minha imaturidade, foi a de vigiar, com a máxima atenção, e punir, com o máximo rigor. Nesse tempo, eu tomava as tentativas de “cola” como ofensas pessoais. Algumas vezes, não conseguia conter a irritação. Em todas as abordagens, recolhia a prova e avisava, em público, que o infrator receberia nota “zero”. Estou seguro de que a neurose me levou a ser injusto com muitos alunos.

Na segunda fase, consciente da complexidade do tema e dos limites da posição inicial, passei a adotar condutas profiláticas, como, por exemplo, pedir para que os alunos mais agitados mudassem de lugar na sala de aula. Nas abordagens, aos invés de sentenciar solenemente a nota “zero”, comecei a dizer, em tom mais ameno, que o estudante deveria realizar outra prova, uma vez que o primeiro método de avaliação não estava funcionando bem.

Antes de falar um pouco da fase atual, preciso dizer que as duas anteriores possuem características comuns. Nelas, eu sempre pressupunha que a “cola” era um ato de pura desonestidade intelectual. Em todas as avaliações, o que estava em jogo era a necessidade de verificar se os alunos haviam absorvido uma parte substancial do conteúdo estudado. E finalmente, eu compreendia que o meu papel, enquanto professor, era exatamente o de medir a quantidade de conteúdo apreendido pelos estudantes.

Hoje, muito embora continue achando que a "cola" sempre contém certa dose de desonestidade, faço a mim mesmo as duas perguntas que, agora, gostaria de compartilhar com estudantes e professores.

Em que medida a "cola", principalmente no ambiente universitário, não é um indicador seguro da ausência de autonomia dos estudantes na construção de sua trajetória acadêmica?

Em que medida a "cola", procedimento seguramente equivocado, não é também uma forma de protestar contra certos modos também equivocados de conduzir o processo de avaliação?

4 comentários:

Ramon Freitas disse...

A cola como instrumento de protesto seria mais uma forma irresponsável, além de carregada de parcialidade, de se "lutar" em prol de algo. Temos vistos muito disso ultimamente: "cidadãos" questionando temas unicamente pq os mesmos não lhes são favoráveis!

Unknown disse...

Professor,

Tem uma vaga na Academia Brasileira de Letras! Você merece ela ! ��

tatiane rigamont disse...

otimo texto!! Mas creio que a cola pode ser mais uma manifestacao da cultura de se tirar vantagem em tudo.

Roberta Viana - Mary Kay disse...

Parabens pelo texto! Sabes que nunca pensei na cola como um instrumento de protesto, boa abordagem.