quarta-feira, 7 de junho de 2017

Graduação da depressão: o caminho da formatura passa pelo sofrimento?*

Fui procurado por um grupo de calouros do curso de Direito. Eles queriam falar de sofrimento. A ideia comum era de que as aulas e o ambiente da Faculdade não pareciam muito animadores. Ao contrário, sentiam-se angustiados com as falhas administrativas, a infra-estrutura precária, o clima competitivo, as avaliações sem sentido, a desesperança do momento político, a crise econômica e falta de perspectivas profissionais. 

Meu primeiro sentimento foi de perplexidade. Há exatos 21 anos, minha turma de graduação experimentava esse momento inicial com curiosidade e entusiasmo. Tínhamos a vida toda pela frente. Imaginávamos que o curso nos abriria grandes possibilidades.

Mas o que teria mudado em tão pouco tempo? Não posso responder com clareza, mas tenho uma suspeita. Creio que as coisas estão fora de lugar. Tudo bem que não é de hoje, mas o nosso tempo radicalizou os equívocos. 

Perdemos a dimensão terapêutica da amizade. Os relacionamentos humanos costumam ter a profundidade de uma folha de papel. 

Perdemos a capacidade de viver cada experiência de modo pleno. Se estamos em muitos lugares ao mesmo tempo, na verdade, não estamos em lugar algum. 

Perdemos a coragem de fazer escolhas autênticas. Não nos damos o direito de ir mais devagar que os outros e nem podemos parecer menos felizes, belos, inteligentes ou ricos. 

Perdemos a habilidade de apreciar as coisas inúteis. Desprezamos as atividades que não geram resultados imediatos. 

Perdemos a curiosidade pela busca de um propósito mais elevado. Compramos a ideia de que é só isso mesmo: nascer, viver, morrer; estudar, trabalhar, festejar. Mesmo contra todas as evidências e contra o nosso mais íntimo desejo de sentido, fomos ensinados a sacrificar nossas esperanças no altar da ciência. E sejamos francos: pobre da ciência que promete mais do que pode entregar! Falsa a ciência que faz afirmações sobre temas que estão além de seu escopo e cuja compreensão escapa aos métodos que lhe são próprios!

Mas se as coisas realmente estão fora do lugar, o que isso significa?

Significa, antes de tudo, que o desconforto é verdadeiro, que a angústia não é frescura, que o sofrimento tem razão de ser.

Se o mundo enlouqueceu, loucura mesmo seria achar que vai tudo bem. 

Mas como fazer para que o sofrimento não vire uma forma diferente de loucura? Em outras palavras, como fazer para que, fugindo da loucura da falta de sensibilidade, não sejamos aprisionados pela loucura do excesso de sensibilidade?

Sim, porque é loucura achar que tudo vai bem e que todos os pontos de apoio são igualmente válidos. Mas também é loucura achar que nada vai bem e que nenhum ponto de apoio pode ser encontrado. No primeiro caso, loucura da falta de sensibilidade. No segundo, loucura do excesso de sensibilidade.

Apesar de frequentar a terapia há bastante tempo e de ter iniciado recentemente o uso de medicamentos para depressão, não tenho nada a dizer sobre saúde mental. Posso até ser meio louco, mas reconheço que não poderia falar do tema com propriedade.

Aliás, é bom deixar claro, desde logo, que deveriam procurar ajudar profissional as pessoas que apresentam tristeza persistente, acentuado desânimo para atividades do cotidiano, pensamentos de autodestruição, além de outros sintomas do mesmo tipo. Somente médicos e psicólogos estão habilitados a fazer uma boa avaliação e sugerir tratamentos e intervenções medicamentosas. E já passou da hora de dar um basta no preconceito contra esse tipo de auxílio profissional. O medicamento para o controle da depressão não é de um tipo especialmente diferente daquele usado para controle da pressão arterial, por exemplo. A principal diferença, na verdade, reside no preconceito que teima em persistir. 

De todo modo, para oferecer alguma contribuição ao diálogo, uma vez que vocês foram tão gentis ao me convidar, vou lançar mão de um argumento de Chesterton, jornalista e escritor britânico, apresentado logo no início de sua monumental “Ortodoxia”.

A ideia é muito simples. Para ele, loucura não é falta de pensamento. É o seu excesso. Para combatê-la, não faz sentido sugerir o bloqueio dos pensamentos ruins, mas a sua substituição por pensamentos mais saudáveis. Mais ou menos como abrir janelas numa casa fechada.

Em suas palavras:

"Assim sendo, se o leitor ou eu tivermos de lidar com uma mente que esteja a tornar-se doentia, a nossa principal preocupação não há-de ser fornecer-lhe argumentos, mas arejá-la, convencê-la de que há coisas mais limpas e mais frescas no exterior daquele sufoco que é o argumento único" (CHESTERTON, 2008, p. 25).

Assim, para abrir a mente, sugiro a possibilidade de pensar em alguns tópicos, divididos em três campos.

I. Uma questão de escala

Pode ser interessante começar com a questão da escala. Precisamos nos esforçar para dimensionar corretamente as coisas e os eventos e dar a cada um o valor apropriado, nem maior nem menor.

1. O Curso é maior que o Primeiro Período

O Primeiro Período pode ter suas angústias, mas o Curso é maior que o Primeiro Período. Há muita coisa pela frente. Para os que não vêem sentido em tantas disciplinas eminentemente teóricas, tenham paciência. Elas são importantes para a compreensão de tudo o que vem na sequência. Para os que estão ansiosos pelas disciplinas mais práticas, fiquem tranquilos. Elas já estão chegando e existem em grande número. Para os que ainda não conseguiram fazer três estágios, cinco monitorias e sete iniciações científicas, calma, muita calma. Há tempo pra tudo isso.

2. A Faculdade é maior que o Curso

O Curso pode ter suas chatices, mas a Faculdade é maior que o Curso. A Associação Atlética Acadêmica promove os melhores torneios estudantis. Toda semana temos ao menos um evento interessante. Do tanto que sei, não há escassez de festas e eventos culturais. A oferta de atividades de pesquisa e extensão também se dá em grande número. Além do mais, nas salas de aula e nos corredores, há uma infinidade de pessoas interessantes.

3. A Universidade é maior que a Faculdade

A Faculdade pode ter suas mazelas, mas a Universidade é maior que a Faculdade. Você tem interesse em psicologia? Curse uma disciplina no Departamento de Psicologia, procure um grupo de estudos ou converse com colegas da área. Gosta de cinema ou teatro? Faça atividades na Escola de Belas Artes. Pensa em se aventurar no mundo dos negócios? Vá atrás de cursos e eventos oferecidos pela Faculdade de Administração e Ciências Econômicas. Enfim, aproveite tudo o que a Universidade pode oferecer.

4. A Vida é maior que a Universidade

A Universidade tem seus pontos fracos, mas a Vida é maior que a Universidade. Os cinco anos do curso de Direito não podem funcionar como uma pausa em todas as outras atividades. A vida acontece em qualquer lugar, inclusive na Universidade. É um erro considerar que tudo que é importante deve passar pelo ambiente acadêmico. 

II. Uma questão de contexto

Também pode ser interessante contextualizar a experiência de estar na Universidade. Frequentar os bancos acadêmicos não é o único caminho para a felicidade. E nem mesmo para a realização profissional. Todos os que estão aqui tiveram a oportunidade de chegar ao ensino superior. Mas é apenas uma oportunidade, que não define ninguém, nem para garantir o sucesso aos que a puderam obter, nem para negá-lo a todos os outros.

1. Tem gente que nunca começou um curso (e é feliz)

Não é difícil lembrar de pessoas que não puderam frequentar a Universidade e tiveram sucesso em suas profissões. Os momentos formais de aprendizagem simplesmente não podem conter a imensa capacidade humana de aprender. Com criatividade e persistência, o ser humano pode abrir caminhos que nem sequer haviam sido imaginados e que, portanto, jamais poderiam ser ensinados.

2. Tem gente que nunca concluiu um curso (e é feliz)

É impossível contornar os exemplos de Bill Gates, Steve Jobs e Mark Zuckerberg, que não chegaram a concluir seus cursos universitários e, apesar disso ou, quem sabe, por causa disso, tiveram enorme sucesso em seus empreendimentos profissionais. Concordo com são casos atípicos. Mas servem para nos avisar que abandonar o curso é uma opção. Ninguém pode ser obrigado a seguir um caminho que não faz sentido e que só traz sofrimento. 

3. Tem gente que trocou de curso (e é feliz)

Também é possível lembrar que o problema pode não ser a vida acadêmica, mas apenas o curso escolhido. Decisões tomadas aos 15, 16 ou 17 anos não deveriam ser definitivas. Mudar de curso também é uma possibilidade a ser considerada.

4. Tem gente que concluiu o curso e foi trabalhar em outra área (e é feliz)

Nesse ponto, permitam-se recorrer a exemplos caseiros. Tancredo Neves, Ziraldo e Fernando Brant concluíram o curso de Direito, mas exerceram suas vocações na política, na literatura e na música, respectivamente. Seria possível dizer que foi inútil o tempo que passaram aqui? Certamente que não. Aprenderam na Faculdade muito do que levaram para a vida. É provável que mais nos corredores que nas salas de aula, mais com os colegas do que com os professores, mais sobre o mundo do que sobre o direito. Mas aprenderam aqui. Estiveram sentados nos mesmos lugares que vocês ocupam. 

III. Uma questão de estilo

Mesmo com a enorme pressão para que todos sejam iguais e construam sua trajetória acadêmica no mesmo ritmo, é bom meditar no assunto. E aceitar a diferença. Mais do isso, celebrar a incrível diversidade humana.

1. Tem gente que anda devagar (e é feliz)

Tem gente que anda rápido, mesmo sem saber aonde ir. E tem gente que anda devagar. O bom é que cada um encontre o próprio ritmo. E melhor ainda se souber aonde vai.

2. Tem gente que foge do padrão (e é feliz)

Tem gente que segue o padrão, mesmo sem ter pensado no assunto. E tem gente que foge do padrão. O bom é que cada um escolha como conduzir a vida. E melhor ainda se tiver coragem de viver as coisas que fazem sentido para si.

3. Tem gente que precisa de uma pausa (e é feliz)

Tem gente que faz uma coisa atrás da outra, mesmo com grande sacrifício pessoal. E tem gente que precisa de uma pausa. O bom é que cada um conheça seus limites. E melhor ainda se souber aproveitar cada momento.

4. Tem gente que muda bruscamente (e é feliz)

Tem gente que faz sempre a mesma coisa, ainda que não se realize jamais. E tem gente que muda bruscamente. O bom é que cada um se sinta confortável onde está. E melhor ainda se estiver em busca de seus verdadeiros sonhos.

Conclusão

Para concluir nossa conversa, retomo Chesterton. Diz a lenda que, ao ser perguntado por um jornalista sobre que livro levaria para uma ilha deserta, ele teria respondido: “O Guia Prático do Construtor de Barcos”. Lembro-me de um aluno que, ao responder a mesma pergunta, para espanto de toda a turma, disse que levaria “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”. Não que isso seja ruim. Na verdade, é muito bom. O problema é que não dá pra fazer amigos numa ilha deserta. Daí a loucura da sugestão do meu aluno e a beleza da sugestão de Chesterton. Um livro não é companhia suficiente para a vida. Nenhuma alegria faz sentido se não puder ser compartilhada. A verdadeira amizade é um auxílio precioso em tempos de sofrimento.

Então, para terminar, de verdade, ofereço-lhes um pequeno trecho de “Canção da América”, música composta, em inglês, por Milton Nascimento e Fernando Brant e, posteriormente, colocada em vernáculo por este, que é um colega de vocês, de outra turma, sim, mas um colega de vocês, que já esteve sentado aí nesses bancos:

“Amigo é coisa para se guardar,
debaixo de sete chaves,
dentro do coração”. 

Referência bibliográfica

CHESTERTON, G.K. Ortodoxia. Trad. Maria José Figueiredo. Lisboa: Alêtheia, 2008.

* Texto que serviu de base à comunicação apresentada aos alunos do primeiro e segundo períodos do Curso de Direito, na Faculdade de Direito da UFMG, em 7 de junho de 2017.

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