segunda-feira, 13 de julho de 2009

ENTREVISTA COM MARCELO GALUPPO - 2ª PARTE



“Eu acho que o ensino jurídico brasileiro é ótimo. Eu sou a favor de abrir um curso de Direito em cada esquina”.

“Acho que não existe gênio. Toda vez que alguém se apresenta para mim como sendo gênio, eu sei que estou diante de um “picareta”. É mais um homem que fala javanês”.


7. Como você percebe a qualidade do ensino jurídico?

Eu acho que o ensino jurídico brasileiro é ótimo. Eu sou a favor de abrir um curso de Direito em cada esquina. Eu acho abusivo o controle que a OAB faz nos cursos de Direito. Acho que tem que haver controle pelo Ministério da Educação, mas isso não é assunto da OAB. Acho que é um equívoco histórico. Isso tem que ser revisto em algum momento.

Por que eu acho que tem que ter um curso de Direito em cada esquina? Deixa eu te contar um caso, que um amigo me contou, o Claudio Michelon. Claudio Michelon, hoje, é professor em Edimburgo, era assistente do MacCormick. E ele é professor, também, na Federal do Rio Grande do Sul. E, antes de ser professor da Federal do Rio Grande do Sul, era professor de uma Faculdade do interior, dessas populares, em uma cidade lá perto. Num dia, já professor da Federal, ele voltou a essa cidade, foi a um bar comprar uma água e um rapaz virou para ele e falou: – “Professor, o senhor aqui?”. O rapaz era o faxineiro, estava limpando o bar. ¬Ele falou: – “É, você é quem?”. – “Eu fui seu aluno há não sei quantos anos atrás, tô aqui nesse bar”. Aí o Cláudio falou assim: – “Então, não adiantou nada, você fez um curso de Direito e é faxineiro”. – “Não, adiantou sim! Porque agora eu sou doutor também. Agora eu não bato mais na minha mulher”. A história, ela parece cômica, mas é verdade. Qualquer educação amplia as perspectivas e transforma as pessoas. Não acho que há trabalho para esse tanto de pessoas que se formam em Direito, mas eu acho que a educação superior não serve só para arrumar trabalho para as pessoas. Então, a primeira coisa é essa: eu sou a favor de uma ampliação do número de vagas.

A segunda coisa é o seguinte: eu acho que o ensino jurídico tem alguns problemas. O primeiro problema do ensino jurídico é que nós não formamos pessoas qualificadas para atuar no Direito. O curso de Direito não faz isso. Conversando com o Juventino [Gomes de Miranda Filho], professor da PUC, outro dia, eu falei assim: a advocacia é uma atividade tão complexa, tão complexa, que, às vezes, envolve até Direito. O quê que a faculdade não ensina? Não ensina, por exemplo, a negociar. Não ensina a trabalhar em conjunto. Não ensina a administrar financeiramente um escritório. Há coisas que são fundamentais para a advocacia, para magistratura, para o Ministério Público que não são ensinadas. E aí a gente fica criando profissionais que têm como modelo de atuação a litigiosidade. Isso não tem mais lugar no mundo contemporâneo. O mundo contemporâneo é um mundo de sinergia. As pessoas não são contra, elas são com umas com as outras. Eu fico pensando se a gente não tem uma deformação do caráter dos estudantes, que acaba tornando eles muito litigiosos. Isso é um problema do ensino jurídico. Outro problema do ensino jurídico é um problema de conflito de geração. Os professores se formaram em uma geração muito diferente dos alunos. E, volta e meia, eu ouço um discurso assim: os alunos de hoje são preguiçosos, os alunos de hoje não querem estudar, os alunos de hoje não lêem mais. Na verdade, o que aconteceu foi uma mudança muito radical, a sociedade da informação, a internet. Eu li, há pouco tempo, um artigo, no Valor Econômico, de um professor do Rio de Janeiro. Ele falava o seguinte: quando ele era aluno – isso aconteceu comigo – quando a gente fazia uma petição, a gente tinha que procurar na doutrina, porque era impossível encontrar jurisprudência. Você tinha que pegar volume por volume da revista, olhar uma por uma, e procurar. Enquanto, na verdade, na doutrina, pelo caráter sistematizador, você encontrava a informação muito mais facilmente. Só que, hoje, com a internet, isso se inverteu. É só você ver as petições. As petições são pautadas hoje por jurisprudência. Mas por quê? Porque hoje é possível encontrar facilmente jurisprudência. Então, um problema do ensino jurídico é esse: mudou o mundo e os professores ainda vivem no mundo antigo. Há pouco tempo foi lançado no Brasil um livro do Win Veen, sobrenome de um dos autores, um holandês, chama-se “Homo Zapiens – Educando na Era Digital”. Eu fui, há algum tempo atrás, a uma exposição do Darwin. Estava em um Congresso em Lisboa, tinha um tempo livre, aquela exposição que estava em São Paulo estava lá, e eu fui. Eu olhei os textos na parede e falei assim: “Olha, nem eu não agüento ler esses textos”. Havia um monte de textos escritos na parede. E fiquei me perguntando assim: será que as pessoas mais jovens, com a metade da minha idade, vinte anos, será que vão ler? Não vão ler. Eles querem informações precisas, e uma característica da informação precisa é que ela é curta. Algo mudou no mundo e o ensino jurídico ainda não percebeu isso.

Uma terceira coisa no ensino jurídico é que a experiência mais frutífera que já houve no Direito é a adoção da monografia de graduação. Os alunos eram completamente diferentes antes disso. O processo de formação deles ficou muito mais aprimorado, em termos de capacidade de pesquisar algo para fazer uma petição, por exemplo. Então, eu acho que esses três elementos, eles têm que ser levados em conta. Primeiro, é preciso aumentar o número de cursos de Direito, porque curso de Direito não serve só para formar advogado. Ele tem uma natureza civilizatória, como qualquer curso tem. Segundo, os professores precisam ter em vista que o mundo não é mais o mundo em que eles se formaram. Terceiro, nada é mais importante no curso de Direito do que aquilo que o aluno ensina a si mesmo. Isso é importante porque eu fico pensando, por exemplo, em uma questão muito séria. Eu estou convencido de que a tópica está correta, na concepção dela. E, portanto, acho que é estranha a tentativa dos professores de ensinar Direito Civil, Direito Penal, Direito Comercial de modo sistemático. Algo que precisa ser repensado é o ensino a partir de casos, mas entendendo o que está por trás disso. Está por trás disso a ideia de que é impossível o conhecimento sistemático, abarcante de todo o Direito. Mas, no entanto, quando os professores ensinam, é o velho modelo. Teoria Geral, Obrigações, aí os Contratos, Teoria Geral dos Contratos, depois os Contratos em Espécie, dentro dos Contratos em Espécie, os típicos e os atípicos, depois.... A vida não funciona assim. Esse é o problema.

Especificamente sobre esse ponto...

Ah, tem também a questão do que nós não ensinamos aos nossos alunos. Aquilo que eu estava falando de habilidades que compõe as profissões jurídicas para além do Direito. O Direito é uma parte importante. Eu fiz aquela brincadeira, mas o Direito é uma parte realmente importante. Mas não é tudo. Não é tudo.

Especificamente sobre esse ponto da velocidade, da dificuldade de se deter em textos longos, os manuais chegaram ao fim?

Eu tenho pensado, Giordano, em escrever um livro de Introdução [ao Estudo do Direito] inteiro na internet. O aluno, no início do semestre, compra uma chave, que dura seis meses. Ele compra a chave por dez reais, de forma que seja desestimulado a copiar o livro de outra pessoa. Tenho pensado nisso. Não sei até que ponto eu conseguiria fazer isso, porque, talvez, a minha mentalidade esteja muito no velho modelo. Não sei.

Efetivamente, uma coisa que você pode perceber é que os livros têm diminuído de tamanho. Os livros são cada vez menores, a não ser em Portugal. Mas aqui no Brasil os livros são cada vez menores, não é? Cada vez são menores. Deixa eu dar um exemplo: César Fiuza. César Fiuza é uma pessoa que percebeu isso antes da hora. Não há mais espaço para o Tratado de Direito Privado. Não é mais possível um aluno estudar, um aluno de graduação, estudar Direito Privado através do Tratado de Direito Privado. Agora, ao mesmo tempo, quando eu quero aprofundar em uma questão, uma questão pontual, não vou ter que ler os sessenta volumes do Tratado para descobrir que, na verdade, o que caracteriza a hipoteca é a não transferência do domínio. Eu leio um pedacinho só. Não há mais lugar para esses grandes livros. Por exemplo, quando eu estudei Direito, no início da história da Constituição de 1988, o Celso Bastos e o Ives Gandra, os dois fizeram Comentários à Constituição em vários volumes. Não existem mais comentários à Constituição em vários volumes. Sobre o Código de Processo Civil, há uma obra clássica, que é o comentário da Forense. Hoje, os comentários, Nelson Nery, por exemplo, são em um volume só. Isso é uma marca do tempo. E se você comparar o comentário da Forense com o do Nelson Nery, por exemplo, você vai ver que o do Nelson Nery está estruturado em jurisprudência, enquanto o da Forense é doutrina. O modelo mudou e nós não nos demos conta. Os professores não se deram conta disso. Isso é um problema.

8. O que você pensa do sistema utilizado no último vestibular da UFMG, segundo o qual os egressos da escola pública tiveram bônus de dez por cento e, entre esses, aqueles que se autodeclararam pretos ou pardos tiveram bônus de quinze por cento?

Eu sou a favor das cotas. A PUC, ela não tem uma experiência com cotas, mas ela tem uma outra experiência, com o ProUni. Quando o ProUni foi criado, o medo que havia era o de que o nível dos alunos caísse muito. O que aconteceu, na prática? O que aconteceu na prática é que os pontos necessários, no ProUni, para que o aluno entrasse na PUC são tão altos que só os alunos bons do ensino público foram para a PUC. O desempenho dos alunos do ProUni tem sido maior do que o dos aprovados no vestibular. No caso das cotas, é a mesma coisa. Eu acho que o que vai acontecer é que os alunos que vão entrar pelas cotas são alunos que, por várias injunções, provavelmente nem tentariam fazer o vestibular, apesar de terem condições. Eu acho que a gente vai ter que esperar para ver se vai funcionar ou não. Eu acho que a discussão talvez mais séria é sobre o futuro do vestibular. Isso é uma questão séria.

E o quê você pensa sobre isso?

Não tenho...

Substituir por um sorteio?

O Rubem Alves fala isso. Que seria muito mais justo e muito mais humano sortear. O Rubem Alves não fala em sorteio, não, o Rubem Alves fala assim: pega todos os vestibulandos e solta lá no meio da floresta amazônica. Quem chegar com vida aqui tem vaga. É uma ideia, porque o vestibular é desumano. No caso do Direito, não. No Direito, passar é um pouquinho difícil. Depois que passou, você se forma tranquilamente. Se estudar pouco, pouco eu não digo, mas se estudar o que uma pessoa deve estudar, passa. No caso da Medicina, em que você tem que praticamente fechar uma prova de vestibular, em física, geografia – não estou dizendo que física e geografia não sejam importante – mas fechar uma prova de vestibular para entrar em um curso de Medicina? É uma exigência muito desumana. E que, por definição, exclui pessoas que vieram do ensino público, que tiveram condições de vida mais adversas.

9. O magistério para você é fonte de angústia ou de alegria?

De alegria.

Não te angustia, não?

Não. Por quê? Por que me angustiaria? Qual angústia?

Eu percebo inúmeras angústias envolvidas na tarefa de ensinar. Mas isso, na sua experiência, não é muito relevante?

Mas que tipo de angústia?

Uma angústia é a de lidar, em um espaço tão curto de tempo, com tantas pessoas e tão diferentes...

Eu perdi, como se diz, eu perdi a fantasia, por exemplo, de que seria capaz de memorizar o rosto e o nome dos meus alunos. Já não tenho mais essa ilusão. Alguns eu vou memorizar. Não são necessariamente os melhores. Às vezes, por várias injunções, uma pessoa chama atenção no meio da turma. Não é possível mais isso. O número de alunos ficou muito grande para a gente memorizar tudo. Mas isso não me angustia mais. Isso não me angustia.

Eu sempre tive muita facilidade, por exemplo, eu nunca tive angústia em dar uma aula. Não tenho esse medo: como será que eles vão achar que a minha aula é? Não é o que passa pela minha cabeça. É difícil. Não me angustia. Para mim, o magistério é uma fonte de prazer.

10. Qual é o pior defeito que um professor pode ter?

Ah, eu vou ter que pensar... Não sei, Giordano... eu tenho que pensar um pouco. Essa eu teria que pensar.

11. E se tivesse que começar de novo, o magistério seria a sua escolha?

Seria. Seria. Mas cada vez mais eu acho... Há algum tempo atrás, eu voltei a advogar. Eu parei de advogar depois do meu doutorado e acho que foi ruim. Porque, ao voltar a advogar – claro que depois de eu ter amadurecido, quando eu advogava antes do meu doutorado eu não percebia isso – eu comecei a perceber algumas coisas importantes que estão fora do meio acadêmico. Eu acho, então, que em um saber tipicamente profissional, aplicado, como o nosso, a prática é tão importante quanto a teoria. E acho que é importante que os alunos façam estágio. Acho que as coisas estão ficando um pouco exageradas. Os estágios estão começando no quarto período. Mas eu acho que, mesmo para um aluno que tem pretensões acadêmicas, a experiência prática é enriquecedora.

No caso do novo bacharel, você acha que é possível começar duas carreiras ao mesmo tempo, o magistério e a advocacia, por exemplo?

Eu acho que sim. Acho que sim. Eu acho que, na verdade, é preciso compreender melhor os limites e as especificidades de cada uma delas. Mas a gente só compreende esses limites quando a gente vive as duas. Porque, por exemplo, a tendência dos professores acadêmicos é academicizar tudo, e a dos advogados é praticizar tudo. E acho que falta um meio termo, um equilíbrio, que é importante.

Marcelo, eu agradeço muitíssimo a...

Eu estou aqui pensando qual seria o maior defeito que o professor pode ter. Eu sei qual é o maior defeito. O maior defeito que um professor pode ter é achar que não tem defeitos. O problema é que eu sei de tantos defeitos que eu tenho, e acho que eles são tão graves, que eu não sei qual seria o pior. Eu costumo dizer para os meus alunos o seguinte: Eu tenho a impressão de que a vida acadêmica é mais ou menos como "O Homem que Falava Javanês", do Lima Barreto. Ou, então, pra ficar mais professoral, tem a aula do Roland Barthes. Roland Barthes fala que, quando a gente começa a vida intelectual, a gente ensina mais do que sabe. A gente não entende as coisas direito, mas ensina assim mesmo. E, com o passar do tempo, nós passamos a ensinar o que sabemos e, depois, quando a gente realmente começa a saber as coisas, menos do que a gente sabe. Mas que o objetivo do intelectual é esquecer o que sabe. O bom professor é aquele que esqueceu tudo o que sabia.

Tudo isso tem a ver com a mesma ideia. Eu tenho muito medo, Giordano, de pessoas que se acham gênios. Eu não acredito que existam gênios. Eu não acredito em inteligências brilhantes. Ao contrário, eu percebo inteligências multifuncionais. Acho que gênios, que escrevem milhões de livros, que conhecem todo o Direito, mas que têm uma vida emocional falida...Não sei, acho que o equilíbrio é importante. Acho que não existe gênio. Toda vez que alguém se apresenta para mim como sendo gênio, eu sei que estou diante de um picareta. É mais um homem que fala javanês.

Marcelo, muito obrigado pelo carinho, pela atenção e por tudo que o privilégio de ter sido seu aluno me proporcionou ao longo do tempo.

A maior felicidade de um professor é ver que seus alunos conseguem trilhar um caminho próprio. Fazer o seu próprio caminho. Fazer a sua própria luz brilhar. Acho que é o maior prazer que um professor tem.

Nenhum comentário: