quinta-feira, 18 de junho de 2009
SOBRE O ENSINO JURÍDICO NA ALEMANHA
Colaboração enviada por João Vítor Rodrigues Loureiro,
graduando em Direito na UFMG,
intercambista na Universität des Saarlandes (Alemanha).
Não há espaço mais privilegiado para uma discussão que os bancos acadêmicos. Neles, a chamada Universidade ganha vida: está conectada ao espaço aberto da discussão, universo de conhecimento, de pensar o tempo presente, sem descuidar do passado e, pretensiosamente, projetar o futuro.
A tarefa é difícil. Às dificuldades comuns, some-se o percalço de um contexto trepidante, que arrebata economias e culturas, que ignora individualidades e particularismos. São os tempos acirrados da globalização e do mercado mundial, da pós-modernidade mais que tardia, do homem sem fronteiras.
Mesmo contexto que deposita em uma geração alguns votos de confiança, na esperança de “formá-los“ para o futuro. Será mesmo? Ou estamos apenas conformados à ordem periférica, que exclui o terceiro mundo dos centros de produção científica e idealiza o espaço do hemisfério norte como modelo de inteligência, tecnologia de ponta, cultura e sabedoria? Se em nosso passado colonial, em que o padrão de formação acadêmica dos grupos sociais responsáveis pela aplicação e produção do Direito estava atrelado à Metrópole (Coimbra), não caberia perguntarmos se hoje vivemos uma segunda fase de subordinação colonial? O espaço acadêmico brasileiro é autêntico? É independente? Pensa nos problemas de nosso contexto?
Encarei o desafio, acreditei no voto depositado e vim. A experiência é única. Atualmente curso o Semestre de Verão (Sommersemester) na Universität des Saarlandes, na cidade de Saarbrücken, capital do Estado do Sarre, na parte sudoeste da Alemanha, como intercambista de graduação da Universidade Federal de Minas Gerais, pelo Programa de Intercâmbio da Diretoria de Relações Internacionais da UFMG.
Considerando que apenas uma parcela dos jovens cursa o ensino superior aqui – devido ao sistema educacional que separa (para não dizer seleciona ou segrega) os estudantes de acordo com suas competências prévias – posso dizer que tal sistema parece ótimo numa sociedade sem mazelas gritantes, que vive sob o manto protetor de um “quase Estado de bem estar social reformado“. Quero dizer, já na educação básica o estudante é direcionado a carreiras específicas: se ele passará pelo Ginásio e prestará o Abitur (espécie de exame de ingresso na Universidade) ou se tem aptidão menor para desenvolver carreiras profissionais burocráticas ou relacionadas a trabalhos manuais. Todas as possibilidades demandam formações específicas, com anos de estudo específico voltado a um determinado fim. O da Universidade é, acima de tudo, o de produzir conhecimento. Não de apenas diplomar bacharéis.
Assim, ingressam na Universidade alemã os estudantes que cursaram o ginásio e demonstraram aptos a prestarem o Abitur. O problema é que os anos de formação escolar são geralmente muitos, e os graduados se diplomam por volta dos vinte e cinco anos. Ouvi isso numa aula como sendo um “problema“ porque são as exigências dos nossos tempos: o mercado demanda profissionais jovens e qualificados; os alemães se sentem atrás nessa disputa. Mas, considerando que o objetivo da Universidade não é formar profissionais “para o mercado“, o argumento, assim, cai por terra.
Quanto à Universidade. Fundada no final dos anos 40, na reconstrução da Alemanha Ocidental, a Universität des Saarlandes é uma das mais internacionalizadas Universidades da Europa, no sentido de receber um grande número de intercambistas de graduação de programas como o da UFMG, do programa Erasmus (cooperação acadêmica entre países europeus), além de pós-graduandos em diversas áreas. A Universidade se destaca mais pela área de informática e nanotecnologia. Considerando haver uma enorme demanda de pessoas que desejam estudar na Alemanha, e que não são cidadãos alemães, a UdS oferece um curso de alemão (que é o que atualmente tenho cursado, além das disciplinas na graduação), o qual prepara estrangeiros que residem aqui na Alemanha para prestarem o exame do DSH (Deutsche Sprachprüfung für den Hochschulzugang), exame de proficiência em alemão para que possam iniciar um curso superior. Assim, após tal exame, dependendo da pontuação nele obtida, o estrangeiro pode iniciar o T Kurs, voltado a disciplinas da área de Exatas ou Biológicas ou já começar sua formação universitária.
A Universität des Saarlandes aderiu ao chamado Bologna-Prozess, que remodelou as Universidades da Europa. As aulas são divididas em blocos de competência distinta, existem disciplinas obrigatórias e aquelas de livre escolha do estudante, como no Brasil. Estas últimas sempre estão voltadas a um tema de interesse de um Professor, que pesquisa tal assunto e disponibiliza o resultado de suas análises/pesquisas aos graduandos. Assim, a carreira do magistério aqui está intimamente ligada à carreira de pesquisador. Por exemplo, estou cursando uma disciplina na Faculdade de História chamada Magia, Feitiçaria e Perseguição às Bruxas sob perspectiva histórico-cultural. Está ligada à Lehrstuhl (Cadeira Maior, responsável pela coordenação docente e administrativa de áreas distintas) de História Moderna. A docente responsável pela disciplina nem é professora do quadro permanente da Universidade, ela é professora da Universidade de Trier. Mas como ela é referência na área (publicou diversos livros e artigos sobre o assunto), foi convidada para o Semestre, a fim de lecionar a disciplina aqui. Isto parece muito interessante: arejar os quadros docentes, com idéias novas de pessoas de outras localidades.
Portanto, estou cursando três disciplinas: esta última, mais uma na Faculdade de História, a saber: Europa e América, Nova Ordem Colonial, Parte II e uma no Direito, História do Direito e da Constituição II, e visitando como ouvinte a Filosofia do Direito. Como o propósito do blog é o ensino jurídico, vou me ater às duas últimas. A disciplina é uma Vorlesung, uma espécie de palestra expositiva (de vor + lesen que, traduzindo, seria algo como “ler para“), numa sala daquelas como de filmes, com umas duzentas pessoas (chamadas de Hörsaal), com o professor lá embaixo. Ainda bem que não é apenas uma leitura, mas é bem unilateral, o professor despeja o máximo de conteúdo em uma hora e quarenta e cinco minutos, sem abrir muito espaço a comentários ou dúvidas. Curioso é que o sistema de formação jurídica aqui não parece muito diferente dos modelos adotados em muitas Faculdades no Brasil: certa vez numa discussão sobre qualquer coisa (não me lembro bem) a respeito de capacidade civil, um colega francês veio citando artigos do BGB. Outra vez uma colega que não cursa Direito me perguntou se eu tinha boa memória, que parece ser requisito aos estudantes aqui (não é permitido o uso de Legislações em muitos exames!!!). Fora as Vorlesung, há ainda os Seminar e os Proseminar. Os primeiros são seminários mesmo, em que a dinâmica é voltada à discussão de textos e apresentação de Referats (mini-palestras sobre um tema, em coisa de vinte minutos) por grupos de estudantes. Os segundos são como seminários, mas voltado a um tema específico de uma Vorlesung.
Em geral, há um livro-base mais recomendado para se estudar em casa. As aulas também podem ficar vazias, uma vez que a presença dos estudantes é poucas vezes controlada, e estes em geral preferem estudar em casa. Mas, ao final do semestre, o estudante deve se matricular para realizar os exames finais, geralmente provas orais, em que o Professor questiona-o sobre alguns pontos do conteúdo ministrado, mas podendo também ser uma prova escrita, chamada de Klausur (o estudante é matriculado apenas na Universidade/curso, podendo visitar as disciplinas que quiser e aproveitar o que lhe for mais conveniente). Vê-se, portanto, uma flexibilidade na maneira em que se avalia os estudantes.
Ao final do curso de Direito, já no décimo período, deve-se prestar os Abschlussexamen. São exames finais de conclusão do curso, para saber se se está apto, com os conhecimentos necessários (sobre todos os assuntos jurídicos) a fim de se obter o diploma. São provas escritas que versam sobre Direito Administrativo, Penal, Civil, Processual, Constitucional e campos teóricos e zetéticos do Direto também. Assim, aqui não existe esse papo de que “Ah, Teoria do Direito ou Filosofia do Direito não servem pra nada“. Sem sabê-los, não se cola grau.
Sobre a História do Direito. Bem, quando vi a proposta da Disciplina, me interessei ainda mais em cursá-la aqui. Estudar a História do Direito em conjunto com a História da Constituição é uma tarefa difícil, mas muito enriquecedora. O professor autor do blog talvez discorde do meu ponto de vista, não sei, mas não sou muito favorável à abordagem solitária da História do Direito como uma História do Direito Privado, fundada na tradição romanística e civilística, que ignora o caráter público dos agentes (e da própria lei - apesar de ser uma noção consolidada apenas na contemporaneidade) na aplicação e conformação do Direito aos interesses que não passam apenas pela questão da família e da propriedade, mas encontram raiz no Estado e na sua constituição política. Enfim, a iniciativa de diretrizes é boa, mas acaba errando no fim das contas. A História do Direito e da Constituição I é apenas uma história dos institutos de Direito Romano (coisa defasada e sem propósito). A História do Direito e da Constituição II, por sua vez, é mais uma história do Direito alemão (se estuda também os espaços do Sacro Império Romano Germânico, da França e mesmo o ensino jurídico em Bologna. Há uma preocupação absurda com as fontes historiográficas, uma vez que em muitos encontros tivemos de ler textos – como o Sachsenspiegel – coletânea de legislações da Saxônia, em dialetos germânicos que nem mesmo os alemães entendem!
Enfim, diante de tal experiência, pude até o momento perceber que ainda existe a preocupação de uma formação aberta e crítica, a seu próprio modo, aqui na Alemanha. O modelo do Bologna Prozess me parece bastante interessante, pois separa as competências exigidas numa aula (resta saber se o curso de Ciências do Estado e Governança Social da Faculdade de Direito da UFMG conseguirá assumir semelhante reestruturação, de Vanguarda). Há problemas, como em qualquer sistema, contudo. Faço votos que as diferenças políticas não deixem morrer um projeto concebido com tanto esmero, como o foi, pela professora Miracy Gustin e pela Comissão por ele responsável.
A propósito, aqui os estudantes ainda pagam taxas semestrais, o que é exceção na Alemanha e motivo de rejeição do CDU, pelos jovens, (Partido Democrata-Cristao, de maioria no Parlamento e partido da Primeira-Ministra, portanto) em Saarland.
Dúvidas ou comentários, a discussão está aberta.
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7 comentários:
João,
Como é essa liberdade de escolha entre as diversas disciplinas da Universidade, e não só da Faculdade? Provavelmente há um eixo obrigatório. Essas disciplinas livres funcionariam como eletivas/optativas?
E para enriquecer o debate: "os alunos preferem ir pra casa, pois não há chamada" - por quê?
Grande Abraço
Caro Henrique,
Antes de tudo, obrigado pelas perguntas.
O seguinte:
Talvez nao tenha deixado muito claro no texto (nao explicitei seu ponto). Há sim um eixo fudamental de disciplinas obrigatórias. Elas se estruturam como aí no Brasil: Direito Civil, Penal, Constitucional, Direito Local, etc.todas essas disciplinas de caráter obrigatório, na forma de Vorlesung, geralmente. Mas há uma carga mínima de Proseminar e outras atividades que sao exigidas até a conclusao dos estudos.
Acontece o seguinte: a oferta da disciplina depende da demanda dos estudantes. Se num determinado semestre mais estudantes estiverem cursando determinado período, a carga obrigatória mínima será sim oferecida pela Lehrstuhl por ela responsável. Como no Brasil.
Essa formacao é a regra, creio eu, máxima de uma Universidade: pluralidade.
A liberdade oferecida na escolha de formacao também é como no Brasil: pode-se escolher disciplinas aleatoriamente, e em áreas distintas, sem qualquer problema. Os estudantes sao apenas matriculados no curso, e nao em disciplinas. O que significa dizer que a cada semestre, a decisao sobre o que se estudará cabe ao graduando. Só nao sei como é a questao do máximo de tempo em que se pode permnecer na Universidade, acredito que há regras que limitam a formacao muito prolongada (apesar de ter um vizinho aqui que já está em idade avancada e segundo comentários, ouvi dizer que está em sua graduacao em Direito há uns onze anos).
Bem, o esvaziamento das salas é um problema como no Brasil. Uma das disciplinas que curso possui apenas uns dez estudantes em sala, sendo tres ou quatro que estao cursando-a como parte de sua formacao curicular (Bachelor Studiengang): Pode ser por que se trata de um tema pouco interessante aos estudantes (História latino-americana), por ser na sexta-feira (dia em que sim, as pessoas nao estao muito aí para estudos), ou porque a professora nao consiga chamar muito a atencao (ela quase leva a sério o termo "vorlesen"), lê alguns textos e complementa com comentários próprios.
Assim, o que quero dizer é: a lotacao das salas depende de circunstâncias que ora sao responsabilidade do docente (qualidade de exposicao, domínio de conteúdo, etc), ora do sistema de ensino (concepcao e organizacao de disciplinas), ora do discente (preguica, compromissos diversos), e, na maioria da vezes, uma composicao desses tres fatores.
No caso que experimentei, trata-se de uma Vorlesung. É de se pensar que talvez seja mais proveitoso ler em casa (e nao comparecer à aula), produzir resumos e fichamentos, a fim de absorver determinado assunto com a finalidade de apenas se escrever ou realizar uma avaliacao em fim do semestre, que comparecer a uma aula em que um único sujeito domina o espaco e tempo de exposicao. Tanto que (pelo menos o que ouco falar) os seminários e proseminários estao sempre lotados, dada a natureza das atividades que neles sao exigidas.
Por isso, sou favorável que o estudante tem que ser estimulado em aula: dele deve ser exigido apresentar, comentar, expor, dialogar. Do docente, é dar a direcao do debate, corrigir, apresentar falhas e novas ideias (resultantes da necessária pesquisa acadêmica).
Afinal de contas, homens nao sao apenas livros, caixinhas de despejo de conteúdo. Nem meros ouvintes/espectadores.
Sao tudo isso, e mais um pouco. É preciso trabalhar competencias em sala de aula. Nao despejar conteúdo. Tarefa difícil, mas necessária.
Espero ter respondido às suas perguntas.
Grande abraco,
Joao.
João Vítor,
Em primeiro lugar, obrigado pela preciosa colaboração.
Sobre suas considerações a respeito do ensino da História do Direito, fiquei com uma dúvida. Você não concorda com o estudo em separado da História do Direito Privado; ou com o modo como a História do Direito Privado é ensinada no Brasil (sem a consideração do caráter público de agentes envolvidos em sua construção); ou ainda com o modo como a História Geral do Direito é ensinada (com a prevalência da tradição romanística e civilística)?
Giordano.
Giordano,
A colaboracao é o mínimo a ser feito, vc está de parabéns pelo blog, cuja missao é essencial.
Teci minhas consideracoes tendo por base o que vejo em meus estudos e o que vi e ouvi falar (mais ou menos, pois a disciplina que ora curso é uma tentativa de modificar esse quadro, com a aproximacao da História do Direito à História Constitucional- a qual nao deixa de seu uma história do Direito).
Sendo mais claro:
Nao concordo com o estudo de uma História (Geral) do Direito em que prevaleca a tradicao romanística e civilística. O Estado contemporaneo já abandonou essas bases há tempos, nossa civilizacao é filha de um capitalismo pós-industrial, as supostas raízes culturais do Direito sao meros artifícios de controle social (daí ser necessário se pensar em que se funda o discurso jurídico, quem sao os agentes que operam o Direito, por que chegamos a esse ponto, em vez de ocupar o tempo dos estudantes com o estudo de Hypoteca, Fiducium cum creditore, fideiussio e nao sei mais o que: aliás uma crítica ao novo currículo da FDUFMG, Instituicoes de Direito Romano me parece algo desnecessário). Acho que essa visao cega os estudantes aos problemas da história do nosso Direito, dos nossos problemas.É preciso compartimentalizar conteúdos. Roma lá, nós, aqui.
Acho que o ensino da História do Direito Privado pode sim ser focado parcialmente na tradicao romanística e civilística. Mas lembrando: a importancia das transformacoes do mundo na Baixa Idade Média, a expansao do comércio, a criacao de mecanismos exigem outras abordagens que nao passam somente pelo Codex e o que restou de fontes historiográficas do Direito em Roma, por exemplo.
Assim, permanência, continuidade, atemporalidade sao os maiores defeitos dessa história geral, que ignora rupturas, descontinuidades,e, acima de tudo, contextos. (e insiste em ensinar um cabedal de institutos, restaurando a todo momento nocoes defasadas e sem relacao com nosso tempo - lembra que uma vez compareci a uma aula sua e fiquei feliz em ver a abordagem que vc iria conferir à disciplina? - apesar de nao ter cursado, me parece que deu certo, ouvi muitos colegas elogiando o que foi visto em sala.
Sinceramente, me importa muito mais saber que um estudante de Direito saiu da disciplina de História (Geral) do Direito sabendo como se formou a Assembleia Constituinte de 1823 que sobre como o direito romano influenciou os contratos modernos.
Espero ter te respondido.
Abraco,
Joao.
João Vítor,
Também não concordo com uma História (Geral) do Direito que se resuma ao Direito Privado ou que o privilegie em demasia.
Também acredito que a escolha dos problemas históricos que vamos investigar deve ter alguma ligação com os problemas que vivemos no presente. Nos estudos de História, o passado e o presente se devem perturbar mutuamente.
Nosso desafio, na História do Direito, é não contribuir para a construção de um conhecimento que elimine a dúvida, a insegurança, o conflito. Ao contrário, o nosso fazer histórico deve ser problematizante.
Nesse sentido, melhor do que tentar descobrir as raízes históricas deste ou daquele instituto, é por em dúvida a continuidade pacificamente admitida, é acrescentar elementos olvidados pela historiografia tradicional, é procurar dar voz aos agentes violentamente silenciados.
É o nosso desafio. Mãos à obra, portanto.
Um abraço,
Giordano.
Como é a carga de leitura na Alemanha?
Os alunos, em média, leem mais ou menos que no Brasil? São mais ou menos cobrados?
Pelo que vi, na Alemanha a enfase não é apenas em displinas jurídicas, mas também em conhecimentos gerais como a História. Isso procede?
Como os escritórios de advocacia selecionam os seus advogados na Alemanha?
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