Fiquei muito feliz com o convite para falar no Encontro Nacional de Estudantes de Direito. Quero aproveitar muito bem a oportunidade, pois é a primeira vez que participo do evento e acredito que será também a última.
Acho que vocês não vão gostar do que tenho a dizer. O tema do painel é “Educação Jurídica: uma análise da realidade brasileira” e, sobre esse assunto, não tenho boas notícias.
Na verdade, ao receber o convite, a primeira coisa que me veio à mente foi um diálogo entre os amigos Carlos e João da Ega, na parte final de “Os Maias”, a obra prima de Eça de Queirós. Os dois foram contemporâneos em Coimbra. Carlos estudara medicina e João da Ega, direito. Depois da formatura e ao longo da vida, criticaram a sociedade de seu tempo e fizeram grandes planos. Nada realizaram, no entanto. Depois de um passeio pelas ruas de Lisboa, Carlos confessou que nos últimos anos não lhe tinha sucedido nada. Ao que o amigo respondeu: “Falhámos a vida, menino”.
Essa é a minha sensação quando olho para a educação jurídica brasileira. Criticamos muito, planejamos imensas reformas, mas não saímos do lugar. Falhamos a vida. Gastamos mal as nossas oportunidades.
E o meu objetivo, hoje, é demostrar porque isso acontece. Quero apresentar as razões pelas quais avançamos tão pouco e tão lentamente. Pensei em apresentar dez tópicos para a discussão.
1. Discurso sem prática
Em primeiro lugar, gostamos de discurso sem prática. Estamos habituados ao desenvolvimento de uma linguagem politicamente correta e, além disso, apreciamos imensamente as palavras bonitas e as frases bem construídas. Mas nem sempre estamos dispostos a agir em conformidade com o que defendemos. Um professor faz longos discursos sobre democracia, mas não demonstra respeito às decisões dos órgãos colegiados de que participa. Um aluno reclama nas redes sociais sobre as frequentes faltas de um professor, mas não acha estranho pedir ao colega para assinar a lista de chamada.
2. Aparência sem essência
Em segundo lugar, gostamos de aparência sem essência. Escrevemos artigos científicos que não acrescentam absolutamente nada. Na forma, são artigos científicos. Mas, na verdade, não passam de desperdício de tempo, papel e dinheiro. Elaboramos projetos de pesquisa para concorrer a financiamentos públicos cujo principal objetivo é justamente concorrer ao financiamento público e não, como era de se esperar, resolver alguma dúvida consistente. A partir do terceiro ou quarto período do curso de direito, começamos a utilizar roupas mais requintadas, em geral muito pouco próprias para o nosso clima tropical, com o objetivo de causar boa impressão. E para piorar, modificamos lentamente a nossa linguagem, invertendo a ordem das frases, acrescentando artificialmente algumas palavras difíceis.
3. Efeito sem causa
Em terceiro lugar, gostamos de efeito sem causa, ou melhor, gostamos de combater os efeitos sem atacar as causas. Recentemente, vi um anúncio em que a Associação de Universidades de Língua Portuguesa recomendava a utilização de um software para combater o plágio, mas não vi nenhuma iniciativa para debelar as causas desse tipo de conduta. Os professores adotam estratégias para evitar a “cola”, mas nem se dão ao trabalho de perguntar porque ela existe.
4. Crítica sem conhecimento
Em quarto lugar, gostamos de crítica sem conhecimento. O exemplo mais imediato é o do crítico universal, facilmente encontrado nas redes sociais. O sujeito não estuda nada, ouve uma informação aqui e outra ali, mas não tem dificuldade de opinar sobre qualquer assunto, do direito penal à história da religião, da literatura russa do século XIX aos últimos avanços da ciência e da tecnologia. Mas o caso mais triste é o da pesquisa em direito que, via de regra, sugere ao pesquisador que ele pode tratar do seu tema como se fosse o primeiro a cuidar do assunto, completamente desobrigado de se inserir no debate já em curso. Em relação a esse ponto, gosto de pensar em Guimarães Rosa, um dos meus autores favoritos. Ele subvertia a língua portuguesa, sim, mas não por desconhecê-la. Ele só o fazia porque a conhecia muito bem.
5. Quantidade sem qualidade
Em quinto lugar, gostamos de quantidade sem qualidade. O Ministério da Educação pressiona a CAPES, que pressiona os Programas de Pós-Graduação, que pressionam os professores, que pressionam os seus orientandos. Queremos bons números de produção intelectual. Produzimos muito, sim, mas produzimos muito lixo. A quantidade deveria ser o resultado natural de trabalhos bem concebidos e bem executados. Mas, entre nós, acaba sendo o próprio objetivo do trabalho.
6. Emprego sem trabalho
Em sexto lugar, gostamos de emprego sem trabalho. Peço desculpas pela franqueza, mas acho que poucas pessoas procuram os concursos públicos porque realmente desejam trabalhar na área correspondente. O emprego vem antes do trabalho. A remuneração, as regalias e a respeitabilidade do cargo pretendido têm prioridade sobre qualquer ideia de vocação. No caso do magistério jurídico, por exemplo, não é nada difícil encontrar alguém que deseja obter as vantagens de ser professor, mas não deseja se submeter às tarefas próprias do ofício.
7. Conquista sem sacrifício
Em sétimo lugar, gostamos de conquista sem sacrifício. Queremos aprender sem estudar. Queremos uma boa faculdade mas não estamos dispostos a protestar, exigir melhorias e participar da administração acadêmica. Queremos a aprovação no mestrado ou no doutorado, mas preferimos investir nos contatos a obter adequada preparação.
8. Controle sem confiança
Em oitavo lugar, gostamos de controle sem confiança. Em "Direito, Coerção e Liberdade", João Baptista Villela sugere que quanto mais o Estado vigia o cidadão mais o cidadão se sente tentado a transgredir. E nós gostamos de vigilância. O professor vigia o aluno no momento de realização da prova. A Faculdade vigia o professor por meio de duzentos e cinquenta relatórios anuais. A matriz curricular prevê uma quantidade imensa de atividades obrigatórias na suposição de que espaços de liberdade são perigosos. É preciso parar de pressupor que as pessoas sempre farão o que é errado. Em educação, penso que é melhor a confiança frustrada do que a desconfiança no ponto de partida.
9. Vigência sem eficácia
Em nono lugar, gostamos de vigência sem eficácia. Interessa-nos, antes de tudo, ter uma nova lei para dar conta de um problema qualquer, mesmo se não estivermos dispostos a realizar as mudanças necessárias. Acreditamos exageradamente no poder transformador da lei. Esperamos do Direito o que ele não pode nos dar. Se as práticas educacionais nos incomodam, pensamos em aprovar um novo currículo. Mas, sejamos francos, um novo currículo, sem correspodência com as formas de agir e pensar de seus destinatários, é apenas um pedaço de papel.
10. Ousadia sem coerência
Em décimo lugar, gostamos de ousadia sem coerência. Não temos nenhum problema em defender a mais ampla liberdade de expressão quando estamos de acordo com o conteúdo do que foi dito, mas achamos difícil escutar o que realmente nos ofende. Nas atividades pedagógicas, por exemplo, exigimos liberdade e, quase sempre, não sabemos o que fazer com ela.
CONCLUSÃO
Pode parecer, meus amigos, que sou pessimista em relação ao futuro da educação entre nós. Mas não sou. Apenas acredito que não devemos ter medo de mirar o espelho.
Concluo com uma frase de Richard Foster, outro autor de que gosto muito, pois acho que ela resume bem o que eu queria dizer:
“A superficialidade é a maldição do nosso tempo”.
* Texto que serviu de base à comunicação apresentada na abertura do XXXVI ENED (Encontro Nacional de Estudantes de Direito), no dia 26 de julho de 2015, na Faculdade de Direito da UFMG.
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