sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Entrevista com o Professor Lemos



Crédito do desenho: Hugo Freitas

Antônio Carlos Lemos ou, simplesmente, Professor Lemos é Graduado, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Pós-Doutor pelas universidades de Bologna, Paris, Salamanca, Coimbra, Oxford e Atlântida; Professor Visitante nas universidades de Harvard, Cambridge, Heidelberg, Lisboa, Barcelona e Guarapari; Professor Catedrático Titular na Faculdade de Direito Lemos e Lemos; e Sócio Presidente do Lemos e Lemos Advogados Associados.

No dia 20 de outubro de 2017, o mestre recebeu-nos em sua residência de inverno, nos arredores de Belo Horizonte e, durante todo o tempo da entrevista, permaneceu acompanhado de seus três cães de estimação, Savigny, Puchta e Ihering.

1. O que significa ser professor?

Transferir conhecimento.

O senhor gostaria de completar…

Não, é só isso mesmo.

2. Como o senhor se decidiu pelo magistério?

Dar aulas pra mim é, antes de tudo, uma forma de devolver à sociedade um pouco do que recebi, além de ser, obviamente, um modo de me manter eternamente jovem. 

3. Quais foram os seus grandes mestres?

Eu tive grandes mestres. Um muito marcante foi o meu queridíssimo professor de Introdução ao Estudo do Direito, de cujo nome agora não me lembro, mas que me marcou muito, muito mesmo.

4. Como vai o ensino jurídico no Brasil?

A pergunta é maliciosa, porque isso depende. Aqui na Lemos e Lemos, por exemplo, estamos bem. Salas de aula sempre lotadas, alunos que pagam a mensalidade em dia e, principalmente, um método de ensino que entrega os profissionais que o mercado quer. Agora, já não posso dizer o que se passa nas outras faculdades.

5. Qual o pior defeito que um professor pode ter?

O pior defeito que um professor pode ter é achar que tem defeito. Confiança é tudo, meu jovem.

6. Quais são os seus livros favoritos?

Posso falar de livros de outros autores ou preciso falar só dos meus?

Fique à vontade.

Bom, dos meus livros, é difícil escolher, mas posso citar: “Breve História do Direito Processual Civil: do Código de Hamurabi ao Código do meu amigo Fux”, “Eu, o Professor Lemos: autobiografia autorizada”; e “O Futuro do Direito no Sistema Solar: impressões iniciais de um simples observador”.

De outros grandes autores, também menciono três, que é pra manter a simetria.

O primeiro se chama “Como Fazer Pessoas e Influenciar Amigos”, ou alguma coisa do tipo.

O segundo é “A Arte da Guerra”, livrinho pequeno, mas muito interessante, de um autor chinês, chamado Tolstoi, ou Dostoievski, não sei bem. 

E o terceiro é “O Príncipe”, de Maquiavel, na versão com os comentários de Michel Temer.

7. O senhor gostaria de fazer mais alguma consideração?

Hoje, no desjejum, eu conversava com o Savigny justamente sobre essa coisa de ensino jurídico e tal. O fato é que essa meninada de agora não quer saber de nada. Mas comigo é sem conversa. Se não escrever na prova exatamente o que eu falei na aula, paciência, vai ter de estudar de novo, repetir o semestre, até aprender. Desaforo.


quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Como dar conta da competitividade do ambiente acadêmico?

Pergunta enviada por uma estudante do terceiro período:

Como dar conta da competitividade do ambiente acadêmico?

Resposta do Professor Lemos (Doutor e Pós-Doutor):

Como dar conta da competitividade? Competindo e, de preferência, vencendo. Houve um tempo em que as pessoas primeiramente se perguntavam sobre o sentido da vida e, somente depois, tentavam alcançá-lo. Mas é muito evidente que isso não funciona. Não se pode recuperar o tempo perdido em elucubrações dessa natureza. Enquanto alguém medita sobre propósito, vocação e outras inutilidades, o coleguinha ao lado avança. Na verdade, tudo o que importa é correr com a máxima velocidade e fazer o que for necessário para chegar à frente. Se você me pergunta para onde estamos indo, eu sou obrigado a dizer que essa pergunta não faz o menor sentido. Insistir nessas coisas é abrir as portas ao fracasso. É pedir para ser deixado pra trás. Quer uma prova? Olhe o coleguinha ao lado.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Como enfrentar o produtivismo acadêmico?

Pergunta enviada por um jovem Doutor:

“Como enfrentar o produtivismo acadêmico?”

Resposta do Professor Lemos (Doutor e Pós-Doutor):

Jovem, a sua pergunta revela um pequeno rastro de idealismo, talvez inconsciente, mas ainda assim perigoso. É como se as coisas pudessem ser de outro modo. Ora, as coisas são assim porque são assim. O que você chama de “produtivismo acadêmico”, com uma nota negativa, é apenas a quantidade de trabalho que cada professor deve entregar. É só isso, nem mais, nem menos. Na verdade, há uma lógica simples, que explica a coisa toda: o Governo brasileiro deseja boa posição nas comparações internacionais e, por isso, pressiona o Ministério da Educação que, por sua vez, pressiona a CAPES, que pressiona as universidades, que pressionam os programas de pós-graduação, que pressionam os professores. E o que fazer, então? Apenas continuar o processo, meu jovem. Nós, Professores Doutores, pressionamos os doutorandos que, por sua vez, pressionam os mestrandos, que pressionam os pesquisadores da iniciação científica que, não tendo a quem pressionar, escrevem. Terceirização, meu amigo, terceirização é o futuro. Se eles querem quantidade, nós entregamos quantidade. Número é o que conta, com o perdão do trocadilho. Guarde uma lição, meu jovem, que é pra vida toda: academia não é lugar para os fracos. Quem não dá conta, pede pra sair. 

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Como responder perguntas difíceis?

Pergunta enviada por um professor iniciante:

"Sou professor iniciante e gostaria de saber como agir quando não consigo responder a pergunta de um aluno?"

Resposta do Professor Lemos (Doutor e Pós-Doutor):

"Desnecessário dizer que és iniciante, desnecessário, caro colega. É prova mais do que suficiente o não conseguires responder ao questionamento de um aluno. Logo se vê que não és Doutor. Um Doutor não duvida. Afirma. Não vacila. Professa. Perdoou-te, no entanto, por conta da juventude, que é um mal que o tempo há de remediar. Minha primeira sugestão é que simplesmente não permitas as perguntas. É algo que se deve cortar pela raiz. E há inúmeras formas de fazê-lo, diretas ou indiretas. Se cuidares de interromper o primeiro arguente, logo no meio da frase, é improvável que outro pratique semelhante ousadia. Se não for suficiente, o caminho é ridicularizar a pergunta. Mostre ao impertinente o seu lugar. Reduza-o à própria insignificância. Se, mesmo assim, aparecer uma pergunta difícil, dessas que somente um Doutor poderia responder, o mais seguro é dizer que o tema será estudado um pouco mais adiante, talvez no final do semestre, talvez no oitavo período. Faça-os perceber que ainda precisam escutar muitas aulas e ler muitos livros antes de se dedicarem a temas complexos. As questões difíceis, que aos doutos servem de estímulo, podem destruir os incautos. Enfim, teria ainda muito que dizer, mas acho que isso já basta. Um pouco de cada vez, meu caro, que é pra não cansar." 

O que devo fazer para aproveitar bem o curso de Direito?

 Pergunta enviada por um calouro:

“O que devo fazer para aproveitar bem o curso de Direito?”

Resposta do Professor Lemos (Doutor e Pós-Doutor em Direito):

“O que mais se espera de um neófito é que ele não espere muito do curso. Em outras palavras, que faça apenas o que tiver que fazer, o que lhe for exigido, sem nada de perguntar, pedir explicações ou exigir a razão das coisas. O hábito de questionar, quando adquirido nos bancos acadêmicos, costuma não fazer bem aos profissionais da área jurídica. O essencial é saber que o objetivo do curso de Direito é fornecer o certificado de conclusão do curso de Direito.”

Nova Sessão: "Pergunte ao Professor Lemos"

O “blog” tem a alegria de anunciar uma nova sessão: “Pergunte ao Professor Lemos”. Num ato de puro desprendimento, o ilustre catedrático, doutor e pós-doutor em Direito, colocou-se à disposição para compartilhar um pouco de sua imensa sabedoria e, assim, contribuir para a diminuição da ignorância e do obscurantismo. As cartas podem ser enviadas ao endereço da redação. Só um aviso: serão liminarmente descartadas as missivas que não apresentarem vernaculidade, ou, como diria o Ruy Barbosa, “a casta correção no escrever”. 

sábado, 7 de outubro de 2017

O futuro da educação jurídica

Apesar do título pretensioso, o que quero dizer é simples e tem o único propósito de provocar o debate.

Creio que, nos próximos anos, o campo jurídico brasileiro será atingido por eventos de grande magnitude: a redução drástica do número de vagas colocadas em concurso público e a rápida modificação dos ambientes profissionais em decorrência de inovações tecnológicas.

Considero que os eventos, tomados em conjunto, têm aptidão para produzir, em primeiro lugar, o aumento da dificuldade de ingresso dos bacharéis no mercado de trabalho e, em seguida, a diminuição da procura pelo curso de direito.

Numa leitura pessimista, dá pra imaginar, entre outras coisas, a perda de importância do curso jurídico, o fechamento de instituições de ensino, a crescente padronização de atividades pedagógicas e a deterioração das condições de trabalho docente.

Os mesmos dados, no entanto, podem nos fazer sonhar com uma nova educação jurídica. Se o concurso público já não dá conta de tantos interessados, é o caso de repensar os objetivos e os métodos do curso de graduação. Se a tecnologia pode executar tarefas que cabiam somente aos profissionais do direito, é hora de discutir as competências que a educação jurídica deve proporcionar. Ou, dizendo de outro modo, se todos tiverem clareza que já não é suficiente acumular informações para fazer prova e já não basta ser um profissional que realiza tarefas repetitivas, o curso de direito pode ter a chance de se reinventar.

Tendo em vista a gravidade do assunto, temo que muitas instituições de ensino sejam simplesmente desonestas com seus alunos, pois cuidam de prepará-los para um mundo que já não existe. Debater amplamente o tema é o mínimo que se pode esperar. E o ideal é construir um projeto político-pedagógico que, ao menos, dê conta de tangenciar os desafios que nos aguardam.

Dos graduandos em direito, espero, em primeiro lugar, coragem para exigir mudanças nas instituições em que estudam, mas, principalmente, inteligência para construir trajetórias acadêmicas que transformem desafios em oportunidades.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

190 anos dos cursos jurídicos brasileiros: brevíssima reflexão sobre autonomia dos estudantes

Na semana em que os cursos jurídicos brasileiros completam 190 anos, gostaria de reproduzir um pequeno trecho dos Estatutos Novos da Universidade de Coimbra que, aprovados em 1772, exerceram alguma influência na organização das academias de Olinda e São Paulo.

Trata-se da recomendação para que os estudantes, ao longo de todo o curso, ficassem obrigados a ouvir cinco horas de lições por dia, mesmo que, para isso, precisassem frequentar aulas de períodos diferentes daquele em que estavam matriculados.

O motivo, apresentado pelos Estatutos, e que pode sugerir alguma reflexão sobre os perigos da autonomia estudantil, era o seguinte:

“Porque se não houvesse esse preceito, que obrigue os ditos estudantes a ouvirem todas as cinco horas de Lições; contentar-se-iam (pela maior parte) com ouvirem somente a Lição, ou Lições, que houvesse sobre as Disciplinas próprias do ano, que cursassem; e em vez de assistirem nas Aulas por todo o tempo das Lições, e ouvirem aos Mestres, que lessem nas outras horas, para aprenderem também as doutrinas, que Eles ensinassem, sairiam delas, e iriam consumir ociosa, e inutilmente o tempo em outros exercícios, que muitas vezes lhe seriam nocivos”. 

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Dez vantagens da educação bancária


Texto gentilmente cedido pelo Professor Lemos

A “educação bancária” tem dez vantagens se comparada com a “pedagogia da autonomia”.

Em primeiro lugar, deixa claro que o professor sabe infinitamente mais que os alunos.

Em segundo lugar, deixa claro que os alunos sabem infinitamente menos que os professores.

Em terceiro lugar, demonstra que, no processo de ensino e aprendizagem, o professor somente ensina.

Em quarto lugar, demonstra que, no processo de ensino e aprendizagem, o aluno somente aprende.

Em quinto lugar, proporciona maior eficácia na transmissão das informações da cabeça do professor à cabeça dos alunos.

Em sexto lugar, permite a conferência, por meio de testes e provas, da quantidade das informações transmitidas da cabeça do professor à cabeça dos alunos

Em sétimo lugar, permite que o fracasso escolar seja creditado exclusivamente na conta do aluno que, por falta de disciplina ou inteligência, não conseguiu absorver a quantidade necessária de informações.

Em oitavo lugar, garante que os professores não sejam incomodados por perguntas difíceis.

Em nono lugar, garante que os alunos também não sejam incomodados por perguntas difíceis.

Em décimo lugar, evita que os alunos se sintam tentados a pensar por eles mesmos.

Observação: as expressões “educação bancária” e “pedagogia da autonomia” são comumente atribuídas a Paulo Freire. Nunca li nada de Paulo Freire, mas sei que as teorias dele já estão ultrapassadas. Ouvi dizer que as teorias de Paulo Freire se inspiram nas ideias de um filósofo chamado Sócrates. Até fiquei com vontade de ler os livros escritos por Sócrates, mas acabei desistindo, pois, em minha modesta opinião, Sócrates está ainda mais ultrapassado que Paulo Freire. 

terça-feira, 1 de agosto de 2017

O tablado e a educação bancária



As salas de aula da Faculdade de Direito da UFMG tinham um tablado de madeira, com uns 20 centímetros de altura, na parte da frente, perto do quadro. As dimensões da sala e o número de alunos por turma não justificavam a sua presença. Era perfeitamente possível falar e ser ouvido sem ele.

Ainda assim, os professores davam aula no tablado e, por isso, olhavam os alunos de cima pra baixo.

Não consigo pensar em símbolo mais adequado para aquilo que Paulo Freire chamou de educação bancária.

O educador pernambucano, formado em Direito, sabia muito bem como eram as aulas em que uma pessoa, dotada de grande conhecimento, depositava informações na cabeça vazia de seus alunos.

E nada melhor para justificar o método do que uma peça de mobiliário apta a criar distância entre o mestre e os discípulos, sugerindo, portanto, a hierarquia que todos deveriam respeitar. Quem conhece a matéria sobe no tablado e, do alto de sua sabedoria, lança migalhas aos ignorantes que, calados e encantados, recebem o depósito do saber alheio.

Os tablados foram retirados nas férias. Na próxima semana, com o início do semestre letivo, professores e estudantes não poderão ver a estrutura de madeira a que estavam habituados. 

Mas eu temo que muita gente sinta saudade do velho símbolo. Temo principalmente que o velho símbolo continue assombrando nosso modo de pensar e viver a educação jurídica. 

Não é difícil jogar fora uns pedaços de madeira velha e apodrecida. Difícil é aceitar, como queria o Paulo Freire, que professores e estudantes aprendem uns com os outros e ensinam uns aos outros.


Observação: a fotografia de uma sala de aula do 12º andar, feita ontem, foi gentilmente cedida pela professora Lisandra Moreira, a quem agradeço.

domingo, 30 de julho de 2017

Cinco ideias para o início do semestre

Os ciclos funcionam como elementos de renovação e esperança. Depois do inverno, primavera. Depois da noite, dia. E depois de um semestre pouco produtivo, pode surgir um significativamente melhor.

No curso de Direito, são dez semestres letivos e é bem possível que uns sejam mais bem-sucedidos que outros. Melhor do que lamentar as deficiências dos períodos anteriores, é pensar em estratégias para corrigi-las. Melhor do que repetir as falhas de sempre, é experimentar coisas diferentes.

Então, para ajudar na tarefa de buscar novos caminhos, sugiro cinco ideias, que não são nada extraordinárias, mas podem servir como ponto de partida para a reflexão e a prática.

1. Decida como utilizar os aparelhos eletrônicos

Estudo conduzido por pesquisadores da UFMG, publicado em maio de 2017, sugere que a dependência de smartphones atinja um terço dos estudantes da instituição. O uso dos aparelhos em sala de aula, muito embora ajude na consulta de informações preciosas, frequentemente concorre para a dispersão. É preciso decidir como utilizá-los. Fazer boas escolhas nesse campo pode melhorar muito o aproveitamento.

2. Participe de um evento acadêmico

Na maioria das vezes, a sala de aula me parecia árida demais. Devo aos congressos e palestras grande parte da motivação para estudar com mais afinco. Nesses ambientes, tive oportunidade de ouvir Caio Mário, Silvio Rodrigues, João Baptista Villela, Humberto Theodoro, Dalmo Dallari e outros autores que eu admirava muito. Dos inúmeros eventos organizados a cada semestre, pode ser interessante participar de ao menos um.

3. Estude uma disciplina de formação básica

A filosofia abre horizontes. A história põe um chão firme debaixo dos nossos pés. Experimente avançar numa dessas disciplinas. O estudo do Direito pode ficar muito mais interessante. Sugiro, como ponto de partida, a História da Filosofia, de Giovanni Reale e Dario Antiseri, que é bem extensa, mas pode ser lida e estudada com calma, ao longo de todo o curso.

4. Invista no desenvolvimento de uma habilidade

É bom que profissionais do Direito saibam falar em público, trabalhar em equipe e escrever com clareza. Pode ser interessante identificar as habilidades menos consistentes e procurar estratégias de aprimoramento. Para quem não gosta de falar em público, por exemplo, pode ser interessante integrar uma sociedade de debates ou fazer um curso de teatro. Todas as outras habilidades também podem ser desenvolvidas.

5. Leia um clássico da literatura jurídica

Se você ainda não se apaixonou pelo Direito, leia Oração aos Moços, do Ruy Barbosa, ou A Luta pelo Direito, do Ihering, e depois venha conversar comigo. Duvido que você ficará do mesmo jeito.

De todo modo, faço votos de que você tenha um bom semestre. E que, no mínimo, tenha a dignidade de cometer erros diferentes. 

Um forte abraço!

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Balanço de final de semestre: em defesa do método menos eficaz

Ao final do semestre, estamos todos cansados, professores e estudantes. Mesmo assim, considero importante avaliar o que deu certo e o que pode melhorar. 

Sempre peço aos meus alunos a indicação de pontos positivos, pontos negativos, sugestões e observações, e cuido de esclarecer que o formulário é de preenchimento opcional e pode ser devolvido sem identificação.

Acabei de ler os resultados e gostaria de compartilhar as impressões iniciais.

Antes, preciso dizer como planejei o sistema de avaliação. Basicamente, pedi a elaboração de um plano individual de estudos, de um relatório parcial do desenvolvimento dos trabalhos e de um relatório final. Deixei claro que a nota não dependia do conteúdo dos documentos, mas apenas da realização das atividades a tempo e modo. 

Meu principal desejo era tirar a avaliação do centro do processo de ensino e aprendizagem e deixar que ele se desenvolvesse de forma mais livre e autêntica. Pode parecer uma ideia óbvia, mais eu queria criar condições para que os alunos estudassem para aprender e não para fazer provas. Estou ciente de que foi uma opção radical. Mas creio que tinha de ser assim. Se tivesse incluído uma única prova, dessas utilizadas para medir conteúdo, a experiência ficaria comprometida.

No fundo, o que estava em jogo era autonomia dos estudantes. 

E o resultado, a meu ver, sugere a realização de três movimentos.

O primeiro é o elogio da liberdade. Em geral, os estudantes foram enfáticos na indicação de como se sentiram bem com a liberdade de conduzir o próprio aprendizado. As seguintes frases, extraídas dos formulários de avaliação, podem confirmar a ideia:

“A liberdade nos permitiu montar nosso próprio programa de estudos e a autonomia para efetivá-lo no nosso tempo e do nosso modo”.

“Tive liberdade para conduzir meu próprio aprendizado e, diferentemente de outras matérias, não senti que seria consumida pela pressão”.

“O método adotado foi muito bom, fugindo da maneira tradicional das aulas, e permitindo ao aluno ir em busca do que ele realmente quer, sem força-lo a nada”.

O segundo movimento é a crítica da liberdade. Os estudantes foram igualmente enfáticos na demonstração dos perigos que a liberdade proporciona, como se pode ver nas seguintes frases:

“Tive dificuldades de organizar meus estudos, pois não estou acostumado com essa liberdade”.

“A liberdade também é perigosa, pois corremos o risco de nos acostumar com a falta de prazos e restrições promovidas pelas provas”.

“Senti falta de avaliações tradicionais que têm a função de nos fazer estudar a matéria com mais dedicação”.

“Acho importante ter provas, pois, querendo ou não, a gente acaba estudando mais quando tem avaliação”.

“A falta de cobrança em termos de pontuação gera pouco estímulo para os estudos em casa, principalmente em comparação com outras matérias mais exigentes”.

“Falta de prova deixa o aluno vagabundo”.

O terceiro movimento é o impacto da liberdade. Nos dois anteriores, os sujeitos olham para a liberdade e agem sobre ela, para destacar sua beleza e riscos. Neste último, ao contrário, a liberdade age nos sujeitos.

A experiência da liberdade proporciona, inicialmente, sofrimento. O sujeito, sabendo que podia fazer qualquer coisa, sofre quando percebe que não fez tudo o que desejava. O fracasso, quando verdadeiramente percebido, produz dor, tristeza, arrependimento.

Mas a experiência não termina aí. A liberdade, ao proporcionar sofrimento, permite conhecer os próprios limites, refletir sobre eles, e sair em busca de superá-los. E cada conquista, quando livremente construída, tem valor certo e verdadeiro. As seguintes frases podem comprovar minhas impressões:

“Infelizmente, sempre fomos obrigados a estudar e esta matéria buscou quebrar isso. Entretanto, senti que não consegui acompanhar essa nova perspectiva”.

“Sinto que meu aproveitamento não foi muito bom por falta de comprometimento com meu próprio plano de estudos”.

“A metodologia mostra minhas deficiências como estudante, de modo que, agora, posso trabalhar para saná-las”.

“Eu tenho dificuldades de estudar de forma tão autônoma. Acho que é um problema meu mesmo. Mas estou melhorando”.

“O processo de elaborar o plano de estudos foi enriquecedor à medida que possibilitou autoconhecimento, um termômetro das minhas capacidades e limitações.

“Ao fugir da maneira tradicional das aulas, foi possível refletir sobre meus pontos fortes e pontos que devem ser melhorados”.

“Não ter provas me forçou a ser mais responsável quanto ao estudo e estudar por prazer e não por obrigação, ao contrário das demais matérias”.

Ao final, a análise dos dados me permitiu pensar sobre o modo como estamos construindo o nosso sistema de educação.

E me faz lembrar de uma pergunta, feita no início do semestre, logo depois da apresentação do plano de ensino. Um aluno, muito comprometido com o curso, queria saber se eu considerava que o método proposto era mais eficaz do que as formas tradicionais de conduzir o processo pedagógico. O temor tinha sentido. O método não era eficaz. E o pior é que eu sabia disso. 

De fato, parece que os alunos estudaram pouco. Ficaram mais ocupados com as outras matérias. Guardaram apenas uma pequena parte do que foi discutido.

Mas sabem o que eu acho? Penso que está tudo bem. Viver é muito perigoso.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Educação de crianças e educação de adultos

Um assunto tem me perseguido nas últimas semanas. A primeira vez que ouvi sobre ele foi numa apresentação da Elaine Cristina da Silva, aluna do mestrado em Direito da UFMG. Trata-se da tentativa de comparar professores que cuidam da educação de crianças e professores que cuidam da educação de adultos.

Professores da educação infantil ensinam. Professores universitários, também. Professores da educação infantil esperam que seus alunos aprendam. Professores universitários, também. Professores da educação infantil avaliam. Professores universitários, também.

Mas em qual desses dois contextos, o da educação infantil ou o da educação universitária, é mais provável que a avaliação esteja desconectada do processo de ensino e aprendizagem? Ou que seja utilizada para obrigar estudantes a estudar determinados assuntos? Ou para manter o interesse dos estudantes nas aulas e nas demais atividades? Ou para reforçar a autoridade do professor? Ou para punir estudantes que não tenham se comportado bem?

Em qual desses ambientes é mais provável que a avaliação seja percebida como um fim em si mesma? Ou como algo mais importante que o aprendizado?

Enfim, em qual desses ambientes é mais provável que estudantes sejam tratados como seres incapazes de agir por conta própria?

terça-feira, 20 de junho de 2017

Ponha-se no seu lugar!

Para muitos estudantes, estar numa universidade de ponta é algo tão natural quanto passar férias em Orlando ou frequentar o Minas Tênis Clube. Trata-se de percorrer um caminho conhecido, ter a sensação de estar em casa, fazer o mesmo que já havia sido feito por avós, pais, irmãos, tios e primos.

Para outros, no entanto, a conquista de um lugar na universidade é notícia que se recebe com espanto. Familiares, amigos e colegas experimentam uma nova forma de alegria. De tão extraordinária, a vitória merece ser divulgada e celebrada. 

O encontro de pessoas assim tão diferentes pode ser fonte de inesgotável energia para o ambiente universitário. A inovação costuma florescer em meio à diversidade. Mas o potencial de produzir sofrimento também está presente. É preciso, portanto, reconhecê-lo e trabalhar para reduzir o seu alcance.

Um exemplo pode deixar as coisas mais claras. Para quem estudou inglês em ótimas escolas, conheceu muitos países, e sempre teve incentivo para aprender línguas estrangeiras, pode parecer estranho que haja estudantes universitários que só consigam ler textos em português. Por outro lado, quem não tem a habilidade desejada pode se sentir constrangido, envergonhado e até mesmo culpado. Mas a verdade é que as pessoas carregam histórias e as histórias precisam ser contadas.

Eu sou professor universitário, fiz mestrado e doutorado, e gosto muito do ambiente acadêmico. Mas a primeira vez que pisei numa universidade foi para fazer o vestibular. Como a maioria dos meus amigos, não queria nada além de ser jogador de futebol. Posso contar nos dedos os livros que li na infância e na adolescência. Na minha cidade, não tínhamos acesso a bibliotecas, livrarias, cinemas ou teatros. Fiz quase toda a minha trajetória em escolas públicas. Até o final do ensino médio, imaginava que faria um curso superior não muito longe da minha casa e que, depois, voltaria para ajudar nos negócios da família.

Quando fui aprovado para o curso de Direito na PUC Minas, pensei que era muito mais do que merecia. Para minha felicidade, fiz inscrição para o turno da noite e pude conviver com colegas mais maduros e com trajetórias diversificadas. Não tive dificuldade de adaptação e sempre me senti bem acolhido. Meus pais puderam me oferecer todo o suporte de que precisava. Sempre recebi apoio e incentivo de amigos queridos. Fiz todo o curso com alegria e entusiasmo e tive muitas oportunidades de crescimento.

Mas nem tudo foi fácil. Em muitos momentos, sentia que estava em território desconhecido. Para dizer a verdade, ainda hoje passo por situações de desconforto.

Assim que me mudei para Belo Horizonte, vindo do interior, fui muitas vezes corrigido por meu modo de falar. Aprendi que não se deve dizer que a taça está “meia” cheia, mas “meio” cheia; que não é correto falar que o professor pediu para “mim” fazer a tarefa, mas para “eu” fazer. Hoje, os equívocos podem parecer óbvios, mas não eram naquele momento. Eu falava simplesmente do jeito que havia aprendido. 

No que se refere à produção de textos, ainda no primeiro período do curso, o saudoso professor Jaime França me devolveu uma redação com várias correções. Uma de que me lembro com muita clareza foi a que indicava o erro de escrever “seje” ao invés de “seja”. Sim, eu cheguei à universidade com essas e outras falhas em minha formação básica. 

Também me lembro de que, no meu vocabulário, não constavam palavras que meus colegas usavam com naturalidade.

O caso mais engraçado se deu quando eu fazia estágio na Assessoria Jurídica do Banco do Brasil. Depois do intervalo do almoço, uma colega me perguntou se eu poderia lhe emprestar o “dentifrício”. Como não sabia do que se tratava, disse simplesmente que não tinha. Ela fez cara de quem não gostou. E não era para menos, pois eu acabara de guardar na gaveta uma pequena bolsa com os itens de higiene bucal. A questão é que eu jamais tinha ouvido aquela palavra. Eu conhecia “pasta de dente” e “creme dental”, mas nunca tinha ouvido falar em “dentifrício”. Claro que eu poderia ter perguntado. Mas tive vergonha e acabei fazendo papel de egoísta.

Numa outra ocasião, os colegas me chamaram para comer “trufas” e eu, com medo de não saber lidar com comidas complicadas, fui logo dizendo que não gostava. Eles acharam estranho, mas não insistiram. Só muito depois é que descobri que o convite era para comer chocolates.

Em muitas ocasiões, fiquei constrangido por achar que não sabia me comportar à mesa. Demorou um pouco, mas acabei desistindo de tentar imitar os colegas. 

Mas seguramente o item que melhor simboliza minha falta de preparo para o ambiente acadêmico é a dificuldade com os outros idiomas. Passei por quase todas as franquias de inglês de Belo Horizonte e não aprendi quase nada. É claro que eu já poderia ter superado isso. Mas o fato é que ainda não superei. Não consigo me comunicar em inglês e em nenhuma outra língua estrangeira. Com alguma dificuldade, consigo ler textos em espanhol e italiano. E é só. 

Então, depois de contar um pouco da minha história, volto ao início da conversa. Há pessoas que se sentem naturalmente à vontade no ambiente universitário. Outras se sentem desconfortáveis. E ainda outras se sentem como se não devessem estar ali. E é pra gente desse tipo que eu queria dizer: ponha-se no seu lugar! E o seu lugar é aqui, na universidade, do seu jeito, com a sua cara, no seu tempo, no seu ritmo.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Fazer Direito: uma conversa sobre dificuldades de adaptação ao curso

Dedico esse pequeno texto 
aos alunos dos primeiros períodos 
do curso de Direito da UFMG,
com os quais tenho aprendido muito.

Depois da euforia do ingresso na universidade, costuma surgir um sentimento difuso de insatisfação entre os estudantes. Nas próximas linhas, pretendo falar sobre esse assunto e indicar uma série de fatores que podem atrapalhar o processo de adaptação ao ambiente universitário. 

As ideias podem até ser úteis para outros interessados, mas esclareço que tive em mente os calouros do curso de Direito da UFMG, simplesmente porque conheço melhor a realidade em que estão inseridos.

1. A idealização da experiência universitária

Pode ser bastante hostil o ambiente do ensino médio e dos cursinhos preparatórios. O volume de questões para estudar, o medo da concorrência dos colegas, a cobrança para obter resultados positivos, entre outros fatores, contribuem para o clima de tensão. Ao estudante, resta alimentar a esperança de que, na universidade, tudo vai mudar. Por isso, quando a realidade não corresponde ao sonho, a decepção é enorme. E a frase “serão os melhores cinco anos da sua vida” parece uma profecia difícil de realizar.

2. A falta de um objetivo definido

Por mais cansativa que seja a preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio, o estudante tem um alvo claro, definido, estático, que é a aprovação. Na universidade, ao contrário, diante do imenso número de possibilidades, é difícil definir objetivos profissionais. Assim, sem saber aonde quer chegar, todos os caminhos parecem igualmente equivocados.

3. O peso das expectativas familiares

O estudante de Direito pode até não saber o que fazer depois de formado, mas o seu entorno social tem expectativas muito bem definidas. Na grande maioria dos casos, amigos e familiares esperam que os futuros bacharéis se tornem juízes ou membros do ministério público. Eu mesmo, depois de quase 20 anos de formado, ainda escuto coisas do tipo “você não pensa em fazer concurso?” ou “você é tão inteligente para ser só professor”. Quando o estudante é o primeiro da família a ingressar numa boa universidade e quando os pais fizeram grandes sacrifícios para garantir que isso fosse possível, a pressão de entregar ótimos resultados é ainda maior. E muito frequentemente a qualidade do resultado não é medida pela satisfação pessoal que a carreira proporciona, mas pelos níveis de remuneração e status.

4. A experiência de conviver com outros “melhores alunos”

Nas boas universidades, as turmas de graduação em Direito costumam reunir alunos que sempre estiveram entre os melhores de suas classes no ensino médio, sobretudo em matérias como português, história e geografia. Na grande maioria, são alunos que não conviveram com reprovações ou dificuldades de aprendizado. Por isso, pode ser bastante traumático não obter as melhores notas e perceber que há outros gênios ao redor.

5. O clima de competitividade

Muito embora o ambiente universitário brasileiro seja conhecido pelo alto nível de colaboração entre os estudantes, inclusive nos momentos de burlar processos de avaliação, a competição sempre está presente. E para quem ainda não está seguro de seu lugar no mundo, competir não é nada saudável. As boas notas são valorizadas em demasia. Parece ser mais importante obtê-las que efetivamente aprender o conteúdo ministrado. Supõe-se que o sucesso profissional depende mais do desempenho nas avaliações que do desenvolvimento das competências necessárias para cada tipo de carreira.

6. O excesso de oportunidades acadêmicas

Pode parecer estranho, mas o excesso de oportunidades acadêmicas tem o poder de oprimir. Como se já não fosse suficientemente difícil dar conta do básico, os estudantes são bombardeados com convites para eventos, grupos de estudo, processos seletivos e outras atividades “imperdíveis". Recusá-las é conviver com a culpa. E a frase “aproveite tudo o que a Universidade pode oferecer”, proferida com a melhor das intenções, pode ser um peso. 

7. O desafio de morar longe da família

É especialmente difícil cumular a adaptação ao ambiente universitário com a adaptação a uma nova cidade e a um novo modo de viver. O desafio exige uma dose especial de paciência e só poderá ser superado com apoio e orientação.

8. A falta de preparo da universidade e dos professores

Todos os outros desafios poderiam ser minimizados se a universidade e os professores estivessem preparados para enfrentá-los. Mas isso está longe de ser verdade. Ao menos no caso do curso de Direito da UFMG, é seguro afirmar que não há nenhum planejamento na oferta das disciplinas dos primeiros períodos. A escolha dos professores não passa pela análise da adequação de seu perfil ao momento inicial do curso. Não há nenhum diálogo entre professores do mesmo período para a identificação de dificuldades comuns. Ao contrário, cada um cuida de sua matéria como se fosse a única. Com as melhores intenções, muitos utilizam a estratégia de promover o pânico entre os estudantes. Pensam que desse modo podem ajudá-los a compreender que as coisas são diferentes na universidade.  

CONCLUSÃO

Estou ciente de que conhecer um problema não é o mesmo que resolvê-lo. Mas é um passo importante. Nomear as próprias dificuldades contribui para dissipar o sentimento vago e impreciso de tristeza, pensar em alternativas mais saudáveis e fazer escolhas mais conscientes. Também é tranquilizador saber que as angústias são verdadeiras e acometem grande parte dos estudantes. 

Ao final, se eu pudesse dizer apenas mais uma coisa, seria: não sofra sozinho; peça ajuda.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Pedagogia do Sofrimento

“Pedagogia do Sofrimento” é o nome de um livro que ainda não foi escrito. Nele, o processo de ensino e aprendizagem é apresentado como o conjunto das maldades que o professor organiza, cuidadosamente, com o objetivo de ajudar o aluno a perceber que a vida é difícil mesmo. A ideia é explorar ao máximo o valor pedagógico da angústia e da tristeza.

Se o mercado de trabalho é mesmo um lugar duro, cheio de desafios, é preciso preparar os estudantes. E obviamente não há melhor modo de fazê-lo senão reproduzindo cada uma de suas mazelas, didaticamente. 

Para o cumprimento do propósito, a primeira prova tem lugar central. É importante que ela proporcione, desde o início do semestre, algo parecido com o pânico e a ansiedade, e, quando corrigida pelo professor, um misto de revolta e frustração. 

Na sequência do curso, pode ser interessante manter suspense sobre quem será aprovado e quem será reprovado, de preferência, até o último dia de aula. 

De todo modo, o essencial é proporcionar, agora, boa dose de sofrimento, de modo intencional e sistemático, para que, no futuro, os nossos queridos alunos, abandonados à própria sorte, não corram o risco de sofrer. 

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Graduação da depressão: o caminho da formatura passa pelo sofrimento?*

Fui procurado por um grupo de calouros do curso de Direito. Eles queriam falar de sofrimento. A ideia comum era de que as aulas e o ambiente da Faculdade não pareciam muito animadores. Ao contrário, sentiam-se angustiados com as falhas administrativas, a infra-estrutura precária, o clima competitivo, as avaliações sem sentido, a desesperança do momento político, a crise econômica e falta de perspectivas profissionais. 

Meu primeiro sentimento foi de perplexidade. Há exatos 21 anos, minha turma de graduação experimentava esse momento inicial com curiosidade e entusiasmo. Tínhamos a vida toda pela frente. Imaginávamos que o curso nos abriria grandes possibilidades.

Mas o que teria mudado em tão pouco tempo? Não posso responder com clareza, mas tenho uma suspeita. Creio que as coisas estão fora de lugar. Tudo bem que não é de hoje, mas o nosso tempo radicalizou os equívocos. 

Perdemos a dimensão terapêutica da amizade. Os relacionamentos humanos costumam ter a profundidade de uma folha de papel. 

Perdemos a capacidade de viver cada experiência de modo pleno. Se estamos em muitos lugares ao mesmo tempo, na verdade, não estamos em lugar algum. 

Perdemos a coragem de fazer escolhas autênticas. Não nos damos o direito de ir mais devagar que os outros e nem podemos parecer menos felizes, belos, inteligentes ou ricos. 

Perdemos a habilidade de apreciar as coisas inúteis. Desprezamos as atividades que não geram resultados imediatos. 

Perdemos a curiosidade pela busca de um propósito mais elevado. Compramos a ideia de que é só isso mesmo: nascer, viver, morrer; estudar, trabalhar, festejar. Mesmo contra todas as evidências e contra o nosso mais íntimo desejo de sentido, fomos ensinados a sacrificar nossas esperanças no altar da ciência. E sejamos francos: pobre da ciência que promete mais do que pode entregar! Falsa a ciência que faz afirmações sobre temas que estão além de seu escopo e cuja compreensão escapa aos métodos que lhe são próprios!

Mas se as coisas realmente estão fora do lugar, o que isso significa?

Significa, antes de tudo, que o desconforto é verdadeiro, que a angústia não é frescura, que o sofrimento tem razão de ser.

Se o mundo enlouqueceu, loucura mesmo seria achar que vai tudo bem. 

Mas como fazer para que o sofrimento não vire uma forma diferente de loucura? Em outras palavras, como fazer para que, fugindo da loucura da falta de sensibilidade, não sejamos aprisionados pela loucura do excesso de sensibilidade?

Sim, porque é loucura achar que tudo vai bem e que todos os pontos de apoio são igualmente válidos. Mas também é loucura achar que nada vai bem e que nenhum ponto de apoio pode ser encontrado. No primeiro caso, loucura da falta de sensibilidade. No segundo, loucura do excesso de sensibilidade.

Apesar de frequentar a terapia há bastante tempo e de ter iniciado recentemente o uso de medicamentos para depressão, não tenho nada a dizer sobre saúde mental. Posso até ser meio louco, mas reconheço que não poderia falar do tema com propriedade.

Aliás, é bom deixar claro, desde logo, que deveriam procurar ajudar profissional as pessoas que apresentam tristeza persistente, acentuado desânimo para atividades do cotidiano, pensamentos de autodestruição, além de outros sintomas do mesmo tipo. Somente médicos e psicólogos estão habilitados a fazer uma boa avaliação e sugerir tratamentos e intervenções medicamentosas. E já passou da hora de dar um basta no preconceito contra esse tipo de auxílio profissional. O medicamento para o controle da depressão não é de um tipo especialmente diferente daquele usado para controle da pressão arterial, por exemplo. A principal diferença, na verdade, reside no preconceito que teima em persistir. 

De todo modo, para oferecer alguma contribuição ao diálogo, uma vez que vocês foram tão gentis ao me convidar, vou lançar mão de um argumento de Chesterton, jornalista e escritor britânico, apresentado logo no início de sua monumental “Ortodoxia”.

A ideia é muito simples. Para ele, loucura não é falta de pensamento. É o seu excesso. Para combatê-la, não faz sentido sugerir o bloqueio dos pensamentos ruins, mas a sua substituição por pensamentos mais saudáveis. Mais ou menos como abrir janelas numa casa fechada.

Em suas palavras:

"Assim sendo, se o leitor ou eu tivermos de lidar com uma mente que esteja a tornar-se doentia, a nossa principal preocupação não há-de ser fornecer-lhe argumentos, mas arejá-la, convencê-la de que há coisas mais limpas e mais frescas no exterior daquele sufoco que é o argumento único" (CHESTERTON, 2008, p. 25).

Assim, para abrir a mente, sugiro a possibilidade de pensar em alguns tópicos, divididos em três campos.

I. Uma questão de escala

Pode ser interessante começar com a questão da escala. Precisamos nos esforçar para dimensionar corretamente as coisas e os eventos e dar a cada um o valor apropriado, nem maior nem menor.

1. O Curso é maior que o Primeiro Período

O Primeiro Período pode ter suas angústias, mas o Curso é maior que o Primeiro Período. Há muita coisa pela frente. Para os que não vêem sentido em tantas disciplinas eminentemente teóricas, tenham paciência. Elas são importantes para a compreensão de tudo o que vem na sequência. Para os que estão ansiosos pelas disciplinas mais práticas, fiquem tranquilos. Elas já estão chegando e existem em grande número. Para os que ainda não conseguiram fazer três estágios, cinco monitorias e sete iniciações científicas, calma, muita calma. Há tempo pra tudo isso.

2. A Faculdade é maior que o Curso

O Curso pode ter suas chatices, mas a Faculdade é maior que o Curso. A Associação Atlética Acadêmica promove os melhores torneios estudantis. Toda semana temos ao menos um evento interessante. Do tanto que sei, não há escassez de festas e eventos culturais. A oferta de atividades de pesquisa e extensão também se dá em grande número. Além do mais, nas salas de aula e nos corredores, há uma infinidade de pessoas interessantes.

3. A Universidade é maior que a Faculdade

A Faculdade pode ter suas mazelas, mas a Universidade é maior que a Faculdade. Você tem interesse em psicologia? Curse uma disciplina no Departamento de Psicologia, procure um grupo de estudos ou converse com colegas da área. Gosta de cinema ou teatro? Faça atividades na Escola de Belas Artes. Pensa em se aventurar no mundo dos negócios? Vá atrás de cursos e eventos oferecidos pela Faculdade de Administração e Ciências Econômicas. Enfim, aproveite tudo o que a Universidade pode oferecer.

4. A Vida é maior que a Universidade

A Universidade tem seus pontos fracos, mas a Vida é maior que a Universidade. Os cinco anos do curso de Direito não podem funcionar como uma pausa em todas as outras atividades. A vida acontece em qualquer lugar, inclusive na Universidade. É um erro considerar que tudo que é importante deve passar pelo ambiente acadêmico. 

II. Uma questão de contexto

Também pode ser interessante contextualizar a experiência de estar na Universidade. Frequentar os bancos acadêmicos não é o único caminho para a felicidade. E nem mesmo para a realização profissional. Todos os que estão aqui tiveram a oportunidade de chegar ao ensino superior. Mas é apenas uma oportunidade, que não define ninguém, nem para garantir o sucesso aos que a puderam obter, nem para negá-lo a todos os outros.

1. Tem gente que nunca começou um curso (e é feliz)

Não é difícil lembrar de pessoas que não puderam frequentar a Universidade e tiveram sucesso em suas profissões. Os momentos formais de aprendizagem simplesmente não podem conter a imensa capacidade humana de aprender. Com criatividade e persistência, o ser humano pode abrir caminhos que nem sequer haviam sido imaginados e que, portanto, jamais poderiam ser ensinados.

2. Tem gente que nunca concluiu um curso (e é feliz)

É impossível contornar os exemplos de Bill Gates, Steve Jobs e Mark Zuckerberg, que não chegaram a concluir seus cursos universitários e, apesar disso ou, quem sabe, por causa disso, tiveram enorme sucesso em seus empreendimentos profissionais. Concordo com são casos atípicos. Mas servem para nos avisar que abandonar o curso é uma opção. Ninguém pode ser obrigado a seguir um caminho que não faz sentido e que só traz sofrimento. 

3. Tem gente que trocou de curso (e é feliz)

Também é possível lembrar que o problema pode não ser a vida acadêmica, mas apenas o curso escolhido. Decisões tomadas aos 15, 16 ou 17 anos não deveriam ser definitivas. Mudar de curso também é uma possibilidade a ser considerada.

4. Tem gente que concluiu o curso e foi trabalhar em outra área (e é feliz)

Nesse ponto, permitam-se recorrer a exemplos caseiros. Tancredo Neves, Ziraldo e Fernando Brant concluíram o curso de Direito, mas exerceram suas vocações na política, na literatura e na música, respectivamente. Seria possível dizer que foi inútil o tempo que passaram aqui? Certamente que não. Aprenderam na Faculdade muito do que levaram para a vida. É provável que mais nos corredores que nas salas de aula, mais com os colegas do que com os professores, mais sobre o mundo do que sobre o direito. Mas aprenderam aqui. Estiveram sentados nos mesmos lugares que vocês ocupam. 

III. Uma questão de estilo

Mesmo com a enorme pressão para que todos sejam iguais e construam sua trajetória acadêmica no mesmo ritmo, é bom meditar no assunto. E aceitar a diferença. Mais do isso, celebrar a incrível diversidade humana.

1. Tem gente que anda devagar (e é feliz)

Tem gente que anda rápido, mesmo sem saber aonde ir. E tem gente que anda devagar. O bom é que cada um encontre o próprio ritmo. E melhor ainda se souber aonde vai.

2. Tem gente que foge do padrão (e é feliz)

Tem gente que segue o padrão, mesmo sem ter pensado no assunto. E tem gente que foge do padrão. O bom é que cada um escolha como conduzir a vida. E melhor ainda se tiver coragem de viver as coisas que fazem sentido para si.

3. Tem gente que precisa de uma pausa (e é feliz)

Tem gente que faz uma coisa atrás da outra, mesmo com grande sacrifício pessoal. E tem gente que precisa de uma pausa. O bom é que cada um conheça seus limites. E melhor ainda se souber aproveitar cada momento.

4. Tem gente que muda bruscamente (e é feliz)

Tem gente que faz sempre a mesma coisa, ainda que não se realize jamais. E tem gente que muda bruscamente. O bom é que cada um se sinta confortável onde está. E melhor ainda se estiver em busca de seus verdadeiros sonhos.

Conclusão

Para concluir nossa conversa, retomo Chesterton. Diz a lenda que, ao ser perguntado por um jornalista sobre que livro levaria para uma ilha deserta, ele teria respondido: “O Guia Prático do Construtor de Barcos”. Lembro-me de um aluno que, ao responder a mesma pergunta, para espanto de toda a turma, disse que levaria “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”. Não que isso seja ruim. Na verdade, é muito bom. O problema é que não dá pra fazer amigos numa ilha deserta. Daí a loucura da sugestão do meu aluno e a beleza da sugestão de Chesterton. Um livro não é companhia suficiente para a vida. Nenhuma alegria faz sentido se não puder ser compartilhada. A verdadeira amizade é um auxílio precioso em tempos de sofrimento.

Então, para terminar, de verdade, ofereço-lhes um pequeno trecho de “Canção da América”, música composta, em inglês, por Milton Nascimento e Fernando Brant e, posteriormente, colocada em vernáculo por este, que é um colega de vocês, de outra turma, sim, mas um colega de vocês, que já esteve sentado aí nesses bancos:

“Amigo é coisa para se guardar,
debaixo de sete chaves,
dentro do coração”. 

Referência bibliográfica

CHESTERTON, G.K. Ortodoxia. Trad. Maria José Figueiredo. Lisboa: Alêtheia, 2008.

* Texto que serviu de base à comunicação apresentada aos alunos do primeiro e segundo períodos do Curso de Direito, na Faculdade de Direito da UFMG, em 7 de junho de 2017.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Aprendizado Democrático na Universidade: uma pequena homenagem ao Centenário do Professor Washington Albino*

É mais do que justa a homenagem que a Faculdade de Direito presta ao Centenário do professor Washington Albino, um dos mais destacados mestres e mais queridos diretores de sua longa história.

Eu é que não me sinto minimamente habilitado a participar da iniciativa. Não fui aluno ou orientando do professor. Não estava aqui quando ele ocupou a diretoria. Não sou pesquisador em Direito Econômico. Na verdade, tive com ele um único encontro, poucos meses antes de seu falecimento, na sede da Revista da Faculdade de Direito.

Ainda assim, decidi aceitar o convite, por três razões. 

A primeira, e mais simples, liga-se ao fato de o ter recebido do colega Giovanni Clark, a quem admiro profundamente, tanto que, depois de chamá-lo por longos anos de Prefeito de Sabará, julguei mais adequado tratá-lo, agora, como Imperador do Rio das Velhas. Aproveito, inclusive, para cumprimentá-lo pela iniciativa. O discípulo, quando homenageia o mestre, confessa que não teria crescido sem ajuda, apoio, orientação e, numa dimensão ainda mais profunda, proclama a razão de ser da Universidade, o ambiente em que professores e alunos, na bênção da convivência diária, ensinam uns aos outros e aprendem uns com os outros.

A segunda razão tem a ver justamente com o único encontro que tive com o homenageado. Naquele dia, não sei exatamente por que vias misteriosas, a conversa chegou em Padre Vieira. E o modo como o Mestre Washington - permitam-me chamá-lo assim, ao menos uma vez - falou da obra do religioso luso-brasileiro, me fez desejar conhecê-lo, me enviou diretamente aos textos, em cuja forma a língua portuguesa talvez tenha encontrado sua mais bela expressão, muito embora a teologia, com o perdão desse meu excesso de confiança, tenha sido frequentemente nada mais que pretexto.

Agora, ao pensar no assunto, recuperei a memória de um belíssimo livro, intitulado justamente de O Instante do Encontro. Nele, para sugerir como se dá o contato entre professores e estudantes, José Garcez Ghirardi faz o seguinte resumo, em prosa, de um poema de Erza Pound:

“Em pé, sobre a plataforma do metrô em uma grande cidade, um homem espera. Quando seu trem chega, lotado, é impossível entrar. As portas abertas revelam-lhe apenas os rostos ansiosos dos passageiros que o contemplam como se o interrogassem. Por um breve instante, ele se vê obrigado a estar frente a frente com estranhos, estranhos que, não obstante, são tão semelhantes a ele mesmo. A jornada de cada um os trouxe até aqui e, muito em breve, os levará para longe e para nunca mais. Quase sem querer, o homem se interroga: o que lhes diria, se pudesse dizer-lhes algo nesse instante, nesse brevíssimo instante de encontro? O trem fecha as portas e parte” (GHIRARDI, 2012, p. 73).

E foi isso que aconteceu quando me encontrei com o professor Washington. Foi uma única vez. Foi muito breve. Mas ainda tenho comigo o que ele me disse. E o meu caminho, desde então, tem as marcas daquele encontro.

A terceira razão, que é a mais importante, tem a ver com a leitura de um texto do homenageado, inserido em edição recente da Revista da Faculdade de Direito, na parte reservada à Memória Histórica, cujo título é simplesmente Programa de Ação para 1988 (SOUZA, 2015, p. 727-783). O documento, produzido ao término de seu primeiro ano de trabalho na Diretoria, tem cuidadoso diagnóstico, seguido da indicação de objetivos e metas, e isso para cada um dos setores e órgãos colegiados da Faculdade. Nele, encontra-se também a definição e a defesa da ideia de cogestão, implementada logo no início de seu mandato.

Não posso testemunhar sobre esse momento de nossa história, pois eu simplesmente não estava aqui. Desde quando comecei a trabalhar na Faculdade, em 2001, como professor substituto, ouvi relatos, especialmente de servidores técnico-administrativos, sobre a gestão do professor Washington, sempre realizados com um misto de carinho e admiração. Mas devo confessar que chegaram a mim já bastante enfraquecidos pela passagem do tempo. 

É por isso que a leitura do Programa de Ação me deixou tão impressionado. Não imaginava que algo semelhante já tivesse ocorrido na Faculdade. Achei tudo surpreendente: o diagnóstico minucioso, a indicação precisa de objetivos e metas, a ampla distribuição das ideias. Do tanto que sei, inclusive, de lá pra cá, nada disso voltou a acontecer.

Mas o maior impacto veio da ideia de cogestão. Ter, para cada tema e em cada setor, uma equipe formada por professores, servidores e alunos, trabalhando em conjunto, discutindo e estabelecendo objetivos e metas, procurando alcança-los e, depois, prestando contas de modo aberto e transparente, parece, mesmo em nossos dias, completamente revolucionário.

Como disse, não tendo vivido esse momento e não havendo estudado os seus resultados de modo sistemático, falo apenas da ideia, do projeto, do belíssimo documento que é o Programa de Ação, e julgo poder utilizá-lo como inspiração para o tempo difícil que vivemos.

Se o nosso sistema representativo parece não funcionar bem, se a democracia dá mostras de não florescer entre nós, se a atividade política tem sido tratada como tarefa menor, parece interessante insistir na possibilidade de aproveitar a vivência universitária como escola para a vida em comum. Cada eleição realizada no ambiente acadêmico pode ser a oportunidade de experimentar o modo como um cidadão deveria se oferecer ao serviço da comunidade. Cada reunião de órgão colegiado pode ser o momento de aprender a ouvir a divergência, debater com lealdade, encontrar a melhor solução e trabalhar em conjunto para implementá-la. Cada aula pode ser a demonstração prática dos princípios em que acreditamos e que proclamamos tão enfaticamente. A Universidade, enfim, pode ser um laboratório onde a democracia é estudada e submetida a testes e de onde se expande para outros lugares. Enquanto estudamos Física, Matemática, Filosofia, Direito, aprendemos democracia. 

E aqui eu concluo a singela homenagem ao professor Washington. Com ele, percebi com a máxima clareza que a Universidade é também um lugar de aprendizado democrático, algo de que tanto precisamos hoje.

Referências bibliográficas

GHIRARDI, José Garcez. O Instante do Encontro: questões fundamentais para o ensino jurídico. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2012. (Coleção acadêmica livre. Série didáticos).

SOUZA, Washington Peluso Albino de. Programa de Ação para 1988. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, n.66, p. 727-783, jan./jun.2015 (Memória Histórica).

*Texto que serviu de base à comunicação apresentada no "Seminário de Direito Econômico”, na Faculdade de Direito da UFMG, em 24 de maio de 2017.

domingo, 21 de maio de 2017

O Professor Mutante e a Experiência de Aprendizagem Mediada

Conheci um professor universitário, coitado, que não teve a sorte de ter sido sempre o mesmo o tempo todo. Mudou e mudou radicalmente ao longo de sua trajetória. Não que tenha chegado a algum lugar, mas passou de um extremo ao outro na ampla lista de possibilidades pedagógicas, sempre em busca de algo, cujo conteúdo e natureza nem mesmo sabia definir. Sempre em busca, mas sem jamais encontrar. 

No começo, inseguro quanto à sua competência, mas cheio de confiança em relação ao papel da educação e ao valor de seu campo do conhecimento, imaginava que o dever do professor era primeiro estudar e depois ensinar. Em outras palavras, transferir conhecimento. Ao alunos, restava apenas a tarefa de receber a matéria e fazer o máximo de esforço para retê-la. A avaliação, além de funcionar como estímulo externo, servia para medir a quantidade de conteúdos absorvidos.

Depois de um tempo, um pouco mais confiante em relação a si, mas cheio de dúvidas sobre o papel da universidade e o valor de sua disciplina, passou a questionar a relevância da figura do professor. Flertou com pensamentos perigosos. Quem quiser, aprende. Quem não quiser, não aprende. Ninguém ensina nada a ninguém. O professor, no máximo, aponta caminhos. Percorrê-los já é outro problema. 

E como se não bastasse, tendo passado de um extremo ao outro, o pobre coitado começou a acreditar na possibilidade de encontrar o meio termo. O professor nem seria o que tudo ensina nem o que nada pode ensinar. O aluno nem seria a tabula rasa, em que o professor grava o que quiser, nem o organismo completamente autônomo, que nada aprende a não ser por contato direto com o mundo. Entre seres humanos, a aprendizagem poderia ser mediada.

Em nosso último encontro, o professor excêntrico, verdadeira metamorfose ambulante, foi logo dizendo que continuava em busca de algo, cujo verdadeiro sentido ainda não alcançara. Trazendo consigo o livro de Feuerstein, ilustre desconhecido, confessou que a leitura produzira nele algo semelhante ao que as obras de cavalaria fizeram com o Quixote. 

Depois, absorto em seus próprios pensamentos, seguiu em frente, o coitado.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Confissões de Um Professor Desonesto

Num tempo em que as pessoas negam tudo, resolvi confessar. 

Há gente que diz que o seu nome, na verdade, não é o seu nome; que, apesar de ter saído da barriga daquela mulher e de ter sido amamentado por ela, nunca a viu, nem a conhece; que os milhões de dólares vieram parar em suas mãos, assim, de modo completamente misterioso, mágico.

Eu, no entanto, confesso. Um pouco constrangido, é verdade, mas confesso, e não nego.

Fui desonesto com meus alunos. Em muitas ocasiões e de muitas formas, falei sobre a necessidade de ser autêntico, de ter coragem para seguir o próprio caminho. Mas esqueci de mencionar os perigos. E isso é simplesmente desonesto.

E foi um aluno, muito inteligente, que me chamou a atenção para o problema. Depois de uma palestra, quando eu ainda estava me cumprimentando pelo sucesso da exposição, ele disse que até achava aquilo tudo bonito, mas que, na realidade, as coisas funcionam mesmo é de outro jeito. E me contou o recente caso de um concurso para magistério em que o aprovado tinha sido o candidato com a maior quantidade de itens no currículo, perguntando, ao final: “E se eu optar por esse caminho de autenticidade e, depois, numa seleção ou num concurso, perder para alguém que apostou somente nos números?”.

Engoli seco e fiquei em silêncio.

Agora, recomposto, decido confessar. 

Sim, é muito cômodo para um servidor público, estável e relativamente bem remunerado, falar em coragem. Sim, o caminho da autenticidade é perigoso. Sim, é preciso medir as próprias forças e contar com a possibilidade de se incompreendido. Sim, é preciso aceitar o risco de ir mais devagar que os outros, de ficar para trás, e até mesmo de não chegar ao topo.

Por isso, constrangido, peço desculpas por transmitir a mensagem incompleta. E prometo, daqui pra frente, nunca mais falar ao viajante sobre as belezas da paisagem sem antes indicar os perigos que o espreitam ao longo do caminho.

No mais, desejo a meus alunos sucesso e verdadeira felicidade. E digo novamente que podem sempre contar comigo, mesmo que seja apenas para chorar as mágoas.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Sobre Unicórnios, Estudantes com Coragem para Seguir o Próprio Caminho e Outros Seres Fantásticos*




*Texto que serviu de base à comunicação apresentada no painel “Metodologia da Pesquisa Científica”, organizado pelo Centro Acadêmico Afonso Pena, na Faculdade de Direito da UFMG, em 17 de maio de 2017.

Estudos de teoria da administração indicam que pessoas nascidas em meados dos Anos 90 integram a Geração Z, sendo que o nome é uma referência ao neologismo zapear que, por sua vez, indica algo como o ato de mudar repetidamente de canal de televisão (NASCIMENTO et al, 2016, p. 20).

Entre outras coisas, os integrantes da Geração Z se consideram multitarefa, estão constantemente em busca de desafios, não apresentam o foco como característica de relevo, conseguem informações com extrema rapidez, ficam irritados quando as informações não podem ser obtidas com facilidade, sentem alguma dificuldade tanto em compreender a si mesmos quanto em trabalhar em equipe (NASCIMENTO et al, 2016, p. 20; VEIGA NETO et al, 2015, p. 295).

É evidente que não se deve transpor para o ambiente brasileiro e para o mundo universitário um conjunto de ideias pensadas sobretudo nos Estados Unidos da América e com aplicações muito ligadas ao setor dos negócios. Também não seria conveniente supor que as pessoas nascidas num mesmo período histórico compartilhem, em igual medida, determinados modos de pensar e agir.

Mas, por outro lado, não dá pra negar que esses elementos têm algo a dizer sobre o público que, agora, em 2017, frequenta o ensino superior brasileiro. Sim, esses e outros dados parecem caracterizar os estudantes normais, os que se enquadram no padrão, os que podemos ver o tempo todo, nas bibliotecas, nas salas de aula, nos estágios.

É por isso que, atendendo ao carinhoso convite do Centro Acadêmico Afonso Pena, pensei em fazer as seguintes sugestões aos estudantes de Direito que fazem ou desejam fazer pesquisa.

1. Calcule o custo da cultura multitarefa

Sugere-se que menos de dez por cento da população mundial consegue, de fato, executar duas ou mais tarefas complexas ao mesmo tempo (WEBB, 2016, p. 93,94). Todas as outras pessoas, mesmo quando se consideram multitarefa, alternam rapidamente de uma função para a outra, gerando, assim, uma série de resultados negativos, tais como aumento do cansaço, aumento da quantidade de erros, perda da capacidade de tomar decisões e aumento do tempo médio de execução das tarefas (WEBB, 2016, p. 91, 92).

Então, a primeira sugestão e a mais simples é a de calcular o custo da cultura multitarefa. Pode ser que valha a pena. Pode ser que não.

2. Experimente o poder da dúvida

A segunda sugestão tem a ver com algo mais complexo. A pesquisa é uma atividade que nos deveria conduzir a um fim, que pode ser o de descobrir novos modos de enxergar uma questão bastante teórica e abstrata ou o de sugerir novas formas de solucionar desafios muito práticos e concretos. De todo modo, a pesquisa é meio para algo que está fora e acima dela. Não pode jamais ser um fim. Simplesmente não é legítimo participar da cultura viciada de obter financiamento para pesquisar e pesquisar para obter financiamento. Ou, deixando a questão do financiamento de lado, não se pode admitir a pesquisa que vise principal ou exclusivamente fornecer algumas informações para colocar no currículo.

A pesquisa deve começar com uma dúvida, uma inquietação, uma angústia. É preciso que o pesquisador, ao longo de todo o trabalho, fique diante de algo que faça sentido para si, que lhe diga respeito enquanto pessoa, única e irrepetível.

3. Meça duas vezes antes de cortar

Se um carpinteiro cortar a madeira de modo errado, tudo estará perdido. É por isso que o ato de medir é tão valioso.

Os pesquisadores, ao contrário, podem acreditar na ilusão de ir logo ao campo, de começar logo a escrever, quando ainda não se esforçaram o suficiente para organizar o trabalho.

A elaboração do projeto de pesquisa, que alguém pode considerar pura perda de tempo, é o único modo de desenvolver uma investigação séria e conseqüente. É muito bem-vindo todo investimento nele e nos instrumentos que informam a sua construção.

Aos meus orientandos, sugiro, como ponto de partida, a leitura cuidadosa de dois manuais de metodologia da pesquisa, escritos por colegas muito queridos: Da Ideia à Defesa: teses e monografias jurídicas, do Marcelo Galuppo, e Repensando a Pesquisa Jurídica, de Miracy Gustin e Maria Tereza Fonseca Dias.

4. Não se esqueça de Horácio

Ouçamos o famoso conselho de Horácio, reproduzido por Carlos Alberto Louro Fonseca:

“Nunca haja pressa em publicar o que porventura se tenha escrito; primeiro, é submeter a obra a críticos de confiança, depois, é guarda-la anos a fio na gaveta. É que poder-se-á destruir em qualquer altura o que nunca se tiver publicado; uma palavra, uma vez lançada ao vento, não saberá voltar para trás” (FONSECA, 2000, p. 397, 398).

Vou logo dizendo que o conselho, do modo como foi transmitido, não deve ser observado. Seria o mesmo que inviabilizar a publicação. Mas num tempo em que as pessoas têm tanta pressa e experimentam muito precocemente a confiança de tudo saber, talvez seja bom voltar a ele, pensar nele, conversar sobre ele.

A ansiedade para publicar, hoje, simplesmente não faz sentido. Ninguém deveria publicar sem ter algo a dizer.

5. Tire o medo do seu horizonte

De todas as possíveis motivações para pesquisar, o medo é seguramente a pior. Minhas conversas com os estudantes de graduação, sobretudo dos períodos iniciais, indicam, no entanto, que o medo é um companheiro sempre presente. Medo de não ter um currículo suficiente. Medo de não ser tão produtivo quanto os colegas. Medo de desagradar o orientador. Medo de não ter outras oportunidades no futuro.

Mas o medo não pode ser bom conselheiro.

Conclusão

Pesquisa, bem como extensão, estágio e até mesmo o curso de Direito só fazem sentido se colocados num horizonte mais amplo. Não podem ser objetivos autônomos. Precisam estar a serviço de algo mais abrangente.

Que tal um projeto, um sonho, uma carreira! Ou, se as coisas não estiverem ainda muito claras, quem sabe se eles não podem ser realizados conscientemente como uma experiência, um teste vocacional?

O que não pode ser, o que precisamos rejeitar, com todas as nossas forças, é o caminho construído e percorrido sob a força do medo.

Gosto de ver alunos corajosos, desses que correm riscos, que traçam objetivos ousados, que não desistem dos sonhos na primeira dificuldade!

Gosto de estudantes que têm coragem de seguir o próprio caminho, contra todas as forças que os queiram direcionar, impedir, paralisar!

Sim, gosto dos alunos corajosos, esses seres fantásticos!

Referências bibliográficas

FONSECA, Carlos Alberto Louro. Sic Itvr in Vrbem: iniciação ao latim. 7. ed. Coimbra: Imprensa Universidade de Coimbra, 2000.

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Crédito da fotografia: Davi Teofilo