Colaboração enviada por João Vítor Rodrigues Loureiro,
graduando em Direito na UFMG,
intercambista na Universität des Saarlandes (Alemanha).Não há espaço mais privilegiado para uma discussão que os bancos acadêmicos. Neles, a chamada Universidade ganha vida: está conectada ao espaço aberto da discussão, universo de conhecimento, de pensar o tempo presente, sem descuidar do passado e, pretensiosamente, projetar o futuro.
A tarefa é difícil. Às dificuldades comuns, some-se o percalço de um contexto trepidante, que arrebata economias e culturas, que ignora individualidades e particularismos. São os tempos acirrados da globalização e do mercado mundial, da pós-modernidade mais que tardia, do homem sem fronteiras.
Mesmo contexto que deposita em uma geração alguns votos de confiança, na esperança de “formá-los“ para o futuro. Será mesmo? Ou estamos apenas conformados à ordem periférica, que exclui o terceiro mundo dos centros de produção científica e idealiza o espaço do hemisfério norte como modelo de inteligência, tecnologia de ponta, cultura e sabedoria? Se em nosso passado colonial, em que o padrão de formação acadêmica dos grupos sociais responsáveis pela aplicação e produção do Direito estava atrelado à Metrópole (Coimbra), não caberia perguntarmos se hoje vivemos uma segunda fase de subordinação colonial? O espaço acadêmico brasileiro é autêntico? É independente? Pensa nos problemas de nosso contexto?
Encarei o desafio, acreditei no voto depositado e vim. A experiência é única. Atualmente curso o Semestre de Verão (
Sommersemester) na Universität des Saarlandes, na cidade de Saarbrücken, capital do Estado do Sarre, na parte sudoeste da Alemanha, como intercambista de graduação da Universidade Federal de Minas Gerais, pelo Programa de Intercâmbio da Diretoria de Relações Internacionais da UFMG.
Considerando que apenas uma parcela dos jovens cursa o ensino superior aqui – devido ao sistema educacional que separa (para não dizer seleciona ou segrega) os estudantes de acordo com suas competências prévias – posso dizer que tal sistema parece ótimo numa sociedade sem mazelas gritantes, que vive sob o manto protetor de um “quase Estado de bem estar social reformado“. Quero dizer, já na educação básica o estudante é direcionado a carreiras específicas: se ele passará pelo Ginásio e prestará o Abitur (espécie de exame de ingresso na Universidade) ou se tem aptidão menor para desenvolver carreiras profissionais burocráticas ou relacionadas a trabalhos manuais. Todas as possibilidades demandam formações específicas, com anos de estudo específico voltado a um determinado fim. O da Universidade é, acima de tudo, o de produzir conhecimento. Não de apenas diplomar bacharéis.
Assim, ingressam na Universidade alemã os estudantes que cursaram o ginásio e demonstraram aptos a prestarem o Abitur. O problema é que os anos de formação escolar são geralmente muitos, e os graduados se diplomam por volta dos vinte e cinco anos. Ouvi isso numa aula como sendo um “problema“ porque são as exigências dos nossos tempos: o mercado demanda profissionais jovens e qualificados; os alemães se sentem atrás nessa disputa. Mas, considerando que o objetivo da Universidade não é formar profissionais “para o mercado“, o argumento, assim, cai por terra.
Quanto à Universidade. Fundada no final dos anos 40, na reconstrução da Alemanha Ocidental, a Universität des Saarlandes é uma das mais internacionalizadas Universidades da Europa, no sentido de receber um grande número de intercambistas de graduação de programas como o da UFMG, do programa Erasmus (cooperação acadêmica entre países europeus), além de pós-graduandos em diversas áreas. A Universidade se destaca mais pela área de informática e nanotecnologia. Considerando haver uma enorme demanda de pessoas que desejam estudar na Alemanha, e que não são cidadãos alemães, a UdS oferece um curso de alemão (que é o que atualmente tenho cursado, além das disciplinas na graduação), o qual prepara estrangeiros que residem aqui na Alemanha para prestarem o exame do DSH (
Deutsche Sprachprüfung für den Hochschulzugang), exame de proficiência em alemão para que possam iniciar um curso superior. Assim, após tal exame, dependendo da pontuação nele obtida, o estrangeiro pode iniciar o T Kurs, voltado a disciplinas da área de Exatas ou Biológicas ou já começar sua formação universitária.
A Universität des Saarlandes aderiu ao chamado Bologna-Prozess, que remodelou as Universidades da Europa. As aulas são divididas em blocos de competência distinta, existem disciplinas obrigatórias e aquelas de livre escolha do estudante, como no Brasil. Estas últimas sempre estão voltadas a um tema de interesse de um Professor, que pesquisa tal assunto e disponibiliza o resultado de suas análises/pesquisas aos graduandos. Assim, a carreira do magistério aqui está intimamente ligada à carreira de pesquisador. Por exemplo, estou cursando uma disciplina na Faculdade de História chamada Magia, Feitiçaria e Perseguição às Bruxas sob perspectiva histórico-cultural. Está ligada à
Lehrstuhl (Cadeira Maior, responsável pela coordenação docente e administrativa de áreas distintas) de História Moderna. A docente responsável pela disciplina nem é professora do quadro permanente da Universidade, ela é professora da Universidade de Trier. Mas como ela é referência na área (publicou diversos livros e artigos sobre o assunto), foi convidada para o Semestre, a fim de lecionar a disciplina aqui. Isto parece muito interessante: arejar os quadros docentes, com idéias novas de pessoas de outras localidades.
Portanto, estou cursando três disciplinas: esta última, mais uma na Faculdade de História, a saber: Europa e América, Nova Ordem Colonial, Parte II e uma no Direito, História do Direito e da Constituição II, e visitando como ouvinte a Filosofia do Direito. Como o propósito do blog é o ensino jurídico, vou me ater às duas últimas. A disciplina é uma
Vorlesung, uma espécie de palestra expositiva (de
vor +
lesen que, traduzindo, seria algo como “ler para“), numa sala daquelas como de filmes, com umas duzentas pessoas (chamadas de
Hörsaal), com o professor lá embaixo. Ainda bem que não é apenas uma leitura, mas é bem unilateral, o professor despeja o máximo de conteúdo em uma hora e quarenta e cinco minutos, sem abrir muito espaço a comentários ou dúvidas. Curioso é que o sistema de formação jurídica aqui não parece muito diferente dos modelos adotados em muitas Faculdades no Brasil: certa vez numa discussão sobre qualquer coisa (não me lembro bem) a respeito de capacidade civil, um colega francês veio citando artigos do BGB. Outra vez uma colega que não cursa Direito me perguntou se eu tinha boa memória, que parece ser requisito aos estudantes aqui (não é permitido o uso de Legislações em muitos exames!!!). Fora as
Vorlesung, há ainda os
Seminar e os
Proseminar. Os primeiros são seminários mesmo, em que a dinâmica é voltada à discussão de textos e apresentação de
Referats (mini-palestras sobre um tema, em coisa de vinte minutos) por grupos de estudantes. Os segundos são como seminários, mas voltado a um tema específico de uma
Vorlesung.
Em geral, há um livro-base mais recomendado para se estudar em casa. As aulas também podem ficar vazias, uma vez que a presença dos estudantes é poucas vezes controlada, e estes em geral preferem estudar em casa. Mas, ao final do semestre, o estudante deve se matricular para realizar os exames finais, geralmente provas orais, em que o Professor questiona-o sobre alguns pontos do conteúdo ministrado, mas podendo também ser uma prova escrita, chamada de
Klausur (o estudante é matriculado apenas na Universidade/curso, podendo visitar as disciplinas que quiser e aproveitar o que lhe for mais conveniente). Vê-se, portanto, uma flexibilidade na maneira em que se avalia os estudantes.
Ao final do curso de Direito, já no décimo período, deve-se prestar os Abschlussexamen. São exames finais de conclusão do curso, para saber se se está apto, com os conhecimentos necessários (sobre todos os assuntos jurídicos) a fim de se obter o diploma. São provas escritas que versam sobre Direito Administrativo, Penal, Civil, Processual, Constitucional e campos teóricos e zetéticos do Direto também. Assim, aqui não existe esse papo de que “Ah, Teoria do Direito ou Filosofia do Direito não servem pra nada“. Sem sabê-los, não se cola grau.
Sobre a História do Direito. Bem, quando vi a proposta da Disciplina, me interessei ainda mais em cursá-la aqui. Estudar a História do Direito em conjunto com a História da Constituição é uma tarefa difícil, mas muito enriquecedora. O professor autor do blog talvez discorde do meu ponto de vista, não sei, mas não sou muito favorável à abordagem solitária da História do Direito como uma História do Direito Privado, fundada na tradição romanística e civilística, que ignora o caráter público dos agentes (e da própria lei - apesar de ser uma noção consolidada apenas na contemporaneidade) na aplicação e conformação do Direito aos interesses que não passam apenas pela questão da família e da propriedade, mas encontram raiz no Estado e na sua constituição política. Enfim, a iniciativa de diretrizes é boa, mas acaba errando no fim das contas. A História do Direito e da Constituição I é apenas uma história dos institutos de Direito Romano (coisa defasada e sem propósito). A História do Direito e da Constituição II, por sua vez, é mais uma história do Direito alemão (se estuda também os espaços do Sacro Império Romano Germânico, da França e mesmo o ensino jurídico em Bologna. Há uma preocupação absurda com as fontes historiográficas, uma vez que em muitos encontros tivemos de ler textos – como o Sachsenspiegel – coletânea de legislações da Saxônia, em dialetos germânicos que nem mesmo os alemães entendem!
Enfim, diante de tal experiência, pude até o momento perceber que ainda existe a preocupação de uma formação aberta e crítica, a seu próprio modo, aqui na Alemanha. O modelo do Bologna Prozess me parece bastante interessante, pois separa as competências exigidas numa aula (resta saber se o curso de Ciências do Estado e Governança Social da Faculdade de Direito da UFMG conseguirá assumir semelhante reestruturação, de Vanguarda). Há problemas, como em qualquer sistema, contudo. Faço votos que as diferenças políticas não deixem morrer um projeto concebido com tanto esmero, como o foi, pela professora Miracy Gustin e pela Comissão por ele responsável.
A propósito, aqui os estudantes ainda pagam taxas semestrais, o que é exceção na Alemanha e motivo de rejeição do CDU, pelos jovens, (Partido Democrata-Cristao, de maioria no Parlamento e partido da Primeira-Ministra, portanto) em Saarland.
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