quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

O fim do exame especial

Nos últimos dias do semestre, um assunto domina a Faculdade de Direito da UFMG: a possibilidade de extinção do exame especial. É que as Normas Gerais de Graduação, aprovadas em agosto de 2018, conferem competência aos departamentos para definir se os estudantes terão direito a esse tipo de prova, que funciona como uma nova chance de obter os pontos necessários para aprovação. 

Ao ver o debate, conduzido pelos departamentos, e acompanhado de perto pelos estudantes, fico pensando no lugar tragicamente central que a avaliação ocupa no processo de ensino e aprendizagem. As mesmas Normas Gerais de Graduação que autorizam - mas não obrigam - a modificação do exame especial, obrigam - e não simplesmente autorizam - a revisão dos projetos pedagógicos dos cursos. Mas, no nosso caso, a discussão de um antecede a discussão do outro justamente por conta da centralidade da avaliação.

Uma decorrência natural do equívoco é que, antes de discutir o sistema de avaliação como um todo, discutiremos uma parte dele, que é a que cuida do exame especial, quando na verdade, só deveríamos discutir qualquer assunto ligado à avaliação no âmbito das conversas sobre o projeto pedagógico do curso. Nossa situação é tão curiosa como se, logo depois de decidir edificar uma casa nova, o marido dissesse à mulher: “precisamos escolher a cor da maçaneta da porta da cozinha”. Não deveria ser assim. O debate sobre avaliação não poderia se descolar do debate sobre os fundamentos conceituais e a estrutura curricular do curso. 

No estado atual, deveríamos admitir que, ao pronunciar a palavra prova, nenhum de nós pode sequer imaginar o que se passa na cabeça de um colega de departamento. 

É que alguns trabalham com a ideia de prova-granada, que é aquela que assusta os estudantes e os obriga a correr atrás dos livros e dos cadernos.

Outros, com a ideia de prova-miragem, que é aquela que simplesmente não existe: o professor finge que elabora, os alunos fingem que estudam, o professor finge que corrige.

Outros com a de prova-espelho, que é aquela que pode mostrar ao professor como ele ensinou, e ao aluno, como ele aprendeu.

E ainda outros com a ideia de prova-régua, que é a que tenta medir a quantidade de informações que os estudantes são capazes de armazenar.

Eu mesmo não sei o que pensar quando ouço a palavra prova. Mas tenho certeza de que o centro do processo pedagógico não pode ser algo diferente de aprender ou, de preferência, aprender a aprender. Se nos organizarmos ao redor da avaliação, correremos o risco de gastar os melhores esforços com coisas que não são verdadeiras. Alguém que estuda para se exibir não é necessariamente alguém que estuda para aprender. 

Assim, para voltar ao tema do momento, registro que, de fato, deveríamos nos perguntar sobre o fim do exame especial, e também sobre o fim da avaliação, e também sobre o fim do curso de Direito. Afinal, a que servimos nós?

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Você concorda com o fim do exame especial?

Pergunta enviada pelo representante de turma do 2º período:

Você concorda com o fim do exame especial?

Resposta do Professor Doutor (e Pós-Doutor) Lemos:

Se não estou enganado (e raramente estou enganado), o exame especial é aquela provinha que os artistas, quer dizer, os alunos fazem quando atravessam o semestre inteiro sem obter a pontuação mínima. É isso mesmo, né? Se eu acho que deveria acabar? Nunca deveria ter existido. 

Em primeiro lugar porque é uma prova e, se é uma prova, significa que o professor deve elaborá-la e corrigi-la. Tudo bem que monitores e estagiários de docência estão aí para esse tipo de coisa, mas é inegável que dá algum trabalho, sim.

Em segundo lugar porque pode servir como prêmio à malandragem. Veja bem, o artista, quer dizer, o aluno leva o semestre inteiro na flauta e, depois, faz o diabo para tirar boa nota numa única prova, usando, quase sempre, de artifícios que não convém sequer mencionar aqui. 

Em terceiro lugar porque favorece a cultura do mimimi. Se o professor já tiver decidido reprovar um artista, quer dizer, um aluno, é melhor aceitar que ele já está reprovado. Não será uma segunda, terceira, quarta, quinta ou sexta chance que vai mudar isso. E o exame especial pode ser apenas mais uma oportunidade para reclamações, choradeira e esses recursos inúteis. 

Então, muito embora tenha o peso que tem, por ser minha, é apenas uma opinião. Evidentemente, ninguém está obrigado a concordar. E ninguém será perseguido se discordar. Claro que não vou ficar de marcação com alunos que se manifestarem de modo contrário. Jamais utilizaria meu poder, por exemplo, para ferrar com um representante de turma que faz papel de engraçadinho. Academia é lugar de dissenso. Eu respeito opiniões alheias, mesmo quando elas não têm sentido algum.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Como vencer votações no Colegiado do Curso?

Pergunta enviada por um jovem professor:

Como vencer votações no Colegiado do Curso?

Resposta do Professor Doutor (e Pós-Doutor) Lemos:

Notei, caro colega, que você usou o verbo “vencer”. Então, aprenda logo a primeira lição: o importante não é vencer as votações. É simplesmente não perdê-las. Tudo bem. Imagino que a diferença não tenha ficado clara. Vou explicar. Vencer uma votação implica que ela tenha sido realizada e que você tenha obtido a maioria dos votos. No entanto, para evitar a derrota será suficiente que ela não se realize. E esse é o grande segredo. Se você tiver a mínima suspeita de que não tem os votos necessários, basta seguir as minhas dicas. Você pode até não vencer, mas nenhuma outra pessoa vencerá.

A primeira providência é controlar a formação da pauta. Se for possível, tire o tema de lá, simplesmente. Se não, tente ao menos colocá-lo mais para o final da reunião.

A segunda providência é, durante os debates, falar pelo maior tempo possível, de modo a vencer os colegas pelo cansaço. Na melhor das hipóteses, o tema será deixado para a reunião seguinte. Se isso não acontecer, no entanto, os colegas estarão tão exaustos que ficarão mais suscetíveis à manobra seguinte.

A terceira providência é causar confusão. O caminho mais fácil é acusar o presidente de agir com autoritarismo, de não garantir o seu direito de fala, enfim, de tentar censurar suas opiniões. Outra possibilidade, perigosa, mas eficaz, é sugerir sutilmente que alguém ali tem interesse pessoal na questão. Também costuma dar certo pisar no velho calo de um colega mais exaltado. Se um deles  tiver enfrentado acusação de plágio, por exemplo, a mais vaga referência ao assunto pode ser o suficiente. Se outro tiver fama de puxa-saco, simplesmente use palavras como “servilismo”, “subserviência” e “bajulação”. Aumentar o tom de voz, colocar o dedo em riste, interromper o presidente da sessão, entre outras, são atitudes que podem produzir o clima desejado.

Também é possível tentar, a qualquer momento, uma saída regimental. Pense em algo como localizar um vício no procedimento, sair da sala para impedir a manutenção do quorum ou o bom e velho pedido de vista.

Mas lembre-se, jovem colega, que todas essas informações só devem ser utilizadas a bem da instituição e como forma de proteger a democracia. As pessoas nem sempre sabem o que querem. E nem sempre querem o melhor. Às vezes, meu caro, é preciso intervir, mas só para garantir a preservação do bem comum.

Não gosto do professor de Empresarial. O que devo fazer?

Pergunta enviada por um estudante do 8º período:

Não gosto do professor de Empresarial. Ele é bem fraquinho. O que devo fazer?

Resposta do Professor Doutor (e Pós Doutor) Lemos:

Olha, infelizmente, na verdade, a ética profissional me impede de tratar a questão com a clareza de costume. Não posso correr o risco de criticar um colega. Você diz que ele é fraquinho. Tudo bem, que seja. Mas quem sou eu para falar disso? E não é porque ele é feio, cospe enquanto fala, diz “pobrema” ao invés de “problema”, falha mais que o ataque do Galo, não é por isso que ele é mau professor. Tente perceber suas qualidades mais profundas, aquelas tão escondidas que ninguém vê, que nem mesmo ele sabe que tem, e que talvez ele não tenha, de fato. Procure evitar que a turma faça abaixo-assinado para pedir a cabeça do nobre colega. Todo mundo sabe que a Coordenação do Curso não pensaria duas vezes, né? Então, vocês não deveriam fazer isso. Tudo bem que poderia vir um professor bem melhor, mais novo, com doutorado e tudo. Mas pensem no pobre coitado. Por mais tentador que seja, não alimentem esse tipo de ideia. E tem mais: vejam a matéria que ele é obrigado a lecionar! Ninguém merece! No século XIX, chamava-se Direito Mercantil. No século XX, Direito Comercial. E agora, Direito Empresarial. Francamente, como levar a sério uma disciplina que não sabe nem o próprio nome? E como esperar que os alunos se interessem por coisas tão estranhas quanto letras de câmbio, cheques, duplicatas e cédulas de crédito rural? Então, vou resumir para os que têm dificuldade de entender. O professor é ruim? É. Ou melhor, pode ser que seja. Mas quem sou eu para criticar um colega? Ou sugerir algo que o possa prejudicar? Não esperem isso de mim, meninos. Não vou cair nessa. Jamais. Definitivamente. 

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Carta Aberta aos Amigos da Faculdade de Direito da UFMG

Por duas razões objetivas, e autônomas, temos o dever de reformular o Projeto Pedagógico do Curso de Direito da UFMG. A primeira é a aprovação de novas Normas Gerais de Graduação, que assinalam o curtíssimo prazo de 240 dias para a tarefa. E a segunda é a aprovação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Direito. Assim, nosso desafio já não é discutir a conveniência da reforma, mas o melhor modo de fazê-la. 

Vou começar do começo: que tal se fizéssemos o compromisso solene de conduzir os debates com generosidade! Sim, porque respeito é pressuposto elementar, mas insuficiente para o tamanho da tarefa. Vivemos um tempo especialmente tenso. Nossos alunos estão prestes a enfrentar um mercado de trabalho cheio de incertezas. Então, não basta ouvir e falar com consideração pelo outro. Precisamos nos dispor a assumir o lugar do outro, sacrificar interesses pessoais, compartilhar, ajudar.

Depois, penso que algumas diretrizes de trabalho poderiam contribuir.

A primeira é moderação. Eu já defendi reformas radicais. Em minhas turmas de graduação, inclusive, fiz as experiências mais malucas. Mas, hoje, estou convicto de que deveríamos manter a estrutura básica do curso e inserir pequenas novidades com potencial de transformação. A verdade é que nosso curso é bom. E isso passa, evidentemente, pela qualidade dos alunos, dos professores, dos servidores técnico-administrativos, pela longa tradição da Faculdade de Direito e pelo fato de que estamos inseridos numa Universidade de excelência. Com pequenos ajustes, poderíamos subir a um novo patamar. A moderação também tem a ver com a necessidade de que a reforma não seja apenas um conjunto de ideias no papel, mas a tradução de um consenso construído por meio do diálogo e alegremente vivenciado em nossa experiência cotidiana. 

A segunda é equilíbrio, mas num sentido bastante específico: nenhuma modificação deveria perturbar o atual equilíbrio entre os quatro departamentos responsáveis pelo curso. Assim, para tranquilidade de todos, deveríamos garantir, no ponto de partida, que cada um deles manteria a mesma participação proporcional na oferta de disciplinas obrigatórias e teria voz ativa nas decisões sobre que matérias incluir e que matérias excluir da matriz curricular.

A terceira é autonomia. Se o objetivo de um curso de Direito fosse ensinar todos os conteúdos relevantes, vinte anos não seriam suficientes. Além disso, a crescente complexidade das relações sociais cria tantas novas áreas de atuação que qualquer projeto pedagógico corre o risco de nascer desatualizado. É preciso, portanto, identificar os conteúdos mínimos sem os quais ninguém deveria obter o grau de bacharel em Direito, além de investir fortemente no desenvolvimento de competências. Em termos práticos, isso resultaria na flexibilização da matriz curricular, reduzindo levemente o espaço das disciplinas obrigatórias e aumentando os momentos de liberdade para decidir sobre a própria formação.   

A quarta é integração. Nosso curso ganharia imensamente se conseguíssemos trazer para o centro algumas das atividades que funcionam às margens. É preciso pensar em formas criativas de colocar o curso de Direito em contato com o de Ciências do Estado, já que compartilham o mesmo espaço e possuem objetivos comuns; com o Programa de Pós-Graduação em Direito, que é responsável pelo desenvolvimento de pesquisas altamente relevantes e sofisticadas; e com os demais cursos da UFMG, que oferecem as mais diversas oportunidades de formação. Além disso, atividades como pesquisa, extensão, intercâmbios internacionais e estágios, que permitem a entrada de novos ares na trajetória acadêmica, deveriam ser melhor articuladas com os objetivos do curso.

A quinta é diálogo. A construção de um Projeto Pedagógico é uma tarefa coletiva. Esse é o seu maior perigo. E sua maior beleza, também. E todos podem contribuir, alunos de graduação, alunos de pós-graduação, servidores técnico-administrativos, professores, representantes discentes, ex-alunos, integrantes das mais diversas carreiras jurídicas, especialistas em Educação e todas as pessoas que se interessam pelo assunto. Para que isso realmente aconteça, é essencial criar bons canais de comunicação e proporcionar momentos adequados de debate.

Eu tenho imensa alegria de trabalhar na Faculdade de Direito da UFMG. E percebo que esse sentimento é amplamente compartilhado. Mas é preciso confessar que somos muito egoístas. Somos excessivamente individualistas. Pode ser natural, e até benéfico, que cada integrante da Comunidade Acadêmica tenha seu próprio modo de ver o mundo e sua forma peculiar de conceber o curso de Direito. Mas não é bom que cada um dos 120 professores da Faculdade tenha seu próprio Projeto Pedagógico e o aplique soberanamente em seu âmbito de atuação. Precisamos nos lembrar que somos uma Escola. Precisamos compartilhar tarefas. Precisamos trabalhar em conjunto. Estou certo de que, assim, seremos ainda mais felizes. Ofereceremos um curso ainda melhor. Contribuiremos ainda mais com os desafios do nosso tempo. Por isso, generosidade, amigos. Generosidade. É assim que tudo começa.


Belo Horizonte, 13 de novembro de 2018.



Giordano Bruno Soares Roberto







PARA CONSULTA:

Normas Gerais de Graduação da UFMG

Diretrizes Curriculares do Curso de Direito

domingo, 2 de setembro de 2018

Guia Incompleto, Desatualizado e Provisório para Estudantes Universitários

Já está a venda o "Guia Incompleto, Desatualizado e Provisório para Estudantes Universitários".

No site da Editora Conhecimento. Ou na Amazon.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Dicas para brilhar em entrevistas e provas orais


Professor Lemos

Antes de tudo, é preciso esclarecer que não me dirijo aos que estudaram e, portanto, estão prontos para qualquer tipo de prova. Ao contrário, escrevo para os tímidos, os inseguros, os de inteligência limitada e, sobretudo, os preguiçosos. Na verdade, quando a palavra “dica” aparece no título, o texto só é procurado por aqueles que pretendem achar um atalho. A eles, portanto, é que me dirijo.

A primeira providência para se dar bem em entrevistas e provas orais é buscar informações sobre os integrantes da banca. Faça o melhor levantamento que puder. Descubra principalmente os gostos pessoais. Se um examinador for cruzeirense, não deixe de dizer, como quem não quer nada, que o Tostão é o melhor jogador de todos os tempos. Se outro tiver pendores socialistas, insira no discurso, com a máxima naturalidade, palavrinhas como “opressão”, “ideologia” e “superestrutura”. E se ainda outro apreciar música sertaneja, pense na possibilidade de usar cinturão de couro, com fivela arredondada, e cantarolar distraidamente canções de Sérgio Reis ou Luan Santana, conforme o contexto exigir.

Outra iniciativa promissora é tentar identificar se há alguma rivalidade entre os integrantes da banca e, depois, usar isso em benefício próprio. Posso afirmar que, em 80% dos casos, há questões mal resolvidas entre os colegas que participam da avaliação. E nos outros 20% dá para dizer que eles se odeiam. Por isso, eleger a linha teórica adotada por um e rechaçada por outro pode criar um desequilíbrio altamente benéfico. Desse modo, se um dos examinadores disser que o seu trabalho é um lixo, o outro ficará tentado a afirmar que você, na verdade, é um gênio.

Recomendações disfarçadas também costumar dar certo. Por isso, se você e um examinador tiverem conhecidos ou amigos em comum, não se esqueça de dizer: “fulano te mandou um abraço”.

Uma tática perigosa, mas que pode dar certo, é a da ameaça velada. Caso saiba de um fato que desabone a conduta do examinador, você pode utilizá-lo. E se não souber, é só procurar direitinho. Nada que o Google não resolva. O essencial é que você escolha as palavras com tanto cuidado que nenhum dos demais presentes desconfie de qualquer coisa, enquanto o destinatário da ameaça possa perceber claramente o perigo que tem diante de si.

A lamúria é uma técnica que também dá bons resultados. Se você tem uma história cheia de obstáculos, dê um jeito de tocar no assunto, de preferência com frases dramáticas, pronunciadas com voz embargada. Algumas lágrimas, desde que bem dosadas, podem tornar a cena perfeita. Agora, se você sempre viveu numa boa, estudou nos melhores colégios e sempre passou férias na Europa, fale de alguma dificuldade de momento, tipo uma gripe que não sara ou uma dor de coluna que você quase não suporta.

Eu não poderia terminar sem uma referência à tradicional arte da bajulação. Aos iniciantes, recomendo prudência. Utilizem doses seguras. Algumas frases que podem funcionar: “li o seu artigo e gostei muito”, “só entendi o assunto quando estudei o seu livro” e “a sua palestra me fez rever inúmeros conceitos”. Sugiro que só os mais experimentados se arrisquem em elogios pessoais, do tipo “gostei do novo corte de cabelo” ou “como você emagreceu!”. 

Todas as dicas são poderosas. E dificilmente dão errado. Por isso, caso não tenha sucesso ao utilizá-las, é possível que o seu caso seja muito grave. Mas sempre restará uma última providência, que é justamente reclamar do arbítrio dos examinadores.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Como redigir a epígrafe perfeita

Professor Lemos

 Bom xibom, xibom, bombom!
Bom xibom, xibom, bombom!
Bom xibom, xibom, bombom!
Bom xibom, xibom, bombom!
(As Meninas, 1999)

Neófitos sempre me perguntam sobre como redigir a epígrafe perfeita. Aliás, perguntar é o que os neófitos fazem melhor e, desse modo, revelam ao mundo toda a extensão de sua insensatez.

Perguntar pela epígrafe perfeita, no caso de um neófito, é perguntar pelo impossível. A perfeição é para os gênios. E genialidade não se ensina, não se aprende. Falarei, portanto, da epígrafe possível, na esperança de ser útil aos consulentes.

O segredo de uma epígrafe é escolher uma frase completamente incompreensível, o que se pode obter de dois modos. O primeiro é retirar do contexto uma frase compreensível, tornando-a, assim, suficientemente obscura. O segundo, e mais fácil, é escolher uma frase qualquer de um escritor incompreensível. E há autores especialmente apropriados ao propósito. Experimente, por exemplo, Lacan, Sartre, Derrida ou qualquer outro sujeito que jamais escrevia sem antes fumar ou beber alguma substância de procedência duvidosa.

A razão para escolher uma epígrafe misteriosa é óbvia. E se me dou ao trabalho de explicá-la é porque me dirijo a neófitos. Uma vez que é certo que todo gênio é um incompreendido, nada melhor que a obscuridade para simular genialidade que, como disse, é algo que não se ensina, não se aprende, mas com o que se nasce.

E talvez seja melhor um gênio simulado que um gênio de verdade, pois a genialidade é uma ilha num oceano de estupidez. O gênio é um solitário. Sua única forma de ter comunhão é escrever e, depois, ler o que escreveu. Somente consigo é que um gênio pode dialogar. Ninguém deveria aspirar à genialidade. Primeiro, porque é inútil. Depois, porque ser gênio não é fácil. E eu digo por experiência própria.

Uma epígrafe incompreensível, portanto, é o melhor que se pode fazer. Diante dela, o leitor, cansado de imaginar algum sentido razoável, desiste, sucumbe, desmorona, reconhecendo, assim, a estreiteza de sua capacidade intelectual, sem ter outra coisa a fazer senão confessar que está na presença de um gênio.

Post scriptum

Se você não sabe o que são os neófitos, isso significa que você é um deles. Nesse caso, consulte o dicionário, que é o livro que todo neófito deve ter sempre por perto. Saia de casa sem a carteira, o celular e o guarda-chuva, mas não ande sem o Aurélio, bom e velho.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Pensar bem para agir bem: observações sobre estágio de docência*

Todo mundo já ouviu a história do sujeito que estava doente, mesmo às portas da morte, e tinha um grande segredo para contar. Na presença de amigos e familiares, ele abre os olhos com dificuldade, tenta levantar um pouco a cabeça, faz sinal para que todos se aproximem e, com o máximo esforço, consegue dizer: - “Eu queria revelar algo importante, que pode mudar a vida de muita gente. Prestem bastante atenção, que eu não vou repetir. Gostaria que vocês soubessem que…”. Nesse momento, com o clima de tensão no limite, o moribundo faz uma pausa. Os presentes, muito ansiosos, chegam ainda mais perto. Mas antes de completar a frase, ele apenas suspira, e morre.

Lamento decepcioná-los logo de cara, mas não tenho nenhum segredo para contar. Não posso lhes ensinar a mágica de obter sucesso no magistério, simplesmente porque não sei como fazê-lo. 

O que eu tenho a dizer é simples e se baseia na compreensão de que, para agir bem, é preciso pensar bem. É que embora não sejam suficientes, os pensamentos corretos são necessários para as boas atitudes. E se aqueles que se preparam para o magistério desejam fazer as coisas da melhor forma - e eu sei que desejam - é o caso, então, de escolher as melhores ideias. 

Assim, na expectativa de proporcionar reflexão e debate, gostaria de fazer quatro afirmações.

1. As atitudes refletem a personalidade

O professor não consegue se esconder dos alunos. Por mais que tente controlar os gestos e escolher as palavras, ele acaba revelando mais do que deseja. A dinâmica da sala de aula é cheia de armadilhas. E é difícil se esquivar de 40 ou 50 observadores atentos e inteligentes.

Por isso, parece que o melhor é buscar o máximo de autoconhecimento

Assim, ao descobrir os próprios limites, o professor respeitará si mesmo; ao perceber as fragilidades, saberá em que áreas precisa investir; e ao identificar os pontos fortes, perceberá de que modo pode dar as melhores contribuições. 

2. Ninguém pode oferecer o que não tem

Não acredito que o professor possa transferir conhecimentos da sua cabeça para a cabeça do aluno. Nesse ponto, e em muitos outros, estou de acordo com o Paulo Freire. Mas, por outro lado, o professor não deveria esperar que o aluno se tornasse algo essencialmente diferente de seu mestre. Jesus ensinou que “basta ao discípulo ser como o seu mestre”. Convenhamos que, quando os mestres são humanos, e especialmente quando são bem fraquinhos, os discípulos podem superá-lo. Mas, nesse caso, o importante é que o professor saiba que, querendo ou não, acabará servindo de modelo aos alunos. 

Sabendo disso, para o seu próprio bem e o bem de seus alunos, deve construir a mais adequada formação filosófica de que for capaz e a melhor formação na especialidade a que se dedica.  

3. Não dá para alimentar quem não tem fome

O que está em jogo na sala de aula é basicamente ensinar e aprender. Não apenas os conteúdos, mas também as habilidades. Não somente o professor ensinando, mas os alunos também. Não somente os alunos aprendendo, mais os professores também. 

O professor, de quem tradicionalmente se espera que ensine, não deve imaginar que é isso o que lhe cabe, mas também não pode admitir que não lhe reste o que fazer. Na dinâmica da escola, o professor sempre terá um papel especial. 

Quando o aluno já sabe o que quer, o professor pode adotar estratégias para ajudá-lo a se apropriar de conteúdos e habilidades. Mas quando o aluno não sabe para onde ir, o professor deve começar o seu trabalho com o que Feuerstein chama de mediação do interesse, que consiste na adoção de estratégias para ajudá-lo a perceber o universo de possibilidade que tem diante de si. 

O desafio não é pequeno, sobretudo num tempo em que as pessoas se dispersam com facilidade e costumam chegar ao ensino superior sem a mínima noção do que esperam para o futuro.

Para ajudar, é recomendável investir nos estudos de metodologia do ensino.

4. É impossível estar em dois lugares ao mesmo tempo

Agora, uma observação para quem está prestes a ter sua primeira oportunidade de assumir uma sala de aula, nem que seja apenas por um dia: não a desperdice. 

E também não acredite na ideia corrente de que professor universitário se realiza mesmo é como pesquisador. Não dê ouvidos aos que desvalorizam a sala de aula. Não se deixe prender pelos obstáculos, tais como a falta de estrutura, o desinteresse dos alunos ou a aridez dos temas que serão estudados. E se você é monitor ou estagiário de docência, não fique desanimado com eventuais falhas do orientador, mas utilize esse elemento como incentivo para fazer diferente. 

Em qualquer contexto, o professor não deveria buscar menos que a excelência. E com mais razão se ele está em início de carreira. 

Por isso, tendo a oportunidade de pisar na sala de aula, o professor deve estar inteiramente ali. Não pode se distrair com outras tarefas. Nem mesmo com os prazos para entregar a dissertação ou a tese.

Nossos dias não são os melhores para quem está prestes a ingressar no mercado de trabalho, em qualquer área, inclusive na educação superior. É preciso dizê-lo com franqueza. 

No entanto, para quem deseja seguir carreira no magistério, o correto é fazer todas as tarefas com o máximo cuidado, aproveitando, assim, cada oportunidade, e cuidando de se aprimorar de modo constante, na esperança de que, no momento certo, a porta certa se abrirá.

Para finalizar, cito uns versos do Fernando Pessoa, na verdade, de Ricardo Reis, que estão gravados no túmulo do poeta, no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, e que podem resumir bem o que tentei dizer até aqui:

Para ser grande, sê inteiro: nada 
Teu exagera ou exclui. 
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

* Texto que serviu de base à comunicação apresentada no Seminário de Iniciação à Docência, organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG, em 3 de agosto de 2018.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Palestra inspiradora para estagiários de docência*

Professor Lemos

Sinto-me honrado com o convite para falar aos senhores sobre o trabalho do professor. De acordo com as informações que recebi da organização, os senhores são estagiários de docência e estão se preparando para o início do semestre. É isso mesmo, não é? Pois bem, foi-me dito que a minha fala deveria “inspirar os pós-graduandos para atuação no magistério jurídico”. Então, vamos lá, que essa é uma das coisas que eu faço melhor. 

A primeira ideia é: seja um bom estagiário hoje e torça para ter bons estagiários amanhã! Sim, porque ninguém aceitaria as tarefas do estágio se não soubesse que isso é por pouco tempo e sobretudo por conta da expectativa de logo ter os próprios serviçais. 

A segunda ideia é: mesmo que você já tenha sido aluno, jamais caia na conversa de um aluno! Todo cuidado é pouco com as historinhas que eles gostam de contar, principalmente para justificar o atraso nas aulas e a ausência em dias de prova. O melhor é trabalhar com a presunção de que falam mentira. E presunção iure et de iure, é bom que se diga.

A terceira é: não seja idiota a ponto de tentar ser melhor que o professor! É muito comum que estagiários de docência, cheios de uma espécie infantil de arrogância, queiram fazer gracinhas aos estudantes, procurando obter aprovação e admiração. E tudo com o indisfarçado propósito de diminuir a autoridade do professor. Não façam isso, meninos! Lembrem-se de que um dia vocês também poderão estar aqui no topo.

E a quarta e última ideia é: saiba que a regra de ouro é a de sempre fazer o menor esforço! É preciso ter cuidado com essas baboseiras da área de educação e com esses escritores piegas, do tipo Rubem Alves e Miracy Gustin. Se a gente fizesse tudo o que eles mandam, como sobraria tempo para trabalhar e ganhar dinheiro? Eles é que não sabem como o meu escritório toma tempo! Então, nada de inventar moda. O negócio é aula no gogó, prova fechada e um trabalho em grupo. 

Assim, concluo a minha conferência, certo de que inspirei todos os senhores. E olha que eu só pensei nessas ideias enquanto vinha para cá. Eu tenho muita facilidade. Improviso é o meu sobrenome. Um dia vocês podem fazer algo parecido, desde que estudem o quanto estudei, e somente se tiverem uma boa dose de sorte.

* Palestra proferida pelo Professor Lemos, no Seminário de Iniciação à Docência, organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito, em agosto de 2018.

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Entrevista exclusiva com o Professor Lemos

Depois de muitas tentativas frustradas, finalmente, conseguimos uma entrevista exclusiva com o Professor Lemos, que é um dos candidatos à diretoria da Faculdade.

Jornal: Professor Lemos, em primeiro lugar...

Lemos: Desculpe, mas é Senhor Professor Pós-Doutor Lemos.

Jornal: Sim, claro, Senhor Professor Pós-Doutor Lemos, em primeiro lugar, agradecemos a disponibilidade de nos conceder a entrevista.

Lemos: Estou à disposição. Fiquem totalmente à vontade para perguntar. Nos próximos 15 minutos, estou inteiramente à disposição dos senhores.

Jornal: É verdade que o Senhor será candidato à direção da Faculdade?

Lemos: É.

Jornal: E o que o levou a tomar essa decisão?

Lemos: A História. Por conta de minha larga experiência, inclusive no plano internacional, tenho a exata medida da importância histórica desse tipo de escolha. Sei que o fato ficará registrado em páginas imorredouras. Por isso, resolvi me candidatar e, assim, ligar o meu nome ao nome da Faculdade. Tenho a certeza de que isso engrandecerá enormemente a história da instituição.

Jornal: E que outros benefícios a candidatura pode trazer?

Lemos: Aprendizado. O exercício de uma função pública é, antes de tudo, uma oportunidade de aprendizado. Claro, se houver humildade, o aprendizado ocorrerá. É inevitável. E isso é importante principalmente num país atrasado e sem cultura, como é o nosso. Então, espero que minha passagem pela diretoria da Faculdade proporcione aprendizado. Na verdade, trata-se de uma oportunidade única para que os outros professores e os alunos aprendam como devem se comportar na presença de uma autoridade, como devem cumprir ordens com exatidão e eficiência, como fazer críticas verdadeiramente construtivas, além de outras coisas.

Jornal: E o senhor pretende divulgar um plano com suas ideias e propostas?

Lemos: Evidentemente. Considero que não há democracia se os votos são concedidos unicamente em razão das qualidades pessoais dos candidatos. Terei um plano de governo e ele será amplamente divulgado. Na verdade, a empresa contratada para elaborá-lo me disse que já está quase tudo pronto. Falta apenas concluir as pesquisas qualitativas, eleger as ideias que foram mais mencionadas pela comunidade, e depois redigir um texto vago e impreciso. Mas teremos um plano de governo, sim. Claro que sim.

Jornal: E caso eleito, qual seria a sua primeira medida?

Lemos: Além de óbvia, a pergunta é simplista. A Faculdade é um universo. Não dá pra pensar em soluções mágicas. É difícil falar qual seria a primeira de todas as medidas. O que posso prometer é que vou trabalhar com prioridades, atacando, portanto, as questões mais urgentes. Vocês já entraram no gabinete do Diretor?

Jornal: Sim.

Lemos: Aquilo é um horror! É preciso fazer intervenções imediatas naquele local. Vou contratar os melhores arquitetos e decoradores.

Jornal: E a Faculdade tem verba para esse tipo de iniciativa?

Lemos: Não sei. Mas não preciso saber. Meu escritório vai custear tudo. Pode não parecer, mas sou uma pessoa generosa. E antes que eu me esqueça, quero dizer que também vou atacar outras prioridades. O elevador dos professores, por exemplo. De uns tempos pra cá, tenho notado a presença de alunos naquele meio de transporte. Vou implantar uma catraca ali e colocar dois ou três seguranças. E a garagem? Não parece chocante que, em pleno século XXI, não haja uma vaga reservada ao uso exclusivo do Diretor? A sala dos professores também precisa de reformas. Onde já se viu professores Pós-Doutores compartilharem o mesmo espaço, incluindo o banheiro, com professores que ainda não deram passo tão elementar? Pretendo dividir a sala em três ambientes: o primeiro para Pós-Doutores, o segundo para Doutores, e o terceiro para o resto.

Jornal: E quais são os planos para a Biblioteca?

Lemos: Infelizmente, senhores, nosso tempo está esgotado. O dever me chama. Foi um prazer falar com vocês.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Florestas, lagos e a aventura de escrever uma tese

O sonho de ingressar no mestrado pode se transformar em pesadelo. No doutorado, as chances são ainda maiores. 

Costumam concorrer para isso, entre outras coisas, os caprichos do orientador, a grande quantidade de tarefas, as dificuldades financeiras e os problemas emocionais. Mas nada se compara ao desafio de escrever uma dissertação ou tese.

No meu caso, a experiência de mestrado foi tranquila. Mas o doutorado foi diferente. Faltando pouco mais de um ano para o término do prazo, a tese não passava de um esboço e eu tinha poucas esperanças de vencer o bloqueio. O medo de não produzir um trabalho digno praticamente me paralisava. 

Para contornar o problema, foi importante contar com o apoio da família, a confiança do orientador e o estímulo dos amigos. Também foi bom conversar com colegas experientes e perceber que aquela sensação de impotência não era nada original. Mas, nesse contexto, foi especialmente marcante a conversa que tive com um grande mestre.

Conhecedor do poder das parábolas, o professor João Baptista Villela me contou duas. Na primeira, o pintor entrava na floresta e, depois de contemplar tudo o que estava ao redor, decidia pintar uma única árvore, com todos os pormenores. Na segunda, o caminhante arremessava uma pedra ao lago e, depois, observava que as ondas produziam círculos cada vez mais amplos e, no entanto, cada vez mais fracos. 

Como bom discípulo, ao terminar de ouvir as histórias, perguntei que relação elas tinham com a minha angústia. E ele disse que a árvore era como o tema da tese. A floresta pode conter muitas coisas interessantes. Mas o pintor precisa escolher o aspecto que deseja retratar. E disse também que o tema da tese era como o exato lugar onde a pedra cai no lago. Os reflexos do evento podem se estender para lugares distantes, mas sempre o farão de modo impreciso. É somente nas imediações do fato que as consequências podem ser vistas com clareza. 

Saí do gabinete do professor Villela um pouco mais aliviado. Descobri que nenhuma produção acadêmica, nem mesmo uma tese de doutorado, pode ser vista como ponto final, resultado acabado, momento mais elevado de uma trajetória. Cada trabalho é apenas a descrição de uma árvore, no meio de uma floresta sem fim. Ou um ponto do tamanho de um seixo, no meio de um lago de grandes proporções.

A mosca azul da pesquisa

Quando ingressei no curso jurídico, tinha a vaga impressão de que seria advogado. Naquele momento, todas as outras possibilidades me pareciam muito distantes. Foi no terceiro período que surgiu um elemento novo. 

Curioso com a publicação de um edital de pesquisa, fui atrás de informações adicionais. Descobri que a candidatura dependia da elaboração de um projeto e da anuência de um orientador. Com o tema na cabeça, tentei contato com a professora da minha matéria favorita, mas não tive sucesso. Como segunda opção, procurei o professor de uma disciplina em que meu aproveitamento fora apenas razoável. E a conversa não poderia ter sido melhor, pois ele não somente aceitou o convite como também sugeriu que o resultado deveria ser publicado. Lembro-me claramente de suas palavras: “Não podemos escrever e depois deixar na gaveta”. 

A proposta foi aprovada, a pesquisa foi feita e o relatório final, de fato, foi publicado. Ao longo da realização do trabalho, meu entusiasmo era tão grande que o orientador disse algo mais ou menos assim: “Lamento informar, mas você foi picado pela mosca azul da pesquisa”. 

Eu não compreendia o alcance da frase, mas ele sabia exatamente o que estava dizendo.

A antiga lenda oriental, retomada por Machado de Assis no poema A Mosca Azul, conta a história de um homem muito simples, que ficou encantado com a beleza do pequeno inseto e, depois de aprisioná-lo, começou o minucioso trabalho de dissecação. Mas a mosca, coitada, não resistiu e acabou morrendo, “e com isto esvaiu-se-lhe aquela visão fantástica e sutil”. Por esse motivo, “dizem que ensandeceu e que não sabe como perdeu a sua mosca azul”.

No meu caso, o contato com a pesquisa, proporcionado pela experiência da iniciação científica, foi decisivo para a descoberta da vocação acadêmica. E uma vez conhecida, eu não fiz mais do que correr atrás de sua realização. 

Além da atividade de pesquisa, a monitoria também pode funcionar como teste vocacional. Trata-se da forma mais adequada de conhecer o cotidiano do magistério, com todos os seus desafios e alegrias. 

Ao longo do meu processo formativo, tive apenas um orientador, na monitoria, na iniciação científica, na monografia de final de curso, no mestrado e no doutorado. Foi o professor César Fiuza, uma das pessoas mais generosas que conheço. Devo muito a ele, inclusive a historinha da mosca azul.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Youtube, Padre Vieira e o desafio de falar em público

O padre Antônio Vieira é comumente apresentado como o maior orador da língua portuguesa. Nascido em Lisboa, em 1608, e falecido na Bahia, em 1697, levou uma vida agitada, repleta de aventuras e polêmicas. Em um de seus sermões mais luminosos, pregado na Capela Real, ofereceu cinco conselhos aos pregadores cristãos, que são úteis, na verdade, para todo tipo de discurso.

O primeiro tem a ver com a pessoa do pregador e sugere que deve haver coerência entre o que ele fala e o que ele pratica. É garantia de fracasso quando a vida faz apologia contra a doutrina e quando as palavras são refutadas pelas obras. 

O segundo refere-se ao estilo, que deve ser “muito fácil e muito natural”. As palavras do pregador devem ser como as estrelas, altas e claras. Tão claras que mesmo os que nada sabem podem entender. E tão altas que mesmo os que muito sabem podem aprender. 

O terceiro está relacionado com a matéria e, para o jesuíta português, “o sermão há-de ter um só assunto e uma só matéria”. O pregador que deseja tratar de muitos assuntos, na verdade, termina  não tratando de nenhum. 

O quarto é sobre a ciência. O pregador deve falar daquilo que aprendeu e construiu com esforço próprio. Não deve colher onde não semeou. Não deve utilizar material preparado por outras pessoas. Como diz o Vieira, “pregar o alheio é pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa”. 

No quinto conselho, que tem a ver com a voz do pregador, admite-se que possa se mostrar tão forte quanto o trovão, de modo que “faça tremer o mundo”, ou tão mansa quanto o orvalho, “que destila brandamente e sem ruído”, tudo conforme a ocasião exigir.

Os Sermões do Padre Antônio Vieira foram publicados e podem ser obtidos com relativa facilidade. Mas não é possível assisti-los no Youtube. Infelizmente, como próprio religioso reconheceu, os antigos sermões, uma vez colocados no papel, “sem a voz que os animara, ainda ressuscitados são cadáveres”.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

O que meus alunos me ensinaram sobre falar em público

Meus alunos foram meus mestres também na tarefa de falar em público. 

Nos primeiros anos de magistério, com alguma frequência, eles me advertiam sobre uma série de fragilidades. Na maioria das vezes, reclamavam da voz, que era muito baixa. Em outros momentos, davam claras demonstrações de que as aulas não eram atraentes.  

Mas foi nos últimos anos que o aprendizado se deu de modo intenso e metódico. A Faculdade de Direito da UFMG, onde trabalho, tem o privilégio de sediar o Senatus, grupo de debates liderado por estudantes. De uns semestres pra cá, nas disciplinas de graduação, tenho reservado uma ou duas aulas para que eles apresentem os princípios mais elementares da oratória. As turmas têm gostado muito. E eu, também.

Do que aprendi com meus mestres, pretendo apresentar, inicialmente, as quatro fases que um orador pode atravessar em seu processo de aprimoramento e, em seguida, os cinco itens básicos para uma boa expressão oral.

A primeira fase na vida de quem deseja adquirir a habilidade de falar em público é a dos vícios inconscientes. Nela, o orador erra e não sabe que erra. A segunda é a dos vícios conscientes. Nela, o orador erra e sabe que erra. A terceira é a das virtudes conscientes. Nela, o orador acerta porque se esforça para acertar. E a quarta fase é a das virtudes inconscientes. Nela, o orador acerta mesmo quando não se esforça para acertar. Trata-se, na verdade, do caminho natural da aquisição de qualquer hábito. O objetivo é ter a qualidade internalizada de tal modo que os comportamentos possam expressá-la com a máxima naturalidade.

A expressão oral pode melhorar de forma significativa se alguns aspectos forem observados.

O primeiro é a base. Para falar em público, é preciso estar confortável. Antes de cumprimentar os ouvintes, portanto, é necessário dispor o corpo de maneira apropriada. Os pés devem estar bem colocados no chão, nem muito juntos, nem muito distantes, com o peso igualmente distribuído entre eles. É bom evitar atitudes como cruzar as pernas, apoiar as mãos na parede ou ficar balançando de um lado para o outro. Uma boa base transmite segurança e ajuda a comunicar as ideias com clareza.

O segundo é a movimentação. Explorar o espaço disponível pode útil. Mas também pode tirar a atenção dos ouvintes. Por isso, o orador deve se movimentar só quando tiver algum propósito em mente. Caso queira sugerir que pretende contar um segredo, por exemplo, pode movimentar-se para frente. Caso deseje enfatizar que um pensamento é perigoso, pode movimentar-se para trás. E se a ideia for sugerir dúvida ou ansiedade, pode andar de um lado para o outro. Em todos esses exemplos, o movimento reforça a fala. Mas não há nada pior que um palestrante nervoso, que se movimenta freneticamente, exigindo que a platéia se comporte como se estivesse numa partida de ping-pong.

O terceiro é a gesticulação. Durante a fala, todo o corpo participa, mas braços e mãos possuem funções de destaque. O ideal é utilizá-los para tornar as ideias ainda mais claras. Ou ao menos evitar que eles atrapalhem a comunicação. Balançar a cabeça verticalmente reforça a ideia de que algo é positivo. Balançar a cabeça horizontalmente faz o mesmo em relação ao que é negativo. Colocar as mãos no queixo e olhar para cima é o bastante para sugerir dúvida. Estalar os dedos mostra o aparecimento de alguma ideia nova. Por outro lado, cruzar os braços revela desinteresse, deixá-los pendentes junto ao corpo passa a ideia de desânimo e estender as mãos com as palmas voltadas para baixo pode soar excessivamente impositivo.

O quarto é a voz. No se refere à intensidade, o orador deve estar seguro de que seja suficiente para alcançar a audiência inteira. Se for muito baixa ou muito alta, provocará a desistência de uns e certamente causará incômodo a todos. No que se refere ao tom, o ideal é modulá-lo criativamente ao longo da fala, de modo a não cansar os ouvintes e enfatizar os conteúdos principais.

O quinto aspecto é o olhar. A ideia principal é distribuí-lo por toda a audiência, indicando, assim, que todos os destinatários são igualmente importantes. E nunca manter os olhos fixos no chão, no teto, numa certa parte do auditório ou, o que é ainda pior, numa única pessoa.

Creio que essas informações ajudam na desafiadora tarefa de comunicar ideias ao público. Mas é evidente que elas não nos desobrigam dos deveres de estudar, observar e meditar. Afinal, ninguém pode oferecer o que não tem.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Vamos falar de dinheiro?

Na hora de tomar decisões sobre carreira, poucas pessoas analisam friamente um tema fundamental: o dinheiro. Para ajudar nesse tipo de exercício, vou trabalhar com uma situação hipotética.

Renata é apaixonada por História. Na infância, uma de suas brincadeiras favoritas era lecionar para os amigos. Ao concluir o ensino médio, pensou que o caminho natural seria ingressar no curso de História e, depois, seguir carreira no magistério. Porém, de tanto ouvir que professores ganham pouco e não têm o valor que merecem, começou a pensar num curso mais charmoso, e em carreiras mais promissoras. Foi assim que lhe ocorreu a ideia de estudar Direito e, em seguida, fazer concurso para ingressar no ministério público ou na magistratura.

Caso escolhesse se tornar professora no ensino médio, trabalhando em dois turnos, Renata não ganharia mais do que 15 valores por mês ou 180 valores por ano; e caso exercesse a função de promotora ou juíza não ganharia menos do que 60 valores por mês ou 720 valores por ano.

Mas de que modo ela poderia olhar para esses números?

Talvez o primeiro cuidado fosse justamente o de não desconsiderá-los. É preciso encarar esse tipo de realidade de frente. Algumas carreiras pagam significativamente menos que outras. E isso não tem nada a ver com a beleza, a complexidade ou a relevância das tarefas que abrangem.

Em seguida, parece que o melhor seria refletir no padrão de vida que se deseja experimentar no futuro.

Vejamos duas situações bem diferentes. Para descrevê-las, com o objetivo de simplificar, considerarei que os gastos mais elevados de uma pessoa ficam distribuídos em apenas três categorias: habitação, transporte e lazer.

Na primeira hipótese, Renata espera desfrutar de um padrão bastante elevado. No que se refere à habitação, uma vez que pretende morar em bairro elegante e em apartamento amplo, deverá gastar em torno de 200 valores anuais. Em relação ao transporte, já que espera ter um carro para cada integrante da família, todos de luxo, gastará em torno de 100 valores anuais. Por fim, quanto ao lazer, uma vez que não abre mão de realizar duas viagens internacionais por ano e comparecer aos principais espetáculos e eventos esportivos de seu entorno, terá um gasto anual de aproximadamente 300 valores. No total, os gastos anuais ficariam em torno de 600 valores.

No segundo cenário, em que Renata se contenta com um padrão mais modesto, seus gastos anuais com habitação ficariam em torno de 80 valores, já que pretende morar em apartamento pequeno, localizado em bairro simples. No que se refere ao transporte, uma vez que espera possuir apenas um automóvel, de categoria popular, e utilizá-lo juntamente com o sistema público, terá despesas anuais de aproximadamente 50 valores. No caso do lazer, priorizando passeios regionais e explorando espaços públicos e gratuitos, terá gastos ao redor de 20 valores por ano. No total, os gastos anuais ficariam em torno de 150 valores.

O padrão mais elevado, descrito na primeira hipótese, é claramente incompatível com a remuneração típica do magistério. Já o padrão mais humilde pode funcionar tanto para uma professora quanto para uma juíza.

Para algumas pessoas, um padrão de vida elevado é algo de que não se pode abrir mão. Para elas, será necessário encontrar uma profissão que permita ganhar bem, ainda que não permita desenvolver o próprio potencial criativo.

Para outras pessoas, fazer coisas relevantes, e nas quais se acredita, é algo de que não se pode abrir mão. Para elas, será necessário definir um estilo de vida mais sóbrio, ainda que isso implique em desistir de certo número de possibilidades. 

sábado, 19 de maio de 2018

Minha lista de 12 livros para ler (ou não)

Uma lista de recomendações literárias é praticamente inútil para leitores maduros, que já descobriram suas preferências de gênero e estilo. E também não é necessária para quem está rodeado de bons leitores e, portanto, pode receber orientação de modo pessoal e afetuoso. É por isso que pensei numa que pudesse servir de guia inicial para os que desejam adquirir ou desenvolver o hábito da leitura, e não sabem com quem discutir o assunto.

Antes de começar, tenho três esclarecimentos sobre como pretendo realizar a tarefa. 

Primeiramente, devo dizer que só escolhi livros que tocaram o meu coração, que me fizeram refletir e que ainda me sinto bem só de pensar neles. Não incluí os de poesia, mas fica logo dito que meus poetas favoritos são Fernando Pessoa, Adélia Prado, Carlos Drummond de Andrade e Manuel de Barros. Em relação a eles, não me parece adequado recomendar um livro específico, pois todos podem ser lidos com prazer. As antologias, organizadas pelos próprios poetas ou por especialistas, podem ser úteis para um primeiro contato. E no que se refere a livros publicados em outros idiomas, sugiro cuidado com as traduções, quando houver mais de uma alternativa. Algumas são feitas em linguagem excessivamente complicada. Para os livros de Shakespeare, por exemplo, recomendo as de Millôr Fernandes, pela leveza com que foram feitas. E para o Dom Quixote, a de Eugênio Amado, pelo mesmo motivo.

Em segundo lugar, esclareço que a ordem de apresentação dos textos não tem a ver com o tanto que gosto deles ou com o valor literário que imagino que possuem, mas com o grau de dificuldade que a leitura sugere. Para que ninguém fique desanimado, vou começar com livros pequenos, escritos em linguagem clara, deixando para o final os que costumam exigir maior esforço dos leitores. Pode parecer estranho, mas algumas das primeiras indicações são facilmente classificadas como literatura infantil. É que nesse caso, como em tantos outros, estou de acordo com C.S. Lewis, para quem “uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim”.

Finalmente, uma vez que não sou crítico literário, fui constrangido a adotar uma forma diferente de apresentar os livros. Não falarei de seus autores e das escolas a que pertencem. Nem mesmo tentarei oferecer algo como um resumo das obras. Vou apenas transcrever as palavras inicias de cada uma ou, no caso das de teatro, um trecho de alguma fala mais interessante. Assim, espero que os próprios autores tenham a chance de conquistar seus novos leitores. 

Agora, pois, ao trabalho!

1. Campo Geral, de Guimarães Rosa:

Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-D`Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos.

2. Hamlet, de William Shakespeare:

HAMLET: Ser ou não ser - eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias -
E, combatendo-o, dar-lhe fim?

3. O Rei Lear, de William Shakespeare:

LEAR: Enquanto isso revelaremos nossas intenções mais reservadas. Dêem-me esse mapa aí. Saibam que dividimos em três o nosso reino. É nossa firme decisão diminuir o peso dos anos, livrando-nos de todos os encargos, negócios e tarefas, confiando-os a forças mais jovens, enquanto nós, liberados do fardo, caminharemos mais leves em direção à morte.

4. O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, de C.S. Lewis:

Era uma vez duas meninas e dois meninos: Susana, Lúcia, Pedro e Edmundo. Esta história nos conta algo que lhes aconteceu durante a guerra, quando tiveram de sair de Londres, por causa dos ataques aéreos. Foram os quatro levados para a cada de um velho professor, em pleno campo, a quinze quilômetros de distância da estrada de ferro e a mais três quilômetros da agência de correios mais próxima.

5. O Hobbit, de J.R.R Tolkien:

Numa toca no chão vivia um hobbit. Não uma toca desagradável, suja e úmida, cheia de restos de minhoca e com cheiro de lodo; tampouco um toca seca, vazia e arenosa, sem nada em que sentar ou o que comer: era a toca de um hobbit, e isso quer dizer conforto.

6. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis:

Algum tempo hesitei se devia abrir essas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.

7. Diário de Um Pároco de Aldeia, de George Bernanos: 

Minha paróquia é uma paróquia como as outras. Todas as paróquias se parecem. As paróquias de hoje, naturalmente. Ontem, eu dizia ao vigário de Norenfontes: o bem e o mal devem equilibrar-se numa paróquia, só que o centro de gravidade é colocado em baixo, muito embaixo. Ou, se se prefere, um e outro se sobrepõem, sem misturarem-se, como dois líquidos de densidade diferente. O padre riu em minha cara.

8. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes:

Num lugar da Mancha, cujo nome não quero lembrar, vivia, não faz muito tempo, um fidalgo, desses de lança guardada em cabide, adarga antiga, rocim fluxo e galgo corredor.

9. O Homem que Era Quinta-Feira, de G.K.Chesterton:

O arrabalde de Saffron Park, rubro e esfarrapado como uma nuvem ao pôr do Sol, ficava a poente de Londres. Todo de tijolo vermelho, construído sem plano, tinha um perfil fantástico. Fora o grande rasgo de um construtor especulativo, besuntado de arte, que atribuía às suas construções, umas vezes, o estilo “isabelino”, outras vezes o do tempo da rainha Ana, parecendo confundir as duas soberanas.

10. Os Maias, de Eça de Queiroz:

A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinha da R. de São Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela Casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da senhora D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um colégio de Jesuítas.

11. Crime e Castigo, de Dostoiewski:

Numa tarde tórrida de princípio de Julho saiu um jovem do quarto mobilado que ocupava num enorme prédio de cinco andares situado na viela S. e dirigiu-se lentamente, e com ar indeciso, para a ponte K.

12. Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa:

- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha em minha mocidade. 

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Dê uma chance ao pobre Machado de Assis

Quem foi obrigado a ler Machado de Assis na escola talvez nunca possa gostar de Machado de Assis. Se for esse o seu caso, deixe-me propor uma experiência. Num dia tranquilo, sem a pressão de compromissos urgentes, tome uma edição de O Alienista, que é uma das histórias mais divertidas que já li. Se não tiver o livro, que é sempre o melhor, utilize a versão disponível no Domínio Público, sítio eletrônico do Governo Federal (www.dominiopublico.gov.br). O livrinho tem menos de 40 páginas e pode ser lido em uma ou duas horas. O ideal é fazê-lo olhando o mar, sentado à sombra, tomando água de coco. Ou na montanha, de frente para a lareira, bebendo uma xícara de café. Mas também costuma funcionar em casa, na biblioteca ou na praça. O importante é ler. Mas faça isso devagar, aprecie, sinta o gosto de cada palavra, tal como se faz com um último pedaço de sobremesa. 

Para uma pequena amostra, veja como o nosso autor começa o texto:

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia. 

— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.

Bom, depois de fazer a experiência, não deixe de me dizer o que achou das aventuras e desventuras do Dr. Bacamarte e, principalmente, de ter lido o Machado sem tê-lo pendente sobre o pescoço.

Para melhorar a expressão em língua portuguesa, não consigo pensar em nada diferente de ler os clássicos. Certamente que têm seu lugar o estudo rigoroso da gramática, o hábito de escrever com frequência, o auxílio de profissionais especializados e mesmo a colaboração de amigos e colegas. Mas nada substitui a leitura de bons autores.

No prólogo de Como e Por Que Ler, Harold Bloom disse o seguinte:

Lemos, intensamente, por várias razões, a maioria das quais conhecidas: porque, na vida real, não temos condições de “conhecer” tantas pessoas, com tanta intimidade; porque precisamos nos conhecer melhor; porque necessitamos de conhecimento, não apenas de terceiros e de nós mesmos, mas das coisas da vida. Contudo, o motivo mais marcante, mais autêntico, que nos leva a ler, com seriedade, o cânone tradicional (hoje em dia tão desrespeitado), é a busca de um sofrido prazer.

Para o crítico literário estadunidense, esse “sofrido prazer”, articula-se de certo modo com o Sublime e encerra uma possibilidade de “transcendência secular”. 

Em Cristianismo Puro e Simples, C.S. Lewis dirá que essa fome de beleza, que pode ser despertada pela arte, na verdade, não pode ser satisfeita por ela, mas tem a possibilidade de nos remeter à fonte de toda a Beleza. 

Assim, pois, podemos ler para conhecer a nós mesmos, aos outros e ao mundo, para experimentar alguma forma de satisfação interior e, também, para despertar a sede por algo que seja maior que a realidade imanente. Agora, no entanto, sugiro apenas que a leitura, sobretudo dos clássicos, é a melhor forma de promover as habilidades de expressão escrita e oral.

Talvez fosse bom oferecer uma lista de sugestões. Mas isso fica para o próximo texto.

Para além de Marvel e DC

Sou incapaz de distinguir heróis da Marvel de heróis da DC. Periodicamente, sou submetido a sessões de tortura quando meu filho me leva para ver os filmes que eles protagonizam. As histórias são interessantes, mas as batalhas parecem não ter fim. Chego a ficar tonto.

De todo modo, reconheço que é bastante atraente a ideia de ter superpoderes. 

A tentação de conquistar faculdades sobre-humanas aparece elegantemente representada nas várias formas de contar a lenda alemã de Fausto, sobretudo na de Goethe, e também no modo como João Guimarães Rosa compôs o Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas.

Mas não é disso que tratarei aqui. Quero fornecer uma lista de habilidades valiosas e, no entanto, plenamente humanas. Para organizá-la, utilizei três critérios.

Em primeiro lugar, pensei nas que fossem acessíveis a um grande número de pessoas. Aprender a patinar no gelo pode ser bom, mas não faz sentido para quem mora num país tropical.

Em segundo lugar, escolhi habilidades atuais, com amplo potencial de colaborar na solução de problemas contemporâneos. Aprender a caçar foi essencial para a sobrevivência da espécie humana, mas já não muda a vida de quem mora perto do supermercado.

Em terceiro, lugar, trabalhei com habilidades abrangentes, que podem ter aplicação em contextos diversos. Aprender a bela língua mirandesa é prova de curiosidade e bom gosto, mas só aproveita a quem se interessa especificamente por uma pequena região do Norte de Portugal.

A lista, que passarei a desenvolver nos próximos textos, tem os seguintes itens: expressar-se adequadamente em língua portuguesa, comunicar-se em língua inglesa, falar em público, agir de modo não violento, trabalhar em equipe, resolver conflitos e utilizar novas tecnologias. 

A composição é provisória e ficaria feliz se pudesse receber sugestões de aprimoramento. O essencial é identificar habilidades que, uma vez obtidas ou quando adequadamente desenvolvidas, permitam que o interessado faça melhor as tarefas atuais ou fique melhor preparado para novas oportunidades.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Você já leu todos esses livros?

Na segunda edição das Poesias Completas, de Machado de Assis, publicada em 1902, no lugar em que o autor tinha escrito “cegara o juízo”, o funcionário da tipografia, involuntariamente, trocou o “e” por um “a”, produzindo um defeito editorial nada agradável.

Numa edição inglesa da Bíblia, feita em 1631, o tipógrafo teve a ideia de brincar com o texto do sétimo mandamento, simplesmente suprimindo a palavra “não”. Como tinha de ser, os exemplares que traziam o comando “Cometerás adultério” foram recolhidos e o profissional foi condenado ao pagamento de elevada quantia em dinheiro.

A impressão de A Arte de Furtar, do Padre Antônio Vieira, feita em 1821, a pedido de Hipólito da Costa, tinha a seguinte dedicatória: “Oferecida ao Ilmo. Sr. S.F.R. Targine, ex-tesoureiro-mor do erário do Rio de Janeiro”. A associação entre o título do livro e o cargo do homenageado já seria suficiente para revelar as verdadeiras intenções do jornalista. Para não deixar dúvidas, no entanto, ele acrescentou a seguinte frase: “Qual pirata iníquo dos trabalhos alheios feito rico”.

Flor de Sangue, romance pouco expressivo de Valentim Moraes, publicado em 1897, trazia uma errata absolutamente singular, que dizia: “à página 285, quarta linha, em vez de “estourar os miolos” leia-se “cortar o pescoço”.

Essas e outras historinhas estão em O Bibliófilo Aprendiz, delicioso guia de Rubens Borba de Moraes, especialmente útil para quem deseja colecionar livros.

Das orientações do autor, algumas podem ser indicadas aqui.

Primeiramente, o interessado escolheria um gênero de livro a que se dedicar. Quem compra tudo o que vê pode construir “uma vasta livraria”, mas nunca terá uma verdadeira coleção. Os dois caminhos mais naturais são a escolha de um assunto ou a escolha de um autor. Assim, pensando nos em próprios meus interesses, seria possível colecionar livros de Direito Civil, publicados no Brasil Imperial, ou livros de Clovis Bevilaqua, importante jurista brasileiro.

Em segundo lugar, conceberia um plano sobre o tipo de coleção que se deseja, sendo necessário estudar o assunto com o máximo cuidado.

Uma terceira sugestão seria restringir a coleção aos meios que possui. A falta de espaço, por exemplo, pode ser um grave problema. E a de dinheiro, também.

De todo modo, o mais importante é lembrar que os estudiosos podem e devem organizar sua própria biblioteca, compatível, é claro, com os recursos disponíveis.

E à medida que o trabalho for avançando, o bibliófilo ouvirá, cada vez com mais frequência, a seguinte pergunta: Você já leu todos esses livros?

Se não puder respondê-la com brandura e educação, explicando que ninguém lê todos os livros de sua biblioteca, é porque ou não leu nada de valioso ou leu mas não chegou a aprender. 

terça-feira, 15 de maio de 2018

Uma historinha para quem não gosta de ler

Sei de pessoas que aprendem melhor ouvindo do que lendo. Frequentam aulas, assistem vídeos e escutam palestras. E são bem-sucedidas nas mais diversas atividades.

Também conheço pessoas que não se lembram de livros nos momentos de descanso e lazer. Gostam de aparelhos eletrônicos, produtores de imagens, sons ou das duas coisas ao mesmo tempo, que podem até exibir textos, mas sempre de modo fragmentado e secundário. E essas pessoas não parecem especialmente tristes.

Não acho que o hábito de ler seja essencial para todo tipo de aprendizado, muito embora o seja para alguns. E também não acredito que seja fundamental para o repouso ou a felicidade.

Então, o que dizer para quem não sente falta dos livros?

Talvez seja melhor simplesmente não dizer nada. Mas se você leu até aqui, pode ser que tenha paciência para uma pequena história, que me foi contada pelo pai de um amigo de infância. É uma historinha simples, despretensiosa, dessas que os sertanejos declamam ao redor da fogueira, em noites de lua cheia.

Um homem de condição humilde, presenteado com um passeio de navio, teve o cuidado de levar consigo boa provisão de água e farinha. No momento das refeições, tão logo escutava a convocação, recolhia-se a um lugar reservado, para somente então comer e beber, na máxima simplicidade. Enquanto isso, nos salões bem decorados, os outros desfrutavam do bom e do melhor. Ele, no entanto, consolava-se ao pensar na fortuna que tudo aquilo devia custar. Consciente de sua situação econômica, nem lhe ocorreu perguntar o preço de uma omelete ou de uma limonada. Foi só depois de concluir a viagem, quando recebia as malas no porto, é que descobriu que a alimentação estava incluída no valor da passagem.

Livros e livros

Vicente Mamede foi professor na Faculdade de Direito de São Paulo, exatamente na virada do Império para a República. Devotava tamanha admiração a um de seus mestres, o Antonio Joaquim Ribas, que tinha o hábito de dizer o seguinte:

Quando eu quero falar no Conselheiro Lafayette, eu digo Conselheiro Lafayette, porque quando eu disser “o Conselheiro”, é o Conselheiro Ribas.

No meu caso, quando pronuncio a palavra “livro”, deve ficar claro que me refiro ao objeto de papel, com letras impressas, em formato retangular. Para indicar textos publicados na internet, lidos por meio de dispositivos eletrônicos, parece-me conveniente utilizar outro nome.

Um livro é algo que se pode contemplar, tocar, manusear, folhear, medir o tamanho, experimentar o peso, sentir o cheiro, abraçar e, eventualmente, beijar. É um objeto com que se pode conversar e que serve de companhia tanto em longas viagens quanto em rápidas visitas ao médico.

Nas páginas de um livro, o leitor pode fazer pequenas anotações, como se falasse a um amigo, desde que a lápis, e com a melhor caligrafia de que for capaz.

Mas há certos fatores que podem dificultar a utilização dos livros. O primeiro é naturalmente o econômico. Em virtude de restrições orçamentárias, o leitor pode ser obrigado a se contentar com cópias virtuais. A raridade de uma obra, o tempo previsto para a entrega ou o espaço necessário para guardar os volumes, entre outras coisas, também justificam soluções improvisadas.

Com algum esforço, posso até imaginar que alguém prefira a tela fria de um aparelho eletrônico ao contato deliciosamente ameno com o papel. Acho pouco provável, no entanto.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

O cão vivo e o leão morto

Uma das cenas mais geniais de Chaplin está no filme O Circo. Ao fugir de um jumento que não lhe era simpático, o vagabundo acaba entrando na jaula do leão que, por sorte, curtia a soneca da tarde. Sua primeira reação é de pânico, principalmente ao perceber que não conseguia abrir a porta. Mas tudo muda quando o bicho abre os olhos, cheira o invasor e, depois, volta a se deitar preguiçosamente. Carlitos, percebendo que era observado pela filha do dono do circo, por quem nutria grande admiração, começa a exibir um comportamento corajoso. Certo de que o leão era inofensivo e não estava faminto, mantém a pose de serenidade e não abandona o local nem mesmo quando a porta é aberta. No entanto, basta o felino abrir a boca para que ele saia correndo em completo desespero. 

Entre outras coisas, a cena mostra que um leão é sempre um leão. Pode ser domesticado, pode parecer sonolento, pode estar bem alimentado, mas ainda é um leão. E um leão deve ser temido, em qualquer lugar, em todo o tempo, a menos que esteja morto.

É mais ou menos esse o assunto de um antigo provérbio judaico:

Para os vivos ainda há esperança, pois mais vale um cão vivo que um leão morto.

Um leão é uma grande fera, mas só enquanto está vivo. Um cão pode não ser lá muita coisa, mas, enquanto vive, é alguma coisa.

Você pode até reclamar do estilo da comparação, que é um tanto rude, mas não deveria perder a oportunidade de celebrar a esperança.

Talvez não haja mais tempo para escrever um tratado sobre a natureza humana, mas dá para escrever uma carta de amor.

Talvez não haja mais tempo para levantar um império empresarial, mas dá para construir uma casa na praia.

Talvez não haja mais tempo para fazer doutorado em teologia, mas dá para ler pausadamente o livro de Salmos.

Os erros cometidos até o dia de hoje limitam, mas não bloqueiam o dia de amanhã. As possibilidades podem diminuir com o passar do tempo, mas não até o ponto da completa extinção.

Por isso, quem deseja aprender sobre planejamento deve ter sempre presente que, enquanto há vida, há esperança. Ou, para usar a figura bíblica, deve saber que mais vale um cão vivo que um leão morto.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

A loucura do Rei e a sabedoria do Bobo da Corte

“O Rei Lear”, uma das mais belas peças de Shakespeare, conta a história de um velho monarca, cansado das tarefas de governo, que decidiu antecipar a própria sucessão e, ao fazê-lo, pediu às filhas que explicassem o tipo de amor que lhe devotavam.

Goneril, a mais velha, disse solenemente:

Senhor, eu o amo mais do mais do que podem exprimir quaisquer discursos; mais que a luz dos meus olhos, do que o espaço e a liberdade, acima de tudo que pode ser avaliado - rico ou sublime; não menos que a vida, com sua graça, beleza, honra e saúde; tanto quanto um filho jamais amou um pai ou um pai jamais se viu amado; um amor que torna a fala inútil e a palavra incapaz. Eu o amo além de todos os valores disso tudo.

Regana, por sua vez, declarou:

Eu sou feita do mesmo metal de minha irmã e julgo ter valor igual ao dela. Do fundo do meu coração acho que exprimiu também o meu amor, ao exprimir o dela; fica distante porém quando me declaro inimiga desses prazeres que o sentido têm como supremos; só me sinto feliz em idolatrar Vossa Amada Alteza.

Cordélia, a caçula, incomodada com a falsidade das irmãs, afirmou o seguinte:

Infeliz de mim que não consigo trazer meu coração até a boca. Amo Vossa Majestade como é meu dever, nem mais nem menos.

O Rei, satisfeito com a confissão das filhas mais velhas, dividiu entre elas o poder soberano e a administração dos bens. Para a mais nova, no entanto, além de dizer palavras duras, não deixou um mísero centavo.

As consequências da decisão não foram agradáveis. Basta dizer que uma das cenas mais tristes da peça é a que mostra o rei completamente abandonado, exposto aos riscos de uma forte tempestade, enquanto as herdeiras permanecem insensíveis ao drama paterno.

Quem lê a história fica convencido de que o Rei cometeu um grande erro. E percebe que tudo poderia ter sido diferente se ele tivesse dado ouvidos ao seguinte conselho de Kent, um corajoso nobre da Corte: 

Que pretendes fazer, velho Rei? Julgas que o dever terá medo de falar quando o poder se curva à adulação? A honra tem de ser sincera quando a majestade se perde na loucura. Conserva o teu comando, considera e reflete, freia esse impulso hediondo. Respondo por minha opinião com minha vida; tua filha mais moça não é a que te ama menos; não está vazio o coração cujo som, por isso mesmo, não ressoa.

Para tomar decisões importantes, é necessário buscar aconselhamento. Confiar apenas nas próprias ideias não é seguro.

Como diz o antigo provérbio judaico:

Quem se isola insurge-se contra a verdadeira sabedoria.

Por isso, para qualquer pessoa, em qualquer contexto, vale o que o Bobo da Corte disse ao Rei Lear:

Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio.