terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A MORTE DO PROFESSOR

Não consigo parar de pensar no professor que foi morto por um aluno há exatamente uma semana.

Primeiramente, por uma razão óbvia: eu poderia ter sido a vítima.

Também sou professor universitário, também moro em Belo Horizonte, também me relaciono com muitos alunos, também corrijo provas...

Mas não é só isso. Fico pensando se esse evento não seria apenas o caso mais extremado de um ambiente de desvalorização do professor e do magistério.

Não sei. Pode ser um exagero pensar assim.

É possível que estejamos diante de um fato isolado, de um caso patológico, de uma explosão de ira que poderia ter ocorrido entre o passageiro e o taxista, entre o cliente e o garçom, entre o enfermo e o médico.

Mas o diabo é que mataram o professor. Mataram o professor! Mataram o professor!

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A EDUCAÇÃO JURÍDICA FAZ MAL À SAÚDE?

Comunicação apresentada na Faculdade de Direito da UFMG, no dia 30 de agosto de 2010, durante a Semana Acadêmica, organizada pelo Centro Acadêmico Afonso Pena.

Pediram-me para falar sobre ensino e pesquisa. No entanto, ninguém teve o cuidado de me explicar exatamente os tópicos que eu deveria abordar ou o modo como deveria proceder. E eu não seria tonto de perguntar, porque assim é bem melhor. Sinto-me à vontade para falar o que quiser, do jeito que quiser, desde que, uma vez ou outra, mencione as palavras ensino e pesquisa.

E, assim, não vou começar definindo ensino e, depois, pesquisa, para, em seguida, explicar como ambos se relacionam. Também não vou começar citando a Constituição da República ou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

Proponho, ao contrário, iniciar com uma breve reflexão sobre o papel da educação jurídica em nossos dias e só um pouco mais adiante mencionar os dois assuntos indicados.

Então, mãos à obra!

É possível pensar a educação jurídica a partir da influência que exerce nos estudantes e na sociedade como um todo.

Em ambos os casos, pelo menos em tese, a educação jurídica pode ser positiva, neutra ou negativa.

Digo em tese, porque, na prática, é impossível que seja neutra. Para o aluno, não há nenhuma chance de que quatro horas por dia, durante cinco anos, não signifiquem nada. E o mesmo se pode dizer em relação à sociedade, tendo em vista o elevado número de cursos jurídicos em funcionamento e a importância das funções desempenhadas pelos bacharéis em Direito.

Restam-nos, portanto, duas alternativas verdadeiras: a educação jurídica pode produzir efeitos positivos ou pode produzir negativos.

Ou, em outras palavras, ela pode fazer bem ou pode fazer mal à saúde dos estudantes a quem se destina e da sociedade como um todo.

Para a análise das consequências que a educação jurídica pode produzir, é preciso conhecer a base sobre a qual atua. Seria conveniente um diagnóstico profundo e completo, o que não poderemos realizar aqui.

Mas, convenhamos, os estudantes, no Brasil, salvo raríssimas exceções, deixam o ensino médio e ingressam na Universidade como verdadeiros autômatos, incapazes, completamente incapazes, de pensar por si. Surpreendem-se quando se lhes diz pela primeira vez que um problema jurídico pode não ter uma única solução correta. Revoltam-se quando se lhes propõem uma atividade acadêmica que não vise à acumulação de informações úteis, mas, apenas à crítica, à análise, à reflexão.

E, sejamos francos, a sociedade em que vivemos tem problemas gravíssimos. Basta andar de olhos abertos para perceber, por exemplo, que há pessoas dormindo nas calçadas das faculdades onde o Direito é ensinado.

Nesse cenário, parece correto afirmar que a educação jurídica produzirá efeitos positivos quando proporcionar crescimento aos estudantes e quando contribuir para que a sociedade enfrente seus mais importantes desafios e, efeitos negativos, quando permitir que os estudantes concluam o curso do mesmo modo como começaram ou com hábitos e conceitos ainda piores e quando não produzir mudanças relevantes na sociedade em que está inserida ou colaborar para o agravamento de suas mazelas.

Pois bem, havendo vários modos de enfrentar o assunto, tentarei oferecer um critério que possa ter alguma utilidade para analisar tanto o papel da educação jurídica brasileira, como um todo, quanto da educação oferecida em cada instituição de ensino, e, ainda, da educação proporcionada por um professor ou vivenciada por um aluno.

Sugiro que a educação jurídica produzirá efeitos positivos quando dirigir suas atenções para frente e para fora de si e efeitos negativos quando dirigir suas atenções para traz e para dentro de si.

Ou, melhor, sugiro que tanto mais positivos serão os efeitos produzidos pela educação jurídica quanto mais atenta ela estiver às questões que se relacionam com o futuro e às questões que são importantes fora dos muros onde é praticada e tanto mais negativos quanto mais se ocupar do passado e das questões que são importantes apenas para sua economia interna.

A educação jurídica quando olha apenas para o passado, quando se ocupa tão somente do que já foi feito, das leis que já foram aprovadas, das correntes doutrinárias que já foram construídas, ou das tendências jurisprudenciais que já se consolidaram, produz consequências terrivelmente negativas.

Se os estudantes são meros repetidores das ideias que lhe são transmitidas e se a sociedade possui estruturas profundamente injustas, o fato de o curso jurídico contribuir para que nada se altere é um grande mal.

Mas a calamidade não termina aí. A simples acumulação de conhecimentos, mal elaborados e mal digeridos, faz com que os estudantes deixem os bancos acadêmicos incrivelmente mais orgulhosos e cheios de si, olhando seus concidadãos de cima para baixo, como se estes fossem pobres diabos que não possuem a chave do conhecimento do bem e do mal. A tirania do treinamento a que são submetidos, ou a que voluntariamente se submetem, para obter as informações necessárias para aprovação em concursos públicos, não deixa nenhum espaço para o sonho que traziam consigo ou para a ousadia que seria mais compatível com sua juventude.

De igual modo, o curso jurídico quando olha somente para dentro de si, quando se ocupa apenas do que lhe interessa imediatamente, das matérias que devem ser incluídas nos currículos, das bolsas que devem ser distribuídas desse ou daquele modo, dos novos prédios que devem ser construídos, produz efeitos francamente negativos.

Se os estudantes de Direito estão destinados a ocupar lugares importantes na vida do grupo social em que estão inseridos e se a sociedade possui problemas diretamente relacionados à aplicação do Direito, o fato de os cursos jurídicos não se interessarem pelo que acontece ao seu redor é um mal.

Mas o pior é que o desinteresse não é claramente assumido ou sequer problematizado, o que faz com estudantes de Direito tenham a falsa sensação de que tudo o que estudam é socialmente relevante e também faz com que a sociedade pense que a solução de suas mazelas passa pelas instituições administradas pelos detentores do saber jurídico.

Quando olha para traz, o curso jurídico produz efeitos negativos.

Quando olha para dentro, o curso jurídico também produz efeitos negativos.

E não há forma mais segura de fazer uma coisa e outra do que apostar todas as fichas num modelo de educação que privilegie o ensino, aquele ensino de tipo bancário, de que nos falava o Paulo Freire, em que o professor, detentor do saber, deposita parcelas de seu conhecimento na cabeça de seus alunos, meros recipientes, vazios e dóceis.

Para que produza melhores resultados, os cursos jurídicos devem olhar para frente, devem mirar o futuro, devem projetar as transformações de que precisamos.

Para que produza melhores resultados, os cursos jurídicos devem olhar para fora, para os problemas que a sociedade enfrenta, para o que é relevante e urgente.

E, para que olhe para frente, a pesquisa é o caminho.

E, para que olhe para fora, a extensão é o caminho.

Sim, para que olhe para frente e para fora, ao lado do ensino, deve haver pesquisa e extensão.

Ensino sem pesquisa é repetição, é culto ao passado.

Ensino sem extensão é egoísmo, é culto ao próprio ego.

Por meio da pesquisa, os estudantes experimentam o extraordinário poder da dúvida, da insegurança, dos próprios limites do saber construído. E, provam, igualmente, da maravilhosa aventura de construir, de projetar soluções, de sonhar com um mundo novo.

Por meio da pesquisa, a sociedade descobre novos modos de enfrentar seus antigos problemas, um poderoso facho de luz é direcionado para seus recônditos mais obscuros, estruturas viciadas são profundamente abaladas.

Por meio da extensão, os estudantes percebem a poderosa presença do outro, recuperam a humanidade perdida, aprender a ouvir, tornam-se sensíveis à dor alheia.

Por meio da extensão, a sociedade recebe o influxo dos novos saberes, realiza as pequenas e as grandes transformações de que necessita e devolve, generosamente, os saberes escondidos em suas práticas cotidianas.

Assim, é correto afirmar que produzirá efeitos negativos a educação jurídica que insistir apenas no ensino e efeitos positivos a que também valoriza a pesquisa e a extensão.

E, lembrando, o critério se pretende válido para analisar a educação jurídica brasileira, de modo global, mas também a educação oferecida pela instituição onde você leciona ou estuda, e até mesmo a educação que você oferece a seus alunos, caso seja professor, ou experimenta em seu cotidiano, caso seja estudante.

Então, o segredo é ensino, pesquisa e extensão.

Sim, estes três, constitucionalmente indissociáveis, e, na prática, radicalmente dissociados.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

ALÉM DO DIREITO

A principal obrigação do professor é proporcionar situações de aprendizagem relacionadas à sua matéria. Assim é que professores de Direito Civil devem cuidar de discutir Direito Civil e professores de Direito Penal devem cuidar de discutir Direito Penal.

Mas é apenas esse o papel do professor?

Recentemente, uma conversa que tive com o meu cabeleireiro me fez pensar que não. Ele me contou a história de um de seus clientes. O sujeito, geralmente alegre e muito falante, passou a se comportar de um modo estranho. Não contava as piadas de sempre, não sorria, e nem respondia às perguntas que lhe eram feitas. E assim permaneceu por uns quatro meses. Até que um dia, muito discretamente, resolveu explicar que o período de tristeza e silêncio tinha a ver com a ideia de por fim à própria da vida, abandonada depois da ajuda de um amigo. A revelação fez com que o cabeleireiro ficasse pensativo. Depois disso, a possibilidade de que a pessoa sentada na cadeira à sua frente estivesse pensando em algo tão extremo e talvez precisasse de uma palavra de alento passou a lhe parecer terrivelmente perturbadora.

Mas qual o papel do cabeleireiro?

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

NÓS, PROFESSORES, TRANSMITIMOS CONHECIMENTO?

Ao final de cada semestre, os alunos da UFMG avaliam o desempenho de seus professores. A medida é salutar e pode contribuir para o aprimoramento da prática pedagógica dos que lhe dão importância. No entanto, uma das perguntas propostas merece ser rediscutida. Trata-se da que solicita aos alunos que avaliem a capacidade de transmissão de conhecimento de seus mestres.

E eu me pergunto: nós, professores, transmitimos conhecimento?

Em Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire afirma que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (p. 25).

Em Pedagogia do Oprimido, o mesmo educador brasileiro usa a expressão ensino bancário, para se referir à prática pedagógica, por ele abominada, em que o professor, dono do saber, pretende depositar o conhecimento na cabeça de seus alunos, verdadeiras tabulas rasas, assim como qualquer um de nós deposita suas economias no caixa de uma instituição financeira (p. 65-87).

Posso estar enganado, mas penso que nós, professores, não transmitimos conhecimento.

Posso estar enganado. Mas se estiver, estarei em boa companhia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 19. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 47. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

O PODER DE UM PEQUENO GESTO

Nesse semestre, quatro alunos me deram presentes muito especiais. Uma linda faixa, trazida por um estudante estrangeiro, com as cores de seu país, e três livros: Todos os Fogos o Fogo, de Julio Cortázar, Mensagem, de Fernando Pessoa, e Catarina e Josefina, de Eva Furnari. O último, na verdade, me foi dado para que eu o repassasse ao meu filho.

E eu fiquei me lembrando daquela cena da infância de todos nós em que o aluno entrega uma maçã ao professor. Todos devem ter visto isso pelo menos uma vez. E é provável que você já tenha feito isso na Educação Infantil.

Eu não sei exatamente por que um aluno resolve presentear o seu professor. E confesso que não me lembro de ter feito isso.

Pode ser uma forma de homenagem, de agradecimento ou de estímulo.

O que sei é que, no meu caso, os presentes trouxeram uma felicidade diferente.

Em primeiro lugar, porque me fizeram lembrar que eu também sou professor, professor de verdade, sim, da mesma classe daqueles queridos mestres que me ensinaram a ler e a escrever. É que nós, professores universitários, às vezes, nos esquecemos disso.

E, depois, porque, em diferentes momentos ao longo do semestre, eles me ajudaram a dar menos valor aos dissabores próprios do exercício do magistério e a considerar com mais clareza os encantos da profissão que escolhi (ou que me escolheu, não sei).

domingo, 13 de junho de 2010

A REALIDADE DO ENSINO JURÍDICO BRASILEIRO

Colaboração enviada por Santiago Pinto, estudante do 6º período da Faculdade de Direito da UFMG, monitor de Direito Civil.

Introdução

Pensar a realidade do Ensino Jurídico brasileiro exige uma análise detalhada de sua evolução, desde o Império, até a atualidade. Diante dessa necessidade, porém consciente da impossibilidade de aqui realizar satisfativamente tamanha tarefa, este artigo visa a apontar reflexões sobre os presentes caminhos do Ensino Jurídico brasileiro, a fim de que o debate acerca dele não perca o lugar de destaque que é merecedor.

O tema demanda análise de questões relativas à adoção de políticas públicas relacionadas ao Ensino Jurídico – dentre as quais destacou-se a elaboração das diretrizes curriculares dos cursos de Direito –, à organização curricular e ao projeto pedagógico das Instituições de Ensino Superior, além do debate sobre práticas e posturas educacionais e sobre benefícios ou retrocessos que se apresentam na atualidade.

Por detrás do Ensino Jurídico brasileiro

A Resolução CNE/CES 9/2004 estabelece as diretrizes curriculares a serem observadas pelas Instituições de Ensino Superior (IES) em sua organização curricular. Em assim fazendo, deixa transparecer, em seu art. 3, norma de elevada importância, que traz consigo metas e valores legitimamente eleitos como orientadores do Ensino Jurídico brasileiro. Legítimos porque elaborados de acordo com os procedimentos definidos em lei como de competência da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, cujos pareceres, portarias e resoluções são resultado de amplo diálogo com a sociedade civil e da participação de setores especializados, como a Associação Brasileira de Ensino de Direito (ABEDi) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Assim, prescreve o referido artigo:


“Art. 3 – O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania” (BRASIL, Resolução, 2004, p. 17).

Depreende-se do mencionado texto que o papel formador das Instituições de Ensino Superior, no que tange, em especial, à construção do perfil do graduando em Direito, é bastante amplo. Preocupa-se a norma com a formação humanística do futuro bacharel em Direito, que deverá considerar o caráter eminentemente valorativo dos aspectos jurídico-sociais da vida, do convívio social. Preocupa-se com a construção de uma postura reflexiva, crítica, dos fenômenos que o circundam e, consequentemente, com a construção de habilidades para a aprendizagem autônoma e dinâmica, com o objetivo de que, no uso constante e, assim, na renovação de seus conhecimentos, o graduando em Direito dê efetividade àqueles princípios humanísticos supramencionados, por meio do exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania.

Para tanto, estabelece a Resolução CNE/CES 9/2004, em seu art. 5, que o projeto pedagógico e a organização curricular das IES deverão contemplar conteúdos e atividades atendentes a três eixos, um Fundamental, outro Profissional, e um terceiro, Prático.

No primeiro eixo, vê-se a reafirmação da necessidade de oferecimento de uma formação humanística ao graduando em Direito, que deverá, em seu desenvolvimento, ter em conta conhecimentos de antropologia, ciência política, economia, ética, filosofia, história, psicologia e sociologia. Tudo o que se disse sobre o construir de uma postura crítico-reflexiva passa necessariamente pela implementação de tal eixo.

Direito é vida, nasce do homem, da sociedade, espelhando seus anseios e tensões, e, por isso, em qualquer ramo onde se pretenda aplicar, noções de antropologia e sociologia são imprescindíveis, bem como a sua atuação consciente para com os efeitos políticos e econômicos que as mais singulares decisões podem envolver.

No segundo eixo, por sua vez, vê-se um avançar para além da esfera puramente dogmática, em direção a um trabalho de aplicação dos conhecimentos anteriormente mencionados, em conformidade com as particularidades sociais, políticas, econômicas e culturais dos fatos da vida, das realidades – que são várias – do Brasil, inclusive no que se refere às suas relações internacionais, de modo que o projeto pedagógico e a organização curricular das IES deverão possibilitar aprofundamentos em conteúdos especiais, tais como Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Processual, Direito Penal, Direito do Trabalho.

No terceiro eixo, enfim, vê-se a preocupação com a capacitação do graduando em Direito para a prática dos atos da vida forense, para a aplicação e consolidação de tudo o que já lhe deverá ter sido oferecido nos momentos anteriores, em atividades de Estágio Curricular Supervisionado, Trabalho de Curso ou Atividades Complementares, com o que, após percorrido todo o caminho acima descrito, estará o graduando, ao tornar-se bacharel em Direito, apto à prática, ao menos, daquelas atividades prescritas no art. 4 da própria Resolução CNE/CES 9/2004, das quais destaca-se, à guisa de exemplo, “[...] II – interpretação e aplicação do Direito; [...] IV – adequada atuação técnico-jurídica (...); [...] VI – utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão, e de reflexão crítica; [...]”.

Assim, ao elaborar projeto pedagógico do curso de graduação em Direito, a IES deverá explicitar “os elementos que lastreiam a própria concepção do curso com suas peculiaridades e contextualização, o seu currículo pleno e sua adequada operacionalização e coerente sistemática de avaliação” (BRASIL, Parecer, 2004), o que lhe possibilitará, ainda mais, o exercício pleno do potencial inovador e criativo que lhe é assegurado na confecção do seu projeto pedagógico e da sua organização curricular.

Ademais, como se vê da Portaria Inep n. 129, que trata do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), suas regras concernentes à avaliação dos estudantes “em relação aos conteúdos programáticos previstos nas diretrizes curriculares, às habilidades e competências para atualização permanente e aos conhecimentos sobre a realidade brasileira, mundial e sobre outras áreas do conhecimento” (BRASIL, Portaria, 2009, p. 23/24) não perdem de vista o ideal de efetivação dos princípios e regras estabelecidos para o Ensino Superior, e em especial, aqui, para o Ensino Jurídico brasileiro.

Pelo contrário, em seu art. 7, caput, reenforça-os a aludida Portaria, ao dizer que a avaliação de que trata, no componente específico da área de Direito,

“tomará como referência a ética, a justiça, a democracia, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, a alteridade, a tolerância, ao multiculturalismo, ao pluralismo, a solidariedade, a preservação ambiental, aos direitos humanos como princípios e valores (...)”

Não resta, contudo, esgotada a análise desse por detrás do Ensino Jurídico brasileiro. Longe disso. Evidente que as imperfeições do sistema educacional brasileiro não se cingem à brevíssima análise que foi empreendida até então. Isso se verá, em momento oportuno, infra, quando permite-se o autor, contrapor-se, em prol da discussão, a respeitada opinião trazida ao debate.

Práticas e posturas educacionais


“Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 1996, p. 23).

A lição de Paulo Freire é perene. Suas palavras representam um caminho a ser seguido por todos que se preocupam com as práticas e posturas educacionais.

A relação aluno-professor deve, sempre, ser construtiva, dialética.

O processo de ensino-aprendizagem é, pois, processo em que “ (...) quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado” (FREIRE, 1996, p. 23).

Entretanto, contrário a todo o exposto quando da análise do por detrás do Ensino Jurídico brasileiro, de seus princípios e metas, e, mais, contrário à aplicação emancipatória da filosofia freireana ao Ensino Jurídico brasileiro, o que se percebe da sua realidade é bem resumido nas palavras do Professor Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho, quando diz que o jurista,


“quando ensina, volta o horizonte dos alunos para o passado, ensinando a pensar a partir de um sistema pronto, supostamente harmônico e continente de todas (e únicas) respostas jurídicas possíveis;” (COELHO, 2007).

Como reflexo das relações sociais, dos anseios e tensões existentes, o Direito não pode jamais ser visto como sistema pronto. É visão errada. E, contudo, não rara.

Em face, porém, daquela preocupação, no início apontada, com a construção de uma postura reflexiva e crítica sobre os fenômenos sociais, culturais, políticos e econômicos que circundam a realidade brasileira, bem como a mundial, e a promoção dos valores humanísticos e axiológicos apregoados nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito, estará a crise no Ensino Jurídico brasileiro relacionada somente a esse seu por detrás ou, em oposição ilustrativa, também, ou até principalmente, relacionada a sua frente de implementação?

Digna de menção, visando o enriquecimento do debate, é a opinião do ilustre Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Professor Dr. João Baptista Villela, a qual toma-se aqui a liberdade de recortar e remete-se ao original, com todas as recomendações, o leitor deste texto, quando diz que


“o ensino jurídico no Brasil vai muito mal, a grande maioria dos professores não sabem, não preparam, não têm amor ao magistério e, mutatis mutandis, pode-se dizer o mesmo dos alunos. Os alunos são, em grande maioria, despreparados e não dão à atividade discente o que ela cobra. Ninguém aprende por osmose, ninguém aprende sem um pesado investimento de esforço, e eu não vejo esforço por parte dos discentes – estou falando em termos gerais – não vejo esforço por parte dos docentes e não vejo interesse da sociedade” (VILLELA, 2009).

Não cabe, aqui, relembrando as limitações às quais este texto se impôs, discutir a grave problemática do sistema educacional brasileiro, decorrente da ausência de políticas públicas efetivas, de planejamentos estratégicos, de longo prazo, que valorizem a Educação, o professor e o aluno – se esse último chega gravemente despreparado ao ensino superior é porque todo o sistema educacional que lhe foi oferecido durante sua formação básica, fundamental e média apresenta-se extremamente deficitário, e as conjunturas sócio-econômicas que o cercam são, como de conhecimento de todos, desfavoráveis, excludentes. Registre-se, todavia, a importância de tais questões para o aprofundamento da discussão, para a completa determinação desse por detrás do Ensino Jurídico brasileiro.

Prescindindo aqui, entretanto, de tais questões e especificidades relativas à realidade brasileira, cabe analisar, sim, a problemática apontada pelo ilustre Educador quando critica as práticas e posturas dos discentes, especificamente dos estudantes de Direito.

Os discentes, em sua maioria, não se veem como parte ativa do processo educacional.

Ao contrário, pode-se dizer que preferem aquele ensino bancário, de que fala Paulo Freire. Quando são colocados em situações problematizadoras, como propostas de realização de trabalhos em sala de aula, tanto em grupos, quanto individuais, ou de pesquisas doutrinário-jurisprudenciais, de elaboração de textos ou de apresentação de conteúdos, são os primeiros a reclamar. O educador que propõe tais situações é logo rotulado – possivelmente das piores maneiras – e sua tentativa não logrará os fins a que se propôs.

O ensino bancário (rectius: burocrático) é, para eles, mais fácil. Não precisam se esforçar.

São nesse sentido as palavras de Antonio Carlos Gil, ao criticar tal prática e postura dos discentes:


“E o que é mais grave: os alunos estão tão acostumados a aulas expositivas no sentido clássico, que tendem a rejeitar inovações propostas pelo professor, mantendo uma atitude de passividade e desligamento” (GIL, 2007, p. 69).

Muito significativo ao diálogo que este texto pretende conduzir é, por outro lado, o dizer de Luis Alberto Warat e Rosa Maria Cardoso da Cunha, no sentido de que


“Toda transmissão autoritária do conhecimento gera como resposta a passiva memorização dos alunos, a construção, por parte dos mesmos, de um conjunto de imagens pré-fabricadas, que servem para lograr um título universitário mas que não habilitam a decisões maduras e autônomas” (WARAT, CARDOSO DA CUNHA, 1977, p. 61).

Propõem os mesmos autores que as Faculdades de Direito “devem deixar de ser centros de transmissão de informação para dedicarem-se, prioritariamente, à formação da personalidade do aluno (...)” e, para isso, devem


“Discutir como e por que a cultura jurídica cria ficções ou promete situações de segurança, mediante um sistema normativo, que na condição de ordenamento jurídico formal não pode eludir a insegurança muitas vezes gerada pelas insatisfatórias condições de existência” (WARAT, CARDOSO DA CUNHA, 1977, p. 61).

Tais propostas, considerando-se as circunstâncias em que foram levantadas, nos anos de 1977, encontram-se presentes, de certo modo, naquele por detrás trabalhado como abertura deste texto.

Não foram, contudo, no que chamou-se, ilustrativamente, de frente de implementação, efetivadas.

O alertar para as consequências de um processo de memorização passiva, por parte dos alunos, de conhecimentos transmitidos autoritariamente pelos professores, não é suficiente, por si só, para garantir o desenvolvimento de uma curiosidade epistemológica (FREIRE), se a vontade dos alunos – sim, vontade, opção, escolha – é justamente a de ser doutrinados, de receber, a cada aula, depósitos de conhecimento.

De que adianta a crítica sagaz trazida por Antonio Carlos Gil, a conceituar aula expositiva “como um processo em que os ‘fatos são transmitidos das fichas do professor para o caderno do aluno sem passar pela mente de nenhum dos dois’.” (GIL, 2007, p. 68), se não há esforço por parte dos discentes para a real construção do conhecimento da Ciência do Direito e, consequentemente, para o desenvolvimento da cidadania.

É necessário, portanto, que a presente discussão, ultrapasse a esfera das IES, da fixação de conteúdos, princípios e metas para a organização currícular e para os projetos pedagógicos, dos debates que acompanham a elaboração das Resoluções e Pareceres da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação.

É necessário que a presente discussão passe a atuar na sociedade civil, a ser implementada.

Considerações finais


“Num dia, já professor da Federal, ele voltou a essa cidade, foi a um bar comprar uma água e um rapaz virou para ele e falou: – ‘Professor, o senhor aqui?’. O rapaz era o faxineiro, estava limpando o bar.
“Ele falou: – ‘É, você é quem?’. – ‘Eu fui seu aluno há não sei quantos anos atrás, tô aqui nesse bar’. – ‘Então, não adiantou nada, você fez um curso de Direito e é faxineiro’. – ‘Não, adiantou sim! Porque agora eu sou doutor também. Agora eu não bato mais na minha mulher’” (GALUPPO, 2009).

Com esse exemplo, tomado emprestado do Professor Marcelo Campos Galuppo, em entrevista a que, novamente, remete-se o leitor deste texto, o diálogo aqui conduzido chega a um divisor de águas.

Repetiu-se, várias vezes, a necessidade de se levar em consideração, sempre, as conjunturas sociais, políticas econômicas das realidades do Brasil. Jogou-se luz sobre problemas que afligem o por detrás do Ensino Jurídico, ainda que muitos aspectos positivos possam ser dele apreendidos. Apontou-se o infeliz papel protagonista desempenhado pelos graduandos na perpetuação de um sistema de ensino conservador e burocrata.

Pode-se, contudo, afirmar que a experiência brasileira do Ensino Jurídico é a tal ponto desqualificada que dela nada possa ser aproveitado?

Não. Preferível é a ideia de que há, sim, benefícios no Ensino Jurídico brasileiro.

No exemplo dado, o Ensino Jurídico cumpriu, perfeitamente, sua função. Não importa ter aquele homem tornado-se faxineiro. Pelo contrário, o simples fato de se pensar que importasse revela uma das facetas do atraso da sociedade brasileira, pela qual deve-se lamentar. O que importa, em realidade, é a fala dele, orgulhoso, ao dizer que não mais bate em sua mulher.

Se o papel das IES, especificamente dos cursos de graduação em Direito, é o de assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, não resta dúvida que, no exemplo em tela, foi bem sucedida a atividade daqueles profissionais que se dedicaram à construção conjunta do conhecimento e à modulação da personalidade do aluno.

Para além dele, por fim, destaque-se o contributo, diretamente relacionado à prestação da justiça e ao desenvolvimento da cidadania, do Ensino Jurídico brasileiro.

A formação geral, humanística e axiológica do graduando em Direito reflete-se na sociedade como um todo. Sua contribuição é percebida na ampliação da participação política de grupos sociais anteriormente calados e excluídos das tensões inerentes ao jogo democrático; na vocalização de suas demandas; na tomada de consciência, por parte da população, dos direitos humanos e dos direitos do consumidor, para ficar com exemplos que talvez sejam os que mais afetem àquelas realidades do Brasil; na luta pela efetivação de seus direitos, pela prevenção a sua violação, ou pelo combate a ela.

Da realidade brasileira depreendem-se inúmeros benefícios. Vale a luta pelo seu melhoramento. A construção de uma sociedade melhor é dever de todos. Que o debate, portanto, acerca do Ensino Jurídico não se perca de vista e a reflexão deste artigo seja tomada como uma tentativa de contribuição ao tema.

Referências bibliográficas

1. BRASIL. Resolução CNE/CES 9/2004, DOU 01/10/2004

2. BRASIL. Parecer n. CNE/CES 211/2004, DOU 23/09/2004.

3. BRASIL. Portaria Inep n. 129, DO 25/06/2009.

4. COELHO, Nuno M. M. S. Contornos Políticos, Institucionais e Epistemológicos da Crise no Ensino Jurídico. 2007. Disponível em: http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/campos/nuno_m_m_coelho.pdf. Acesso em: 25/04/2010.

5. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra. 1996.

6. GALUPPO, Marcelo. Entrevista – 2ª Parte. Disponível em: http://magisteriojuridico.blogspot.com/2009/07/entrevista-com-marcelo-galuppo-2-parte.html. Acesso em: 25/04/2010.

7. GIL, Antonio Carlos. Metodologia do Ensino Superior. São Paulo: Atlas. 2007.

8. VILLELA, João Baptista. Entrevista – 2ª Parte. Disponível em: http://magisteriojuridico.blogspot.com/2009/06/entrevista-com-joao-baptista-villela_08.html. Acesso em: 25/04/2010.

9. WARAT, Luis Alberto; CARDOSO DA CUNHA, Rosa Maria. Ensino e Saber Jurídico. Rio de Janeiro: Eldorado. 1977.

terça-feira, 1 de junho de 2010

1º ANIVERSÁRIO DO BLOG!

O nosso blog está comemorando o primeiro aniversário!

Nesse período, realizamos 7 entrevistas, disponibilizamos 42 textos, publicamos 11 colaborações, registramos aproximadamente 150 comentários, recebemos mais de 7.000 visitas, vindas de todo o país, e de muitas outras partes do globo, numa média de 20 acessos por dia.

Antes de mais nada, nossa sincera gratidão aos leitores, aos colaboradores e todos que nos tem incentivado de algum modo.

Obrigado! Muito obrigado!

E, para comemorar, decidimos que os autores dos três melhores comentários, registrados neste post, durante o mês de junho, contendo ou a palavra educação, ou a palavra magistério, ou a palavra professor, receberão livros de grandes educadores brasileiros: Paulo Freire, Cecília Meireles e Rubem Alves.

Está valendo!

Participe!

quinta-feira, 27 de maio de 2010

ENTREVISTA COM GUSTAVO ROMANO


Gustavo Romano cursou a graduação em Direito na PUC/MG. Em seguida, fez mestrado em Direito em Harvard. Fundou o projeto Para Entender Direito (www.paraentenderdireito.org) e é sócio da consultoria Quanta Corporate Citizenship (www.quantacitizenship.com). Em maio de 2010, concedeu-nos, por e-mail, a seguinte entrevista.

1. Como foi a experiência de estudar em Harvard?

É uma experiência incrível. Você tem aula com alguns dos melhores professores do planeta, acesso à segunda maior biblioteca do mundo, e colegas incrivelmente inteligentes de mais de cem nacionalidades diferentes. É também uma experiência de humildade. Me lembro que na primeira semana o diretor da faculdade de Direito nos ofereceu um almoço e, durante seu discurso, disse algo como 'todos vocês estão aqui por terem sidos os melhores de onde quer que vocês tenham vindo, mas não se esqueçam que aqui todos vocês são iguais, e isso muitas vezes pode machucar seus egos'.


2. Quais as principais diferenças entre o ensino jurídico no Brasil e nos Estados Unidos da América?

É mais fácil falar das semelhanças do que das diferenças pois lá quase tudo é diferente. Primeiro, o sistema não é codificado, por isso as aulas se desenvolvem ao redor de 'case studies' (algo como jurisprudência, no Brasil, mas não é exatamente a mesma coisa). O sistema é todo baseado em princípios e respeito à sabedoria do magistrado, enquanto no Brasil ele é baseado em leis e dúvida na capacidade do magistrado julgar (e, por isso, tantos recursos).

Outra diferença gritante é como nossa visão é pequena no Brasil. Estudamos direito italiano, alemão e, quando muito, francês, e achamos que esses países são fontes de direito. Não são. A maior parte dos juristas 'importados' que eu conhecia no Brasil nunca tiveram qualquer imporância lá fora. Na verdade, o único professor que mencionava qualquer daqueles juristas tão famosos no Brasil era justamente um professor brasileiro. E era para criticá-los. Quando estava lá fui procurar um livro de um dos filósofos mais discutidos nas faculdades no Brasil. Achei uma única cópia, e a última vez que ela tinha saído da biblioteca foi em 1983! De repente tive noção como minha visão do mundo era míope.

Outras duas diferenças importantes é que, primeiro, o curso de direito lá é uma pós-graduação. Ele dura apenas 3 anos, mas para chegar lá, você primeiro precisa ser formado em alguma outra coisa. O trajeto normal para se formar em direito é estudar algo (política, economia, biologia etc), formar-se, trabalhar alguns anos (ou servir o exército), e depois voltar para estudar direito. Isso significa que a idade média dos estudantes de lá é bem mais alta do que no Brasil, o que aumenta a maturidade emocional e experiência de vida dos alunos.

Por fim, a segunda diferença é que o ensino é quase auto-aprendizado. Você tem 10 aulas de 3 horas por assunto. E é isso. O resto, você se vira nas bibliotecas estudando por conta própria. Quando estudava no Brasil, eu achava que estudar duas ou três horas por dia era o suficiente. E talvez fosse. Mas lá, estudávamos nas bibliotecas todos os dias, inclusive sábados e domingos, até meia-noite. E chegávamos em casa e estudávamos mais um pouco. Perdi a conta de vezes em que vi o sol se levantar enquanto eu ainda estava em minha escrivaninha.

3. Se você fosse Ministro da Educação, e tivesse amplos poderes de reforma, que modificações faria no sistema brasileiro de ensino jurídico?

Hoje qualquer um no Brasil tem um diploma de direito, mas a OAB aprova menos de 20% dos candidatos. Não porque a prova seja difícil (não é. É uma prova muito fácil, aliás), mas porque estamos formando alunos como se fosse linha de montagem. Iludir o aluno é um crime. Ou começamos a fechar más escolas, demitir maus professores, e reprovar maus alunos, ou vamos continuar fingindo que ensinamos, e eles vão continuar fingindo que aprendem, e cinco anos depois, quando se depararem com as realidades do mercado, vão cair na real e perceberão como traímos sua confiança. É muito melhor sermos rígidos conosco e com os alunos no início do que mantermos uma mentira educacional.

4. Se você estivesse começando o curso jurídico agora, o que faria de diferente?

Tudo. Faria tudo com muito mais atenção, não aceitaria a mediocridade - minha e alheia - de forma tão passiva, estudaria muito mais e com muito mais afinco, seria muito menos tímido e me aproximaria mais dos bons professores que tive (e tive alguns geniais, como a Carmen Lúcia, a Wilba Lúcia, o Carlos Augusto Canêdo, o Leonardo Isaac, o Moacyr Lobato e o Álvaro de Souza Cruz). Eles talvez não tenham a dimensão de como mudaram minha vida, da gratidão que tenho por seus ensinamentos e suas condutas, e como me moldaram no que sou, e no que muitos de nós nos tornamos. E me afastaria completamente daqueles que não eram apaixonados por direito, mas apenas por si próprios. Me aproximaria mais e não perderia o contato com alguns colegas geniais que tive e não soube usufruir como deveria, como você. É incrível como algumas pessoas deixam suas marcas para sempre em nós, e acabamos só percebendo isso depois que já perdemos contato ou estamos a 10 mil quilômetros de distância. Guardo um carinho enorme por essas pessoas que me fizeram um ser humano um pouco melhor, não só do ponto de vista intelectual, mas que me mostraram como é possível viver uma vida ética.

5. Em sua opinião, quais as áreas mais promissoras para o futuro profissional do Direito?

Do ponto de vista mundial, a internet hoje é vista como um todo. Em breve começaremos a ter subdivisões. Internet e produção de conteúdo, confidencialidade, direito internacional na internet, direito criminal pela internet, direito tributário da internet etc. Teremos que reaprender tudo que sabemos. Por exemplo, as pessoas ainda não perceberam que para empresas como Google, Twitter, Facebook etc, não somos clientes: somos os produtos. Clientes são as empresas de mídia. Isso têm uma séria de consequências de como o direito é aplicável.

As biociências e farmacologia são outra área muito promissora. Em 20 anos o mundo da genética, venda, transporte e replicagem de órgãos, bem como de patentes de produtos geneticamente manipulados estará bem mais desenvolvido. Acho que a agricultura, formas alternativas de energia, e tudo relacionado à reciclagem, carbono e sustentabilidade também deve ser algo incrível.

Acho que, no caso do Brasil, direito tributário internacional, fusões e aquisições internacionais e direito laboral internacional ainda vão se desenvolver bastante à medida que a economia do país crescer. Ainda temos muito pouco expatriado vivendo no Brasil. Em breve isso vai mudar drasticamente e o nosso direito vai ter de se adaptar a isso. Com o aumento de famílias com bens e nacionalidades distintas, teremos que ter juristas que entendam de mais de um direito, pois as relações se tornarão muito mais complexas.

Acho que, com o aumento da renda, começaremos a prestar mais atenção em áreas que até hoje não notamos, como saúde e proteção (health & amp; safety), e teremos que ter pessoas para aplicar essas novas normas e para combatê-las, pois elas podem se tornar um empecilho para o desenvolvimento de uma sociedade. Se bem usadas, e com moderação, elas protegem, se extrapoladas, nos torna uma sociedade de covardes.

Por fim, acho que o Brasil ainda é muito imaturo em termos de produtos bancários, especialmente em bancos de investimento. Vamos precisar de gente muito bem preparada para lidar com os novos produtos quando começarmos a desenvolvê-los no Brasil.

6. Como você percebe o mercado de consultoria jurídica?

Ainda é muito pequeno e basicamente composto de pessoas que já possuíam ligações pessoais com seus clientes. Ainda que seja sócio de uma consultoria, tenho medo da palavra consultor. Boas empresas não querem consultores, querem excelentes parceiros que comam o pão junto com elas. Para quem quer entrar nessa área, tenha certeza que você sabe mais de sua área do que 99.9% de seus colegas. É a única forma de sobreviver.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

SOBRE LESMAS, BORBOLETAS E CARACÓIS*

No meu tempo de menino, na bela e pacata cidade de Mantena, no interior de Minas, quando encontrávamos uma lesma se arrastando lentamente pelo chão, invariavelmente, cumpríamos o ritual, um tanto perverso, de colocar um bocado de sal em cima do pobre molusco. Algum tempo depois, quando voltávamos para ver o resultado, no lugar onde estava a lesma, só havia, então, uma pequenina poça d’água.

Certo dia, quando brincava com meus primos, achamos um casulo preso num galho do pé de goiaba. A descoberta nos impressionou muito, especialmente porque o estranho objeto realizava pequenos movimentos. Logo percebemos que a coitadinha da borboleta tentava se libertar, mas não tinha forças suficientes. Então, resolvemos ajudar. Com um estilete, que usávamos para apontar lápis, e com todo o cuidado do mundo, conseguimos tirá-la da prisão. Para nossa tristeza, no entanto, mesmo depois de alguns minutos, suas asinhas não se desenrugavam, e ela não conseguia voar.

Mas, o que essas duas memórias de minha infância querida têm a ver com a gestão contemporânea da educação e com o trabalho professor? Talvez, nada. É o que veremos um pouco mais adiante.

Nos nossos dias, a principal característica da gestão educacional é a deliberada adoção de métodos produzidos pela Ciência da Administração. A gestão da escola se aproxima da gestão da empresa. Isso implica, por exemplo, na elaboração de planejamento estratégico, na imposição de metas de produção, na realização de avaliação de resultados, na implementação de iniciativas de redução de custos.

Nas universidades públicas, a adoção desses métodos tem servido, principalmente, para buscar o aumento dos índices de produção acadêmica, além de permitir, em períodos eleitorais, que os governantes apresentem números positivos no campo educacional.

Nas escolas particulares, a adoção dos mesmos métodos tem servido, basicamente, para buscar a diminuição dos custos e a conseqüente maximização do lucro.

E, por fim, nas escolas particulares, sem finalidade lucrativa, os métodos têm servido principalmente para a busca de obtenção de melhores índices nos vários mecanismos de avaliação de desempenho escolar.

Mas, em todos os casos, privilegia-se o objeto e não o sujeito, a quantidade e não a qualidade.

Nas escolas públicas, o foco está direcionado para fatores como número de publicações, número de orientações de monografias ou teses, número de alunos matriculados, número de alunos concluintes.

Nas escolas particulares, para o lucro que o empreendimento proporciona.

E, nas escolas particulares, sem finalidade lucrativa, para o posicionamento da instituição nos mais variados rankings educacionais.

Em nenhum desses cenários, no entanto, os sujeitos são verdadeiramente importantes. Nem o aluno, nem o professor. O aluno só é importante pelo que pode produzir ou pagar. E o professor pelo que pode fazer para que o aluno produza ou pague. O aprendizado não está em jogo. O livre desenvolvimento da personalidade dos sujeitos envolvidos, muito menos.

Do professor, nas universidades públicas, espera-se que produza e, se possível, dê boas aulas.

Nas escolas particulares, espera-se que dê boas aulas, para que os alunos, melhor dizendo, os consumidores, felizes com a adequada prestação do serviço, remunerem adequadamente o fornecedor.

Nas escolas particulares, sem finalidade lucrativa, espera-se que o professor dê boas aulas, para que os alunos acumulem o máximo de dados, a fim de que possam se comportar bem nas avaliações a que serão submetidos.

Para que entregue esses resultados, o professor é submetido a cobranças de todo tipo.

Se não produz, perde pontos no relatório anual. Se não tem um bom currículo Lattes, não obtém financiamento de pesquisa. Se não realiza pesquisa com financiamento, não tem um bom currículo Lattes. Quando dá aulas muito críticas, os alunos reclamam que não tem didática. Quando dá aulas lineares, dizem que não tem profundidade.

Nada contra as cobranças, normais em qualquer ambiente profissional. O problema é que o conjunto dos elementos colocados à disposição do professor, para que entregue os resultados esperados, não é minimamente satisfatório.

Nas universidades públicas, muito embora os alunos tenham, em regra, boa formação escolar, o que permitiria o desenvolvimento de um bom trabalho educacional, a infra-estrutura é deficiente, a remuneração é pífia, o volume de trabalho é desumano.

Nas escolas particulares, ainda que a infra-estrutura seja, em regra, muito boa, a formação escolar de grande parte dos alunos não é satisfatória e a remuneração passa muito longe de ser adequada.

Resumindo, em qualquer contexto, espera-se muito do professor, mas não lhe são oferecidas condições adequadas de trabalho.

E isso provoca sofrimento.

Provocaria sofrimento em qualquer profissional.

Mas, em relação ao professor, a questão é ainda mais grave, por conta de uma circunstância especial. Comumente, trata-se o magistério como sacerdócio, como vocação pura, como atividade para pessoas idealistas, sonhadoras. E o professor, por acreditar nessa imagem, não apenas se submete às mais adversas condições de trabalho, como tem o seu sofrimento multiplicado quando fracassa no cumprimento de sua tarefa. Sim, porque, além de ficar privado das vantagens que obteria caso fosse bem sucedido, além de experimentar o prejuízo material decorrente de seu fracasso, o professor, em seu íntimo, sente-se abatido por não ter logrado êxito na missão de ensinar.

E não sofre apenas o professor. O aluno ressente-se, igualmente.

E a sociedade, de modo mais amplo, sofre com a qualidade da educação que recebe.

E o drama é que também esperamos muito da educação, apostamos muito na educação, falamos muito em educação, discutimos muito a educação, mas não saímos do lugar quando o assunto é educação.

Tragicamente, nossas reformas educacionais são antes estratégias de manipulação de números que mecanismos de profunda transformação.

E aqui nem vale a pena olhar para traz, em busca de um passado glorioso, que, de resto, não temos.

Quando, independente o país, em 1822, e instalada a nossa primeira Assembléia Constituinte, em 1823, ante a oportunidade de organizar globalmente o ensino público, fizemos uma escolha de trágicas conseqüências (BRASIL, 1977, p. 23-25, 58, 174, 175).

Durante os debates sobre a criação de um curso jurídico, para dotar o país dos quadros administrativos de que tanto necessitava, o deputado Montezuma sugeriu que os trabalhos fossem suspensos, dando lugar à elaboração de um “plano geral de educação”.

Costa Barros concordava com a ideia. Por isso, dirigiu aos colegas a seguinte pergunta:

"Como procuramos já, de presente, estabelecer universidades onde não há mestre de primeiras letras?"

Em 1826, quando a proposta de fundação dos cursos jurídicos foi retomada, o deputado Ferreira França sugeriu que, antes de implantar o ensino superior, os parlamentares deveriam cuidar da "maneira de promover a primária instrução da mocidade, qual é o ler, escrever, contar, medir comumente, etc".

A opinião vencedora, no entanto, foi a de Souza França.

O deputado, depois de defender a urgência na implantação dos cursos jurídicos, para o provimento dos cargos administrativos do Estado, concluiu:

“Temos, ou não temos escolas de primeiras letras? Eu creio que em qualquer parte do Brasil, ou bem ou mal, sabe-se ler e escrever”.

Assim, a 11 de agosto de 1827, os cursos jurídicos foram criados no Brasil, antes, muito antes da organização global do sistema de ensino.

Adotamos, portanto, essa solução original de, querendo construir um edifício, o edifício da educação nacional, começarmos pelo teto e não pela base.

E de lá pra cá não foram poucas as reformas a que o nosso peculiar edifício foi submetido. Nenhuma delas, no entanto, ocupou-se de oferecer melhores condições a que o trabalho docente se desenvolva. As formas de avaliação são alteradas. Os modelos de ingresso nas universidades são modificados. Matérias são incluídas nos currículos. Matérias são retiradas dos currículos. Nada, no entanto, que melhore a situação do professor.

E, entre as muitas medidas que poderiam fazê-lo, como, por exemplo, a redução do número de alunos por turma, a adoção de medidas de qualidade de vida no trabalho, há uma sem a qual nenhuma outra faz sentido.

Trata-se do modo como se remunera professor, em todos os níveis de ensino. O problema é grave e antigo.

Quando o parlamento brasileiro discutia a criação dos cursos jurídicos, surgiu a idéia de se equiparar a remuneração dos professores catedráticos à dos desembargadores das Relações. E a Lei de 11 de agosto de 1827 fez isso. Nada mais que um pedaço de papel, no entanto.

Ao longo de todo o período imperial, os professores dos cursos jurídicos ficaram submetidos a baixas remunerações.

Em 1860, Aprígio Guimarães, professor na Faculdade de Direito do Recife, fez a seguinte reclamação: "Dão-nos as honras e o tratamento de desembargadores, e recusam-nos os ordenados destes [...]" (GUIMARÃES, 1860, p. 19).

Algum tempo depois, o falecimento de dois professores de Direito permitiu revelar o quanto a baixa remuneração, por vezes, conduzia a situações dramáticas, como se pode notar pela leitura do seguinte relatório, de 1870:

"Na idade de 77 anos e depois de 42 de aturado ensino, o nosso colega, de saudosa memória, o Conselheiro Lourenço Trigo de Loureiro, apesar de uma vida retirada e parcimoniosa, achou-se, em seus últimos momentos, em tal penúria, que, a não serem os cuidados de seus amigos, os seus restos mortais ficariam a cargo da gélida caridade oficial.

[...]

A não ser a Munificência Imperial, [...] em favor da desprotegida família de [...] nosso colega Dr. Braz Florentino Henriques de Souza, a esposa e filhos desse ilustre cidadão, que somente viveu para servir às ciências e ao país, achar-se-ia na luta contra as principais necessidades da vida!" (AGUIAR, 1870, P. 2).

Como se percebe, portanto, é muito longa a nossa tradição de remunerar mal os professores.

E sem enfrentar esse ponto, não há mecanismo contemporâneo de gestão que contribua para a melhoria da qualidade do ensino.

O professor, porque mal remunerado, ou se realiza profissionalmente fora do magistério, e acaba relegando-o a segundo plano, ou fica obrigado a trabalhar tanto, e, às vezes, em tantos lugares, que não consegue, ainda que queira muito, imprimir a qualidade desejada na execução de suas tarefas.

Agora, como resumo do foi dito, gostaria de propor as seguintes teses, para subsidiar futuras discussões:

1. A gestão contemporânea da educação se aproxima da gestão empresarial.

2. Em conseqüência, espera-se que o professor produza determinados resultados.

3. As atuais condições de trabalho de que o professor dispõe não permitem, no entanto, que ofereça resultados satisfatórios.

4. O fracasso escolar provoca sofrimento e decepção, principalmente no professor, mas também no aluno, e na sociedade de modo mais amplo.

5. A gestão escolar deveria se preocupar antes com a qualidade que com a quantidade, antes com o livre desenvolvimento dos sujeitos envolvidos que com a produção de estatísticas favoráveis.

6. Nenhum outro fator poderia colaborar com mais intensidade para as mudanças desejadas que a completa revisão do modo de remunerar o professor.

Eram essas as ideias que eu havia preparado para a nossa conversa. Permitam-me apenas, nessa despedida, retomar aquelas duas historinhas do início.

Vocês sabem por que nós, meninos levados, colocávamos sal na lesma? Não sei, mas suspeito que tenha algo a ver com o desprezo que sentíamos por aquele bichinho lento, preguiçoso, quase imóvel.

Vocês sabem por nós, meninos inquietos, ajudamos a borboleta a sair do casulo. Também não sei, mas suspeito que tenha algo a ver com impaciência, incapacidade de esperar, pressa.

Nós não gostamos de lentidão. Nós gostamos de pressa. Os mecanismos contemporâneos de gestão priorizam o número, a quantidade. É preciso, então, andar, correr, voar.

O problema é que com a educação é diferente. Não por outro motivo Rubem Alves deu ao seu último livro sobre o assunto o título de A Pedagogia dos Caracóis. Nele, o autor mineiro defende o valor da vagareza quando o negócio é aprender e ensinar.

O caracol, e não o gavião ou a lebre, é o modelo do bom professor e do bom aluno. E é então, com um pequenino trecho desse livro que me despeço:

“A lentidão é uma virtude a ser aprendida num mundo em que a vida é obrigada a correr ao ritmo das máquinas. Gastar tempo conversando com os alunos. Saber sobre sua vida, seus sonhos. Que importa que o programa fique atrasado? A vida é vagarosa. Os processos vitais são vagarosos. Quando a vida se apressa, é porque algo não vai bem” (ALVES, 2010, p. 79,80).

Referências Bibliográficas

AGUIAR, João José Ferreira de. Memória Histórico-Acadêmica do Ano de 1870. Recife: [s.n.], 1871.

ALVES, Rubem. A Pedagogia dos Caracóis. Campinas: Verus, 2010.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Criação dos Cursos Jurídicos no Brasil. Brasília: Centro de Documentação e Informação, 1977.

GUIMARÃES, Aprígio Justiniano da Silva. Memória Histórica Acadêmica Apresentada na Primeira Sessão do Ano de 1860 à Faculdade de Direito do Recife, na Forma do Artigo 164 dos Estatutos. Recife: [s.n.], 1860.

*Questões apresentadas aos participantes do I Ciclo de Estudos sobre Trabalho e Saúde Mental, organizado pela Escola Judicial do TRT/MG, em 21 de maio de 2010.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

SOBRE O ENSINO JURÍDICO NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA


Contribuição enviada por Ludmila Oliveira e Tarcísio Magalhães,
estudantes do 7º período da Faculdade de Direito da UFMG,
intercambistas na University of Wisconsin-Madison.


Em julho de 2008, recebemos a notícia de que havíamos sido aprovados no Programa de Mobilidade Discente Internacional do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais para cursar o segundo semestre de 2009 na University of Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos da América. Ficamos extremamente felizes, mas, ao mesmo tempo, receosos de como seria estudar em uma universidade em outro país, cujo sistema jurídico é tão diverso do nosso. Por se tratar de um país adepto do Common Law, optamos por cursar disciplinas relacionadas ao Direito Internacional, além de Direito Americano.

O meio acadêmico nos Estados Unidos é extremamente diferente do brasileiro: a faculdade, os professores, os alunos, o estilo das aulas, as formas de ensino e aprendizado, os métodos avaliativos e por aí em diante…

Vejamos:

Primeiramente, vale ressaltar que o curso de Direito é uma pós-graduação (chamada de graduation). Em outras palavras, é necessário ter um diploma de um curso de 4 anos (undergraduation) para ingressar na faculdade de Direito. O curso de Direito dura, em média, 3 anos e, a partir do 2 ano, a grade curricular é montada pelo próprio aluno.

Os professores—que, quase à unanimidade, não desempenham outra atividade que não a do magistério—, sempre enviam, alguns dias antes do início das aulas, e-mails, para todos os alunos matriculados na disciplina, com o cronograma do curso (o syllabus), contendo todas as tarefas e leituras referentes a cada aula do semestre. É obrigatório que todos os alunos leiam todo o material indicado para cada dia de aula; uma leitura bastante extensa, incluindo, muitas vezes, vários capítulos de um livro. O syllabus contem tarefas, inclusive, para o primeiro dia de aula. Por isso, uma semana antes das aulas começarem, a biblioteca fica repleta de alunos cumprindo suas respectivas tarefas agendadas para o primeiro dia.

O material didático é composto de Casebooks, isto é, livros com pouca explicação da matéria e muitos casos. O alunos aprendem sempre com base em casos, pois o ensino jurídico americano é muito voltado para o caso concreto e o Direito na prática.


O ensino nas faculdades de Direito norte-americanas se baseia no método socrático, ou seja, os professores tendem a responder às perguntas dos alunos sempre com outra pergunta, estimulando a discussão e o debate, de modo a construírem, professor e aluno, o conhecimento juntos. Diz-se que, nas salas de aula americanas, o professor e os alunos se encontram em pé de igualdade, ambos buscando aprender. Os alunos são constantemente incentivados a questionarem e a participação é sempre considerada na hora da pontuação. Logo, as aulas de Direito nunca são expositivas, mas sempre discursivas. O professor ministra sua aula dirigindo perguntas aos alunos, as quais devem ser respondidas com base na leitura prévia. Por essa razão, as turmas são, em sua maioria, bem reduzidas (cursamos uma matéria, por exemplo, na qual somente 10 pessoas estavam matriculados).

Outra discrepância com o nosso sistema são os métodos avaliativos. Em primeiro lugar, as notas são dadas quase sempre em curva. Isso significa que a nota de cada aluno é atribuída em comparação com a do colega. Via de regra, somente 10% da classe pode obter conceito A, 25% B, 35% C, 30% D, alguns poucos sendo reprovados. Tal sistema proporciona uma forte competição entre os alunos. Cada um estuda com seus próprios materiais e ninguém empresta anotações, resumos ou similares, vez que, se um aluno ajudar o outro, estará se prejudicando. Por fim, os alunos recebem suas notas contendo a posição na qual eles se encontram perante o restante da turma, ou seja, suas colocações em um ranking de melhores alunos. Isto é de extrema importância para os alunos de Direto, pois os grandes escritórios valorizam boas notas e contratam apenas os mais bem conceituados.


Os professores tem total liberdade para escolher como os pontos do semestre serão distribuídos. Alguns optam pela elaboração de artigos, outros mesclam artigos e provas escritas e ainda tem aqueles que decidem aplicar somente uma prova ao final do semestre. Em função do próprio sistema jurídico norte-americano, os professores não levam em conta, na hora da avaliação, se o aluno decorou cada trecho do livro ou se gravou cada palavra dita em sala de aula. O relevante é que as respostas às questões nas provas e o raciocínio apresentado nos artigos sejam capazes de convencer o professor. O que se busca desenvolver e aperfeiçoar é sempre a persuasão. Os alunos de Direito estadunidenses são treinados a ganharem casos, o que é feito provando ser seu argumento o melhor e destruindo o argumento adversário.

Finalmente, um aspecto que nos marcou é a estrutura fornecida pela universidade, principalmente para pesquisa. Existem 56 bibliotecas no campus, sendo muitas delas 24 horas. As bibliotecas são equipadas com máquinas de xerox e scanners, cafeteria, computadores, máquinas de refrigerante e salgadinhos, sofás... Enfim, tudo o que o aluno possa precisar. Além do vastíssimo banco de dados da própria universidade (para se ter uma idéia, é possível ler a Folha de São Paulo através do site da biblioteca, dentre outros milhares de jornais, revistas e artigos de toda parte do globo), existe ainda um convênio celebrado entre a University of Wisconsin-Madison e diversas outras universidades do mundo (inclusive a USP), por meio do qual o aluno pode encomendar, via internet, um livro que se encontra em outra biblioteca (no Brasil, na Europa, etc.) sem qualquer custo adicional. Ademais, não há limite máximo de livros por aluno e as bibliotecas emprestam, além de livros, é claro, DVDs, jogos de video game e, até mesmo, notebooks e carregadores, tudo com a simples apresentação da carteira da biblioteca. Por último, existem equipes espalhadas pelo campus para auxiliar os alunos na elaboração de artigos e resolução de exercícios, corrigindo e dando dicas.

Esperamos que as informações tenham ajudado àqueles que queiram embarcar nessa aventura do intercâmbio acadêmico internacional. Nos colocamos à disposição para responder eventuais dúvidas sobre moradia, visto, passagem, gastos etc., e, obviamente, sobre o sistema de ensino norte-americano. Basta entrar em contato!

segunda-feira, 10 de maio de 2010

MAGISTÉRIO: ARISTOCRACIA OU SACERDÓCIO?

Colaboração enviada por Gustavo Romano, mestre em direito (Harvard), administração (London Business School) e ciências políticas (UFMG), fundador do projeto Para Entender Direito (www.paraentenderdireito.org), sócio da consultoria Quanta Corporate Citizenship (www.quantacitizenship.com), responsável, desde 2000, pelo treinamento jurídico do jornal Folha de S.Paulo.

Quando eu ainda estava estudando Direito ouvi uma conversa na sala dos professores, na qual um dos interlocutores defendia com grande orgulho que o ‘magistério é a nova aristocracia brasileira’. De acordo com ele, depois do fim das aristocracias de verdade, os pretendentes a aristocratas primeiro se refugiaram no Itamarati, mas depois que o Itamarati começou a ter de se envolver mais com relações comerciais e menos com debates artístico-filosóficos, os pretendentes a aristocratas encontraram no magistério universitário um refúgio seguro. Ele, por isso, era um aristocrata.

Aquela colocação me importunou de imediato, mas confesso que demorei muito tempo para finalmente entender por que ela me importunou tanto.

O estereótipo que nossa cultura republicana tem da aristocracia é de uma classe que vive do trabalho alheio, sentada na riqueza conquistada não por seu esforço próprio, mas pelo esforço das gerações precedentes. Ela possui um poder que não lhe é de direito por mérito próprio, mas por acasos genéticos, tradições obscuras e normas feitas para lhe proteger. E ela usufrui desse poder e de redes quase que invisíveis de relações pessoais, para perpetuar-se, proteger seus escolhidos, tolher o que quer que lhe ameace e expandir o alcance de seus interesses pessoais sempre que possível.

Infelizmente, acho que aquele professor tinha razão. Muito do que vejo no magistério – jurídico ou não – de hoje é muito parecido com aquele estereótipo de aristocracia que temos no mundo de hoje. Basta ver como encaramos os títulos acadêmicos. Uma boa parcela daqueles que procuram mestrados e doutorados o fazem não pela curiosidade intelectual e pelo desejo de inovar, mas como um ritual de passagem, como a compra de um título de grão ducado para serem aceitos no mundo dos novos aristocratas.

Nos esquecemos da origem da aristocracia real: eram pessoas que iam para a frente de batalha defender seu território, seu senhor ou seu rei, e, por atos de valentia e inteligência, se destacavam durante a batalha. Se ganhassem a guerra e voltassem vivas, eram agraciadas com títulos e direitos. Mas que também perdiam tudo se, na próxima batalha, se acovardassem ou perdessem a disputa. Foram seus descendentes, gerações mais tarde, que pararam de ir à guerra e passaram a viver das glórias e fortunas de seus antepassados. Vivem de observar e criticar. Vivem superfluamente.

Se olharmos como obtemos nossos títulos de doutores e mestres hoje, vemos que não enfrentamos qualquer batalha real. A maior parte do trabalho – se não sua totalidade – é copiar, citar e criticar trabalhos alheios. Poucos – mas eles ainda existem – são aqueles que realmente inovam, que dão a cara a tapa, que vão para a frente de batalha e propõe novas idéias, que criam novas formas de fazer ou pensar. Criticar as táticas das batalhas alheias é fácil. Vencer uma batalha exige coragem, criatividade e determinação.

E esse vício continua depois que somos aceitos no mundo acadêmico-aristocrata. Flanamos sem agregar, sem modificar, sem inovar, sem inspirar. Sem a paixão tão essencial em uma frente de batalha. Levamos para as salas de aula a impressão de que o ócio – intelectual e das ações – é algo aceitável. Não é. Magistério é a arte de cativar, de inovar, de inspirar, de doar-se. Como os aristocratas iniciais, que perdiam sua honra, seus títulos e seus direitos quando se acomodavam ou acovardavam, aquele meu professor se esqueceu que ele também perdia a única coisa que realmente deveria importar: a capacidade de transformar seus alunos em algo melhor do que ele mesmo.

Há muitos anos, quando o Giordano me convidou para ministrar uma palestra inaugural na PUC/MG, eu a terminei dizendo que magistério não é profissão, é sacerdócio. Passada uma década desde que dei aquela palestra, provavelmente tudo em mim mudou e todos os meus pontos de vista foram revistos, exceto minha crença de que magistério deveria ser encarado como um sacerdócio e não uma profissão.

terça-feira, 6 de abril de 2010

O PREÇO DA INTEGRIDADE

Um ex-aluno, agora colega de magistério jurídico, contou-me a história de como perdeu o emprego. Convidado a integrar bancas de monografia de final de curso, identificou plágio em três trabalhos. Comunicou previamente o professor orientador, apresentando-lhe, inclusive, as fontes de que os estudantes haviam se utilizado. Nenhuma providência foi tomada, não lhe restando alternativa senão reprovar os candidatos. Passados alguns dias, a coordenadora do curso lhe apresentou atas em que os tais candidatos apareciam como aprovados, pedindo-lhe insistentemente que as assinasse. Tendo recusado, foi demitido depois de alguns dias, por telefone. Foi assim que o meu ex-aluno perdeu o emprego, à custa de manter a integridade.

segunda-feira, 22 de março de 2010

CALAMANDREI RECOMENDA

Eles, os Juízes, Vistos por um Advogado é o título do belíssimo livro em que Piero Calamandrei, processualista italiano, descreve alguns aspectos de sua vasta experiência profissional.

Dos conselhos que oferece, preciosos para quem está no começo de qualquer carreira jurídica, destaco o seguinte:

"Lembrem-se de que a brevidade e a clareza são os dois dons que o juiz mais aprecia no discurso do advogado.

- E caso não consiga ser ao mesmo tempo breve e claro, qual dos dois dons, para descontentar menos o juiz, devo sacrificar?

- Inútil a clareza, se o juiz, vencido pela prolixidade, adormece. Ele aceita melhor a brevidade, ainda que obscura: quando o advogado fala pouco, o juiz, mesmo que não compreenda o que ele diz, compreende que tem razão" (CALAMANDREI, p. 82-83).

Só fico pensando se a recomendação ainda seria válida se substituíssemos advogado e juiz, respectivamente, por professor e aluno, no caso de uma aula, ou, aluno e professor, no caso de uma prova.

CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, Vistos por um Advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. [Título original: Elogio dei Giudice Scritto da un Avvocato].

terça-feira, 16 de março de 2010

SOBRE O ENSINO JURÍDICO NA ITÁLIA


Colaboração enviada por Mariana Lara,
mestranda em Direito na UFMG,
que, durante a graduação,
participou de intercâmbio na Universidade de Bolonha (Itália).

Sou mestranda na Faculdade de Direito e participei do programa de intercâmbio institucional da UFMG no segundo semestre de 2008, ainda na graduação, através do qual tive a oportunidade de cursar um período na Universidade de Bolonha, Itália. Essa experiência foi bastante enriquecedora do ponto de vista acadêmico, pois além de aprofundar meus conhecimentos em outro idioma, pude trocar experiências com pessoas do mundo todo, e cursar disciplinas que não são normalmente ofertadas na nossa faculdade, como Direito Romano, Lógica e Argumentação Jurídica e Direito Privado Comparado.

A Universidade de Bolonha é a mais antiga do mundo, foi criada em 1088, possuindo enorme tradição e prestígio no cenário acadêmico europeu e mundial. É um centro de referências principalmente na área jurídica, primeiro curso criado com os glosadores.

A Unibo, como é conhecida, recebe a cada semestre centenas de estudantes provenientes de diversas partes do mundo, o que facilita a ambientação do aluno estrangeiro. Existem inclusive duas associações que promovem a integração dos intercambistas, organizando viagens culturais, eventos de culinária típica, exibição de filmes, visitas guiadas a museus e festas.

Para facilitar a aprendizagem do idioma, a universidade oferece um curso gratuito de italiano no mês de setembro, antes do início das aulas. É preciso ficar atento às informações do site da Unibo, pois deve-se fazer um teste de nivelamento pela internet alguns meses antes. O curso foi bastante proveitoso.

Quanto à Facoltà di Giurisprudenza, foi possível perceber diversas diferenças entre o sistema de ensino jurídico brasileiro e o italiano. No sistema de Bolonha, que inclusive está sendo adotado pela maioria das universidades européias, o aluno não precisa fazer matrícula na disciplina que deseja cursar, a frequência não é obrigatória, e não há avaliações ao longo do curso. Apenas ao final do semestre o aluno faz inscrição para o exame, podendo optar por uma das três chamadas existentes (por exemplo, pode escolher fazer a prova em dezembro, janeiro, ou fevereiro). Ele pode até mesmo escolher não fazer o exame naquele ano, mas no seguinte. As provas são quase sempre orais.



Geralmente é indicada uma bibliografia básica para aqueles que freqüentam as aulas, e uma bibliografia mais extensa para os “não frequentantes”. Vários alunos optam por estudar sozinhos e não participar das aulas. Encaro com bons olhos esse sistema liberal, pois na universidade o aluno não deve mais ser tutelado, ter alguém que analise seus passos e controle sua frequência, até porque a presença em sala não significa necessariamente que o aluno esteja atento aos ensinamentos.

As aulas, principalmente do ciclo básico, são em auditórios com mais ou menos 300 alunos, e possuem 2 horas de duração. A forma de lecionar é sempre expositiva, e os alunos nunca (ou quase nunca) perguntam ou fazem qualquer interferência. Esse é um ponto extremamente negativo, pois os alunos acabam ficando com dúvidas ou não fazem algum apontamento que poderia enriquecer a aula e provocar o debate gerando conhecimento.

A relação professor/aluno é muito distante. O estudante deve tratar o mestre com extremo respeito, usando “senhor(a)”, e até mesmo as conversas depois da aula não são muito comuns, bem diferente do que ocorre no Brasil. Para tentar suprir essas falhas, existe um horário semanal em que o professor ou um de seus assessores fica a disposição para tirar dúvidas, o que não funciona muito bem na prática.

Os professores das três matérias que cursei eram ótimos e aprendi bastante. Optei por fazer todas as disciplinas em italiano, mas existem algumas matérias que também são ofertadas em inglês.

Destaco ainda que a biblioteca da faculdade é muito rica, valendo a pena uma (ou várias) visitas.

Em resumo, há pontos positivos e negativos no sistema de ensino de qualquer universidade, porém, o que pude perceber de mais importante foi que a UFMG e o ensino aqui ministrado não ficam atrás de outras universidades mundiais, como a de Bolonha, de tão longa tradição. De toda forma, a experiência do intercâmbio é extremamente proveitosa, tanto pessoal quanto academicamente. Arrisco a dizer que foi uma das melhores fases da minha vida. Espero ter contribuído de alguma forma para os futuros intercambistas, e estou a disposição para quaisquer dúvidas.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A MONTANHA DE ORGULHO

Todas as pessoas, em todos os contextos, estão sujeitas ao erro de se imaginarem superiores às outras.

No entanto, se eu não estiver enganado, o risco parece ainda maior entre os que exercem profissões jurídicas.

Talvez, porque em algumas dessas atividades, como a magistratura, o profissional experimenta cotidianamente a sensação de interferir na vida das pessoas.

Talvez, porque em outras, como a advocacia, a habilidade no uso da linguagem faz o titular supor que pode controlar o agir dos que o cercam.

Talvez, ainda, pela beleza da tradição que acompanha a prática do Direito ou pelo sentimento de que apenas os seus cultores partilham de certos conhecimentos e de determinada forma de se expressar.

Mas, se eu também não estiver enganado, essa triste realidade deveria ser combatida.

Nada parece mais improdutivo, no entanto, que discursar contra o orgulho.

Talvez seja o caso de apenas sugerir o quanto ele pode ser ridículo.

E, para fazê-lo, tomemos a figura de Crispiniano Soares, catedrático de Direito Romano na Faculdade de Direito de São Paulo, entre 1854 e 1871.

Segundo a crônica acadêmica, muito embora dotado de boas qualidades, Crispiniano era “uma montanha de orgulho”.

Durante suas explicações em sala de aula, costumava erguer a voz tão alto que podia ser ouvido até ao meio do Largo de São Francisco.

Nessas ocasiões, era possível escutá-lo vociferar:

– “Indubitavelmente, Papiniano er....rou!”.

Ou ainda:

– “Donellus, Cujaccius e a corrente dos comentadores são dessa opinião; eu, porém, entendo que eles erraram, e penso diversamente”.

A um estudante, que tentava defender o ponto de vista dos clássicos do Direito Romano, respondeu:

– “Então, o senhor não admite que um jurisconsulto moderno corrija os jurisconsultos antigos?!”.

E, ao saber que outro professor reclamara do incômodo que lhe causava a vozeria na aula vizinha, declarou:

– “Eu ergo a voz, porque tenho confiança no que digo. Não receio errar: não temo que o mundo inteiro me ouça”.

Mas, de todos os episódios que se poderia listar, o mais conclusivo sobre a personalidade de Crispiniano teve lugar quando ele se apresentou ante o tribunal do júri para defender um conhecido político paulista. Ao iniciar a exposição, disse solenemente:

– “A minha presença nesta tribuna revela a importância da causa que se debate!”.

(NOGUEIRA, José Luís de Almeida. A Academia de São Paulo: Tradições e Reminiscências. Volume I. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 274-280).

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

OUTRO DISCURSO DE FORMATURA

Animado pela leitura do discurso de um querido ex-aluno, o David Francisco Lopes Gomes, resolvi publicar o que pronunciei, há quase 10 anos, na cerimônia em que recebi, junto com meus colegas da Faculdade Mineira de Direito, da PUC/MG, o título de bacharel em Direito. Dele, suprimi apenas alguns parágrafos, para deixar a leitura mais rápida e leve.

Ilustres componentes da mesa,
demais autoridades presentes,
prezados professores e funcionários,
queridos pais e amigos,
caros colegas,

Em 1996, ingressamos na Faculdade de Direito.

Cada um de nós trazia consigo uma história diferente, pensamentos, ansiedades e sonhos diferentes.

Trazíamos um pouquinho de cada canto de Belo Horizonte, mas também de São João Del Rei, de Curvelo, de Carangola, de Conceição do Mato Dentro, de Barbacena, de Tupacigaura, de Contagem, de Capitão Andrade, de Mantena, de João Monlevade, etc.

Logo, tivemos os primeiros contatos com o Direito e com outras ciências. Quem não se lembra do Português arcaico do professor Jaime França? E da Filosofia serena do professor João Pereira? Contudo, nossos primeiros passos na ciência que abraçamos foram direcionados pela voz mansa, de sotaque alagoano, da professora Taisa.

Semestre após semestre, a convivência diária se encarregou de estreitar os laços que nos unem.

E eu sempre me pergunto que palavra melhor expressaria essa união? Seríamos todos amigos? Seríamos apenas colegas?

Amigo é designação que se deve reservar a pouquíssimas pessoas. Não se pode ser verdadeiramente amigo de tanta gente.

Colega, por outro lado, é expressão que diz muito pouco.

Penso que o melhor nome para expressar o que somos uns dos outros não é amigo nem colega, é companheiro. A palavra "companheiro" vem do latim "cum pane", aquele que divide o pão.

Sim, temos sido companheiros. Temos dividido tempos de alegria e tempos de tristeza. Momentos de festa e entusiasmo. Horas de desânimo e vontade de desistir. Tempos de dança e tempos de pranto. Sorrisos e lágrimas. Júbilo e dor.

Nesses cinco anos, alguns de nós se tornaram papais e mamães, outros se casaram. Namoros começaram e terminaram e ainda outros atravessaram todo o curso e continuam firmes. Muitos conseguiram estágios e empregos. Portas se abriram. Oportunidades. Momentos de alegria. Tempos de festa.

Mas, das experiências que compartilhamos, uma certamente marcou nossa trajetória. Foi quando perdemos o amigo Márcio Atsushi Tanigaki. O Márcio era querido de todos. Quem pode esquecer o sorriso franco, os gestos espontâneos, os conselhos prudentes, a visão realista do mundo, o fino senso de humor? Quem não se lembra das conversas de antes da aula, do cafezinho de todos os intervalos, do bate-papo descontraído? Tempo de dor inigualável. Dor que sofremos juntos.

Além de tudo, a nossa turma teve uma história peculiar de dificuldades. Logo no primeiro semestre, recebemos uma ordem de despejo. Fomos a primeira turma do Currículo Novo, da Monografia de Final de Curso, das Atividades Complementares.

Enfim, somos realmente companheiros. Diariamente, temos dividido alegria e tristeza.

Existe, ainda, outra coisa que temos dividido: o sonho. Nestes últimos anos, fizemos estágio nos mais diferentes lugares: escritórios, empresas, tribunais, repartições públicas. E todos éramos movidos pela mesma coisa: o sonho. Fora ele, só nos restava protocolo, distribuição, siscon, carga, fotocópia. Andando pelos corredores dos Fóruns e dos Tribunais, sempre carregando pilhas de processos, nunca nos sentíamos diminuídos. Embora o cansaço, a má vontade de alguns servidores, a impaciência de alguns chefes nos fatigassem, jamais nos puderam desanimar. Vencemos inúmeros obstáculos - cansaço, sono, saudade - e chegamos a este dia, certamente movidos pelo sonho.

Mas, e agora? Surgem perguntas inevitáveis. Como será daqui para frente? A insegurança, a ansiedade, o medo tomam conta de nossos corações. Sentimentos que, outra vez, como verdadeiros companheiros, estamos dividindo. O momento é de tomada de decisões. Serão inúmeras escolhas que irão determinar o rumo de nossa vida. Que carreira escolher? Onde trabalhar?

Antes, porém, teremos que nos decidir sobre uma outra questão, que há muito nos é apresentada. Que tipo de profissional do Direito iremos ser? Pela pequena experiência que temos, já estamos cientes de que por traz das páginas amareladas dos autos de um processo, existe uma história humana. Para as pessoas envolvidas numa lide, não se trata apenas de um processo identificado pelo número, trata-se da liberdade, da honra, do bem-estar, da subsistência, do emprego, do patrimônio e, por vezes, da própria vida. Na verdade, sempre estaremos lidando com conflitos humanos e, por isso, temos que decidir como será nossa postura profissional. Faremos da nossa profissão um comércio ou sacerdócio? Faremos do Direito um instrumento de opressão ou de realização da justiça?

Bom, já é hora de encerrar. Antes, porém, gostaria de dizer duas breves palavras.

A primeira é de sincero agradecimento. Aos pais, pelo cuidado constante, pelo amor dedicado. Aos cônjuges, namoradas e namorados, pela compreensão e pelo incentivo. Aos demais familiares e a todos os amigos, pelo apoio nos momentos difíceis. Aos professores e aos funcionários da Faculdade, pela dedicação no cumprimento de seus ministérios. A Deus, antes de tudo, pela vida, e porque lhe aprouve fazer coincidir o iniciar de nossas carreiras com datas tão significativas. O apagar das luzes do século XX, os 500 anos do descobrimento do Brasil, e, especialmente, o cinqüentenário de nossa Faculdade, esta casa que aprendemos a amar e respeitar e de onde levaremos o nome, a tradição, a história.

Agora, uma última palavra aos colegas.

Colegas, não, companheiros.

Companheiros?

Bom, até aqui dividimos muitas coisas: alegrias e tristezas, sonhos e ansiedades.

Agora, os nossos caminhos é que se dividem. A nossa convivência jamais será a mesma. Não será tão fácil dividirmos tudo.

Logo, não poderemos ser apenas companheiros.

Seremos amigos, ou não seremos mais.

Sim, seremos amigos.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

UM DISCURSO DE FORMATURA

Discurso pronunciado por David Francisco Lopes Gomes, em dezembro de 2009, como orador dos formandos em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, gentilmente cedido para publicação nesse espaço.

Boa noite,

Começo pedindo pra que não me escutem. Creio que eu não tenha muito a dizer. Se esse discurso tem algo que o pudesse diferenciar de tantos outros discursos de formatura, esse algo é a memória que ele conta. Memória daquilo que nós, e não outros, vivemos. Mas é exatamente por isso que peço pra que não me escutem. Afinal, se somos tantos e tão diferentes não seria correto que eu privatizasse essa memória e a quisesse contar sozinho. Quando digo nós, não me restrinjo aos que estão no palco. Refiro-me também aos que estão na platéia, pois, se aqui se encontram, é porque de alguma forma viveram esses cinco anos, ou parte deles, e sem dúvida carregam consigo algumas lembranças. Assim, enquanto falo, não me ouçam. Aproveitem o tempo, que não será longo, e volte cada um pra dentro de si mesmo, em direção a suas próprias recordações.

Feita essa advertência, e com a consciência tranqüila de não estar sendo ouvido, posso arriscar dizer algumas coisas, que pouco têm a acrescentar ao que ficou dito, com maior maestria e de um jeito mais profundo, na noite de ontem.

Passamos meia década juntos. Aprendemos e erramos. Falando assim, conjugando os verbos no plural, pode parecer que fomos uma turma homogênea. Não, não fomos. As diferenças sempre existiram entre nós. O que torna maior o nosso mérito, posto que praticamos o difícil exercício da convivência, do respeito ao outro. E chegamos aqui..

Nosso caminho na faculdade não foi sem percalços. Mas não queria lembrá-los. O esquecimento também é memória. Prefiro lembrar que, desde o início, procuramos ocupar nosso espaço, cada um a seu modo. Fomos vistos por muitos como uma turma que não estava só de passagem, mas que tinha algo a contribuir, como de fato o fez, na construção daquela história mais do que centenária.

Essa meia década, porém, não foi apenas de seriedade e trabalho. Momentos de descontração e lazer a tornaram menos áspera e a prepararam melhor pra deixar saudades. Aproximaram estranhos, quebraram uma ou outra barreira e permitiram a formação de muitos laços, quem sabe pra sempre.

Não sei – jamais saberei – com quais sonhos cada um de nós cruzou pela primeira vez aquelas portas. Não sei também quais deles ainda nos acompanham, quais ficaram pra trás e quais vieram somar-se ao jardim de esperanças que inevitavelmente nos serve de refúgio e sem o qual não faria o menor sentido saber se o sol nascerá na manhã seguinte. Mas sei que esse foi um tempo de sonhar. De nos projetarmos para além do aqui e do agora, de nos imaginarmos no que há de vir e de acreditarmos na nossa infinita capacidade de mudar as coisas e de segurar as rédeas do nosso próprio destino. A tudo isso nos lançamos agora.

Além de sonhos, eu deveria falar também de utopia. Mas deixo isso a quem vem após a mim, que o fará com maior beleza e emoção.

Caminhando em direção ao fim, peço àqueles que seguiram meu conselho e foram buscar a cor de suas próprias lembranças pra que voltem a me escutar. Se ouviram meus cumprimentos iniciais é importante que ouçam também minha despedida. Despedir-se... Como é difícil se despedir. Dizer tchau, até logo, até mais. Sobretudo quando cada uma dessas expressões pode significar um simples adeus. Mas é preciso que nos despeçamos, é preciso que aprendamos a nos despedir. Nisso talvez resida um dos segredos da democracia.

Antes, contudo, gostaria de dizer ainda uma ou duas palavras. Aprendemos bem cedo no curso que é difícil definir o que seja a justiça. O que é justo pra uns, muitas vezes não o será pra outros. Mas as dificuldades do conceito de justiça não nos eximem de lutar por ela. E não podem ser por nós tomadas como desculpa cínica frente aos desafios do por-vir e à tarefa da construção de um mundo menos desigual, em que não haja espaço para o preconceito nem para a discriminação, sejam eles sociais, econômicos, raciais, étnicos, de gênero, de orientação sexual, religiosos, culturais ou quaisquer outros. Um mundo guiado pela lógica da inclusão, da alteridade e do reconhecimento, não mais pela exclusão, pelo egoísmo e pelo desrespeito. Um mundo onde finalmente seja possível ouvir com clareza os gritos ainda sufocados daqueles e daquelas que clamam e lutam por um tempo melhor, “pois só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz.”

Nos encontraremos. Não todos, certamente. Mas nos encontraremos. Este está longe de ser o ponto final. É no máximo um ponto e vírgula, o fim de um capítulo, um recomeço. Sim, nos encontraremos. Serão outros o palco e a cena. Mas que possa ser sempre o mesmo o brilho que hoje emana nossos olhos.

Obrigado pela atenção. Perdão pelas palavras. E que de nós e em nós reste a saudade, como sentimento do impossível, o choro, como expressão do indizível, e o riso, como única e verdadeira forma de dizer que valeu a pena.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

POR UMA EDUCAÇÃO DE NÃO-DISCRIMINAÇÃO E RESPEITO À MULHER

Contribuição enviada por Hildegard Gouvêa,
estudante do 9º período da Faculdade de Direito da UFMG

O Brasil ratificou dois tratados internacionais que buscam a erradicação da discriminação contra as mulheres: (i) a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ratificada em 1984; (ii) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ratificada em 1995.

Depois de longo debate sobre a constitucionalidade das normas destes e de outros tratados de direitos humanos, o STF, atualmente, pacificou entendimento de que elas têm status supralegal no nosso ordenamento, o que significa dizer que estão abaixo da Constituição e acima de todos os demais diplomas legais (Cfr. RE 349703/RS, Tribunal Pleno, Min. Rel. Carlos Britto, DJe-104 publ. 05/06/2009). A importância desses diplomas legais, portanto, é inconteste. No entanto, esses e outros tratados de direitos humanos não são suficientemente conhecidos e estudados, nem pela grande maioria dos estudantes de Direito, nem pela maior parte das mulheres que compõem a sociedade brasileira.

A Convenção da Organização das Nações Unidas sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher define o que é discriminação contra as mulheres em seu art. 1º:

"discriminação contra a mulher" significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

Dentre as várias formas de discriminação contra a mulher, existe uma relacionada a oportunidades educacionais, descrita no seguinte dispositivo da Convenção:

Art. 10º Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra as mulheres, a fim de assegurar-lhes direitos iguais aos dos homens no campo da educação e em particular para assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres:
a) as mesmas condições de orientação profissional, de acesso aos estudos e de obtenção de diplomas nos estabelecimentos de ensino de todas as categorias, (...)
d) as mesmas oportunidades no que se refere à concessão de bolsas e outras subvenções para estudos;

Além de ratificar a Convenção, o Brasil ratificou também o Protocolo Facultativo à Convenção da ONU, que possibilita às ofendidas apresentar reclamações individuais, a serem examinadas pelo Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Assim, qualquer indivíduo em seu próprio nome ou em nome de terceiro pode peticionar.

Esse direito adquire um conteúdo ainda mais importante no contexto das Faculdades de Direito, que, à guisa de se apresentarem como ambientes que se propõem abertos e intelectualizados, ainda convivem com formas veladas de assédio e discriminação contra a mulher, havendo mesmo professores que informalmente sustentam a superioridade aristotélica do homem (sic), a falta de mulheres inteligentes e sua própria predisposição por desprestigiar mulheres em seleções para bolsas de iniciação científica e afins.

Contudo, a própria Convenção admite que o problema da discriminação de gênero é, também, cultural. Por isso, deveria ser prioridade fazer uma revisão metodológica do ensino jurídico no Brasil, no sentido de recuperar as dimensões axiológicas do direito para formar um jurista que lute pela solidariedade e respeito. Para isso é essencial que haja um esforço no sentido de uma educação crítica, que alcance como resultado uma mudança de mentalidade que não discrimina a mulher e que não continue a reproduzir esse discurso discriminatório ao longo da história.

Essa questão cultural é tão marcante que muitas vezes as mulheres que sofrem algum tipo de discriminação ou assédio se sentem coagidas a não apresentar reclamações formais – e, em outras ocasiões, elas sequer encontram condições objetivas para tanto.

O tema revela que o problema da discriminação contra as mulheres não será resolvido por mera previsão legal de vedação da discriminação, mas, ao contrário, está condicionado a uma mudança radical de comportamentos. Em poucas palavras, uma mudança educacional e cultural. Por outro lado, é inegável que a possibilidade de maior aquisição pela sociedade de previsões legais, como a Convenção da ONU e os demais diplomas de proteção dos direitos da mulher, contribuem decisivamente para essa mudança. No entanto, para que isso ocorra, é preciso que a sociedade conheça os diplomas legais, e, mais do que isso, passe a trabalhá-los por meio de uma hermenêutica que valorize o social. É necessário que nossas Faculdades estejam preparadas para uma metodologia educacional que possibilite aos alunos trabalharem com os diplomas legais de forma crítica e consciente.